A TALHE DE FOICE
Desastres


O acidente ferroviário ocorrido há pouco tempo numa das linhas mais movimentadas de Londres – exactamente a que estabelece ligação entre a capital inglesa, o aeroporto e subúrbios densamente povoados – provocou dezenas de mortos e feriu o prestígio dos caminhos de ferro britânicos, celebrados em décadas de literatura e de cinema como exemplares na sua eficácia, pontualidade e segurança.
Acresce que o acidente não foi novidade: há menos de dois anos, outro acidente na mesma linha provocou dezenas de mortos.
Como é habitual, os responsáveis da linha lançaram de imediato a suspeita de erro humano. Culpar os trabalhadores foi sempre o caminho mais curto para qualquer administração alijar responsabilidades.
Só que as peritagens obedecem a critérios de objectividade e alimentam-se de factos confirmados no terreno. E a peritagem a este acidente apurou irrevogavelmente que as causas da tragédia se resumiam ao desinvestimento nos sistemas de segurança da linha verificado nos últimos dois anos e à decorrente degradação da fiabilidade dos mais diversos materiais presentes numa estrutura de transportes desta envergadura.
Identificadas as causas, passou-se directamente às explicações. E como os factos demonstraram a ausência de erro humano nos procedimentos operacionais envolvidos na tragédia, a administração da empresa teve a admirável generosidade de elidir a responsabilização humana nas averiguações. Compreende-se porquê: uma falha humana operacional aponta exclusivamente para os trabalhadores, enquanto o desinvestimento e a incúria estrutural só podem ser assacados às administrações...
Daí a Grã-Bretanha ter assistido, estupefacta, à «explicação» avançada pela administração da empresa a dizer, simplesmente, que o carácter privado desta não a «vocacionava» para investimentos com características de serviço público!
Ou seja: ao receberem há dois anos do Estado, e de mão beijada, estas linhas ferroviárias para a exploração privada que tanto reclamavam em nome de todos os paraísos de «competência» e «comodidade», os senhores empresários britânicos entenderam assumir apenas o que lhes estava na «vocação» - os movimentos de bilheteira. Quanto à segurança dos equipamentos, da linha e dos cidadãos, isso é um «serviço público» de que agora se declaram desobrigados, apesar de terem exigido e aceitado a apropriação total da empresa. O resultado está à vista: em apenas dois anos, a enaltecida «iniciativa privada» transformou o modelar sistema ferroviário britânico numa armadilha assassina.

Do alto da sua «terceira via para o socialismo», o Governo de Tony Blair entrou mudo e saiu calado na tragédia. A verborreia esgotou-se-lhe a papaguear as vantagens do negócio que há dois anos privatizou esta linha ferroviária, directamente promovido e realizado por ele e o seu Governo em nome dos cidadãos, do «interesse público» e do seu original «socialismo», enquanto na Grã-Bretanha subiram os protestos dos que entendem que os serviços públicos tão estratégicos como os transportes, a saúde ou a educação não podem ser entregues à voracidade do capital privado.
Em Portugal, um negócio semelhante já está em andamento pelas mãos do Governo PS, decidindo o desmantelamento da CP em várias empresas e entregando as linhas mais rentáveis à «eficácia» destes senhores da iniciativa privada.
Resta-nos aguardar que o novo Governo privatize a CP na certeza de que António Guterres, ao contrário de Tony Blair, não nos há de deixar sem uma palavra amiga na hora do desastre anunciado. Ele é um homem de diálogo. — Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1351 - 21.Outubro.1999