Três notas

Por Edgar Coreia
Membro da Comissão Política


1. Hernâni

Com o falecimento do Hernâni Silva, ocorrido no Porto no passado fim de semana, desaparece mais uma das grandes figuras de comunista e de democrata a quem o país e a causa dos trabalhadores muito devem. Cinquenta e cinco anos de militância, três prisões e cinco anos de cadeia , a participação na fundação do MUD Juvenil, são sem duvida elementos impressivos da sua biografia. Mas o que sobressai no retrato humano do camarada e do amigo, é toda uma vida vivida em função do Partido e das mais variadas e complexas exigências da luta e a forma extremamente corajosa como sempre enfrentou torturas, perseguições e a vigilância policial a que foi constantemente submetido durante muitos anos.
Sublinhe-se sobretudo o facto do Hernâni Silva , do mesmo modo que figuras do Porto como Virgínia Moura, António Lobão Vital e alguns outros camaradas, pela coragem e combatividade que evidenciaram durante décadas em que a actividade do Partido se desenvolveu na mais severa clandestinidade , se terem assumido e em condições de fascismo como verdadeiros rostos públicos do PCP.
Quando uma parte significativa da população portuguesa não tem já conhecimento directo do que era o regime fascista e se afastam no tempo as imensas dificuldades desses dias, não são fáceis de descrever os sacrifícios que o Hernâni Silva e esses outros camaradas enfrentaram e as tensões quotidianas a que estiveram sujeitos por terem assumido esse corajoso estatuto. Razão suplementar para que os guardemos sempre na memória e para que se justifique evocar o exemplo político e humano que constituiu a sua vida.

2. Um governo de «combate»?!

O propalado carácter de «combate» do governo do PS que acaba de ser empossado não pode deixar de suscitar alguns comentários. Pois de um governo é de esperar que ele «governe», em nome de todos - mesmo quando é monopartidário, como é o caso - e para resolver os problemas do país, nos termos constitucionais, e não que ele se constitua em entidade «combatente», com o que isso pressupõe em relação à definição de um «inimigo» ou «inimigos» e, também, à necessidade do traçado de uma «estratégia» para os vencer.
De modo que é de temer que este assumido carácter de «combate» possa significar em mais elevado grau uma coisa que já tem sido péssima para o país e para a democracia portuguesa: a partidarização da Administração e do Estado e a utilização do governo e da sua actividade de acordo com os objectivos e timings eleitorais do partido que o suporta .
Neste linha de preocupações e observada a geometria do novo executivo e conhecidos protagonistas e planos, ressalta à primeira vista uma visível atenção ao dispositivo e meios de intervenção numa base territorial, cujo encaixe com a possibilidade de influir nos resultados das eleições autárquicas, a terem lugar a meio da legislatura, não será certamente obra do acaso.
Quanto à composição do Governo e sendo ainda cedo para uma avaliação mais rigorosa, há indícios que não podem porém deixar de ser objecto de análise.
É o caso, por exemplo, da «nova paixão» de António Guterres, a saúde: não será de mau agouro que entre as escolhas para secretário de Estado figure quem se tenha notabilizado na crítica à linha de «regeneração do SNS» assumida, apesar de todas as suas contradições, pelo ministério agora cessante, e na defesa do regresso às velhas teses neoliberais, de natureza privatizadora, como linha política fundamental?

3. A grande manif de Paris

O sucesso da grande manifestação que no dia 16 de Outubro juntou em Paris mais de 70 mil pessoas na luta pelo emprego, e que era encabeçada por uma delegação de operários da Michelin (empresa que anunciou planos para proceder á supressão de 7500 postos de trabalho na Europa nos próximos três anos apesar dos lucros recordes que vem registando) constitui um acontecimento da maior importância.
Resultando de uma dinâmica unitária no seio da esquerda que envolveu o Partido Comunista Francês, os Verdes, o Movimento dos Cidadãos (MDC), a Liga Comunista Revolucionária , a Luta Operária e muitas outras organizações políticas e sociais, e contando com o apoio de destacados intelectuais franceses, a manifestação inseriu-se na luta por uma relação de forças mais favorável para resistir à pressão do «novo capitalismo» e de pressão sobre o governo para tomar medidas que sejam verdadeiramente de esquerda a favor do emprego e da justiça social - a exigência de uma lei contra os despedimentos, a pressão a favor de uma verdadeira lei de redução do tempo de trabalho, o combate à flexibilidade e à precariedade do emprego e a exigência de que os empregos para jovens sejam transformados em empregos estáveis e duráveis, a necessidade de revalorização dos mínimos sociais, o estabelecimento do controle da utilização de fundos públicos e a adopção de novos direitos de intervenção para os assalariados e os cidadãos.
Como se afirmava na convocatória da manif, a luta por verdadeiros empregos, direitos novos, rendimentos dignos da nossa época, a luta contra a mundialização capitalista actual, não vão ficar por aqui – «a nossa manifestação não deve ser um fogo de vista e não o será».Tudo isto aponta no sentido, muito positivo, do movimento popular na Europa poder estar a entrar numa fase mais dinâmica e da resposta política e de massas ao neoliberalismo, à altura das exigências da situação, poder estar finalmente a ganhar contornos mais amplos e combativos.


«Avante!» Nº 1352 - 28.Outubro.1999