O EURO 2002

Por Sérgio Ribeiro


Não. Não se trata de engano no ano.
Não se trata do Euro 2004 de que tanto se fala e que deu origem a uma daquelas crises de euforia que ataca os ciclotímicos portugueses, que passam vertiginosamente de se sentirem os «melhores do mundo», de irem nas loas de serem os primeiros do «pelotão da frente», para se sentirem os «desgraçadinhos», os lanternas vermelhas dos condenados à despromoção, idiossincrasias que algumas forças políticas aproveitam, de que usam e abusam.

Mas não se vá sem dizer que muito haveria a dizer sobre essa vitória portuguesa (que o é!) na organização do Europeu de futebol em 2004. Não fazemos é ideia do que seria se, em vez do Europeu, fosse o Mundial, ou se, em vez do Mundial, fossem os Jogos Olímpicos. O país entraria, decerto, em órbita... paranóica.
Em qualquer dos casos, do que vai ser e dos que poderiam ser, deveria poder chamar-se a atenção, sem que tal atraísse raios e coriscos, para a necessidade de aproveitar o evento para reforçar a coesão e para que não se corra o risco de cavar mais fundas as assimetrias e as desigualdades entre o litoral e o interior, entre os que «vão à bola» e os que não terão euros que sobrem dos gastos no indispensável à sobrevivência e que cheguem para comprar bilhetes e só espreitarão os jogos no café do bairro ou na tasca da aldeia.
Escrevi eu euros? Pois escrevi porque, em 2004 já não haverá escudos portugueses, haverá euros. Haverá apenas euros a circular neste país a partir de 2002 e é desse Euro2002 que venho à escrita e por isso coloquei no título.
É significativo que dessoutro Euro, do Euro2002, tão pouco se fale. Parece que tudo teria ficado feito quando em 1 de Maio de 1998 foi decidido em definitivo que haveria euros e para que países.
Também então se decidiu que seria no dia 1 de Janeiro de 1999 que o euro passaria a valer como moeda única para 11 países. Mas os países que não são apenas banqueiros, financeiros, trampolineiros (ou especuladores) para quem, efectivamente, o euro passou a valer para as suas operações, sendo já moeda mas não sendo ainda moeda...
Explico-me. O Euro1999 é uma moeda escritural com que os banqueiros, os financeiros, as empresas, e outros, podem trabalhar como seu instrumento para as trocas, por via de operações em cheques e outros meios em que não entrem as notas e as moedas sonantes, aqueles meios em que o comum dos mortais ou os mortais comuns recebem os seus salários, e com que compram o que necessitam para os seus dia-a-dia, com que fazem as suas trocas.

Embora a moeda única, o tal euro, já esteja nas nossas vidas, está de certo modo escondido atrás dos documentos dos bancos e das bolsas porque só passa a circular, a entrar e a sair dos nossos bolsos, em 2002. Será, então, o Euro2002!
Tudo isto é muito significativo. Como já disse e passo a procurar explicitar. Simplificadamente, pode dizer-se que esta moeda única foi congeminada à mesa redonda onde se reúnem grandes empresários transnacionais, tornou-se projecto político na Comissão Europeia, foi adoptado pelo poder político democrático (Parlamento Europeu e parlamentos nacionais) e passou ao concreto ao serviço dos seus congeminadores. Por isso, embora todos possamos usar já o euro, só os grandes (grupos, empresas e avulsos) o estão a fazer, enquanto os pequenos e médios empresários e empresas ainda não se preparam nem começaram a ensaiar a utilização do novo instrumento, e os particulares só em 2002 o farão porque só então serão obrigados a fazê-lo.
Não podia ser de outra maneira? Claro que sim se o projecto tivesse sido outro, se tivesse sido pensado para servir outros interesses, dos povos. Depois da grande campanha de lançamento do euro, com acções de propaganda travestidas de acções de informação que fizessem a «opinião pública» acreditar que vinha aí algo de salvador, «esqueceu-se» o Euro2002 e são oportunos os Euro2004 para nos manter entretidos e entusiasmados.
Nós estivemos, sem ambiguidades, contra o processo que levou à criação deste instrumento. Mas, existindo ele, somos os que estamos preocupados com os efeitos da sua existência. Há um evidente défice de preparação das PME para o novo instrumento, há uma clara ausência de previsão das consequências da introdução e da passagem a moeda real em 2002 para os cidadãos comuns, para os trabalhadores, para os povos.
Não basta insinuar que temos beneficiado do euro porque baixaram as taxas de juro. Elas baixariam mesmo que não houvesse euro, e o que é importante sublinhar é que essas decisões políticas deixaram de estar aos níveis dos executivos sobre os quais os representantes eleitos pelos povos podem exercer controlo político para estarem dependentes do Banco Central Europeu, que só está dependente dos congeminadores do projecto, logo, ao serviço destes.
E, no entanto, alguns benefícios directos da introdução do euro já podiam estar a ser aproveitados pelos particulares. Como, por exemplo, a diminuição dos custos bancários e a eliminação de taxas que só se justificariam nas operações em que há diferenças cambiais que deixaram de existir, entre as moedas dos 11 Estados-membros, a partir de 1 de Janeiro.

Ao não se fazer isto, ao não se adaptarem as PME ao novo instrumento, ao não se fazer já o que podia ser feito em termos de custos e de taxas, há um reforço das transferências para os mais poderosos económica e financeiramente, há um agravamento das desigualdades e das assimetrias, da pobreza e da exclusão.
Em exemplos muito práticos, já alguém descortinou uma preocupação em começar a preparar as pessoas para o facto de, no Euro2002, passarem a circular em Portugal, no lugar das actuais 7 moedas – 1, 5, 10, 20, 50, 100 e 200 escudos -, 88 moedas – 1, 2, 5, 10, 50 cêntimos e 1 e 2 euros vezes 11, porque cada moeda terá uma face diferente por país -?, e já alguém nos disse algo sobre o facto dessa moeda mais pequena, 1 cêntimo de euro, valer os actuais 2 escudos o que fará com que a nossa base do novo instrumento de trocas (e de trocos) passe de 1 para 2, o que implicará problemas de conversão em todos os preços impares em escudos?
Nós preocupamo-nos, disso falamos e para isso alertamos. Nós, os que estivemos contra o euro. Aliás, o modo como ele está a ser concretizado confirma as razões dessa nossa posição. O instrumento foi congeminado e criado ao serviço do capital transnacional. Ma tal não impede – pelo contrário! – que procuremos diminuir os seus malefícios e potenciar os seus benefícios para as populações. Como instrumento que é.
Só uma última nota, talvez um pouco à margem. É interessante anotar como se saudou a atribuição do Nobel da Economia deste ano a um economista apresentado como patrono do euro por estar ligado à teoria das zonas monetárias óptimas e pretende-se que a União Monetária Europeia (UME) seja uma, mas há quem afirme, com fundada argumentação, que não há zonas monetárias óptimas e que, a haver, a tal UME nunca o seria. Em contrapartida, houve grande silêncio à volta do Nobel da Economia do ano passado, o que terá a ver – se não nos enganamos...- com o facto de ser hipercrítico da moeda única «europeia» que, disse ele!, retira necessárias margens de manobra às políticas nacionais sem que se possa tornar, como foi apregoado, um rival do dólar. Como a prática vem confirmando.


«Avante!» Nº 1352 - 28.Outubro.1999