O gosto pela Música


Chamava-se assim, muito simplesmente, um célebre programa de rádio que João de Freitas Branco tão bem escrevia e dizia, na companhia de Maria Leonor (já lá vão bastantes anos!), aos microfones da ex-Emissora Nacional – programa que hoje é de novo revivido de forma recatada e competente pelo filho do saudoso musicólogo, numa excelente ideia da actual RDP-Antena 2.

O facto é que, ao assistir pessoalmente nas duas últimas semanas à transmissão de dois programas da série «Os Grandes Compositores», que a RTP 2 vem transmitindo na sua quase sempre recomendável rubrica «Artes e Letras», não deixa de ser significativo ter-me lembrado daquele programa e da sua indesmentível influência e efeito persuasor exercido nos muitos ouvintes de rádio que, através da sua audição, foram sendo ao longo dos anos paulatinamente captados e atraídos pelo amor da chamada «arte dos sons».
E isto porque, ao apreciarmos as várias formas pelas quais autores, guionistas ou realizadores nos conduzem, num outro contexto de comunicação e informação, à descoberta dos insondáveis caminhos da criação musical, ficamos de novo um pouco mais ricos por dentro e não podemos deixar de pensar, mais uma vez, no que seria o vazio e a estupidificação massiva da paisagem radiofónica e televisiva portuguesa, se alguma vez fossem dados ouvidos às criminosas intenções de alguns primatas da esfera política e económica, sempre procurando instigar na opinião pública a aceitação passiva do desaparecimento do serviço público nestas áreas, fundamentais para a preservação da Cultura.

Entretanto, o que me parece também assinalável no caso destes programas televisivos é o facto de se tratar de uma rubrica à qual a RTP atribuiu uma designação genérica e abrangente, não se tratando desta vez de uma série que, na origem, tivesse esse mesmo título unificador – o que significa que, nela, pudemos descobrir programas de estéticas e origens diferentes (embora coincidindo na chancela de quem os produziu ou encomendou, a BBC) e planificados e concebidos de forma muito diversa entre si.
E isto prova como podem ser ricas e incontáveis, na sua concepção, as formas de fazer chegar ao público o conhecimento dos grandes Mestres.

Por exemplo, a ideia que presidiu à concretização do documentário sobre Wolfgang Amadeus Mozart contemplava claramente os vários aspectos que, do ponto de vista da origem familiar e de classe, da evolução dos acontecimentos históricos e da progressiva e até empolgante transformação das ideias reinantes à sua época, foram acompanhando os curtos mas intensamente ricos e vividos 35 anos da passagem do genial compositor por este mundo, bem como os nítidos reflexos desse percurso e dessas transformações no seu próprio pensamento criativo, não sendo ao mesmo tempo relegadas para segundo plano outras decisivas considerações relacionadas com a técnica de composição ou de interpretação da sua obra.
Revelou-se, assim, sempre interessante o cruzamento de opiniões e informações que historiadores, musicólogos, psicólogos, mas também reputados e conhecidos instrumentistas, cantores ou maestros (de várias nacionalidades), nos foram dando ao longo do programa, às vezes «dialogando» e «discutindo» indirectamente entre si, através de uma sábia e bem ponderada e ritmada montagem dos vários depoimentos – ao mesmo tempo que se revelava sempre fascinante a descoberta dos documentos de arquivo que enriqueciam a estrutura final do programa. Isto para além dos inúmeros exemplos musicais de elevado nível interpretativo e também eles provenientes de várias origens e arquivos, sempre acompanhando o pano de fundo histórico, sociológico e artístico.

Um outro caminho totalmente diferente foi aquele escolhido pelos autores do documentário sobre o grande compositor polaco Frederic Chopin – optando por fazer acompanhar os exemplos musicais das suas obras aparentemente mais simples ou transcendentes pela narração, às vezes comovente, outras vezes apaixonada, quando não até irónica ou mesmo altamente mordaz, atribuída a um célebre intérprete e especialista de excepção da obra do grande pianista e compositor: András Schiff.
Substituindo-se, assim, à apreciação multifacetada e pluridisciplionar que experimentáramos ao seguir o documentário sobre Mozart, aquilo que sobretudo nos foi dado ver e ouvir, no caso de Chopin, acabava por ter a sua máxima expressão na própria música criada e na vertente técnica (sublime embora) de uma única individualidade que era, simultaneamente, um só narrador e intérprete de uma vida singular e de uma obra excepcional – ou seja uma forma certamente mais tocante (mas também mais redutora e subjectiva) de nos fazer partilhar sobretudo do acto criador que aproxima compositor e intérprete, deixando para segundo plano as condicionantes políticas, sociais, económicas e históricas que inevitavelmente moldaram o pensamento, a vivência e a criatividade do grande mestre polaco.
Importante é termos estado, em ambos os casos, perante dois grandes momentos televisivos. — Francisco Costa


«Avante!» Nº 1351 - 21.Outubro.1999