Cultura da violência e da submissão
Do
Brasil
por Zillah Branco
As notícias que hoje retratam a situação do Brasil são péssimas. De nada adiantam os discursos em «economês» feitos pelo governo, ou em seu nome, pintando de dourado os trança-pés financeiros que balançam as bolsas e fazem duplicar o valor do dólar. Resumindo e concluindo, o desemprego é muito maior do que as estatísticas indicam (pois não referem o trabalho rural, o doméstico e o informal, além de ficarem apenas nas grandes cidades), as grandes campanhas de saúde realizadas são um grão de areia no mar de carências que vão da falta de infra-estruturas para a higiene da população à ausência de medicamentos imprescindíveis nos postos de saúde, o sistema escolar vai à falência em escolas sem carteiras e professores sem condições económicas para dar os cursos oficiais, a delinquência dos jovens inspira-se nas personalidades que ocupam grandes cargos e funções na vida política nacional e nos cursos intensivos transmitidos pelos media, a segurança pública e a insegurança andam de mãos dadas reduzindo o sistema judicial a uma lamentável ficção, a elite no governo e fora dele procura minimizar os problemas sociais criando mecanismos populares que substituam os organismos do Estado, o Presidente da República afirma que quem comenta as misérias do país não é patriota. Pra mal dos meus pecados, estamos no mato sem cachorro!
Mas tem mais, a
destruição da natureza continua em força com incêndios das
matas nativas, poluição dos rios e do ar que se respira,
devastação das florestas, uso descontrolado dos agrotóxicos
nos produtos alimentares, falta de infra-estrutura sanitária
permitindo o desenvolvimento de micro-organismos que infectam e
matam, esbanjamento das riquezas naturais (sobretudo a água) que
não se renovam, abandono da produção imposta pelo comércio
internacional, um poder paralelo que conduz o crime organizado
por onde quer, a deseducação de um povo internacionalmente
conhecido pela sua cordialidade e criatividade cultural, a
destruição da personalidade dos cidadãos que vivem humilhados
e violentados. A educação social brasileira foi condicionada
pelos estreitos limites impostos pela ditadura e está sendo
dominada pelos da globalização que tem os mesmos desígnios de
apagar as tradições, a história, a identidade cultural.
O sociólogo Fernando Henrique Cardoso há de reconhecer que não
dá para fazer de conta que vivemos num mar de rosas com a moeda
mais ou menos estável e com algumas denúncias de corrupção
para entreter a opinião pública criando a imagem de que a
recuperação nacional está sob controlo. O Estado foi
destruído por dentro, o rico filã0 que estava nas empresas
nacionais foi transferido para os grupos privados, as leis
criaram um espartilho insuportável para os que não têm
padrinhos no governo, e em nome da participação social,
chama-se o povo a solucionar os problemas criados pelas máfias
que se beneficiam do desgoverno em que vivemos. Não é de
admirar que o brasileiro hoje procure no misticismo um alento
para manter o amor à vida. Tudo o que um dia existiu como forma
de apoio e esperança social tem sido meticulosamente destruído
para que uma elite criminosa passeie a sua beleza pelos hotéis
de cinco estrelas em missões oficiais pagas com o suor popular.
As raízes culturais foram desprezadas como coisa de um passado
subdesenvolvido para que uma pincelada do modelo «desenvolvido e
moderno» impusesse a versão de cinderela desajustada que
convém ao poder da elite globalizante.
O presidente FHC disse que o país não é pobre mas sim injusto.
Concordo e acrescento que continuará cada vez mais pobre e mais
injusto se não substituir os governantes da elite pelos que
realmente comunguem com a maioria da população. Basta dessa
vergonha de passar dias, meses e anos, discutindo se o deputado
federal, estadual, vereador ou o senador, perde ou não o seu
mandato para poder cumprir pena pelos crimes cometidos. Basta da
impunidade que liberta os criminosos apadrinhados pela elite.
Basta desta falta de respeito pelas instituições brasileiras
que foram criadas por uma história secular vivida por gente
honrada. Basta de assistir aos roubos milionários praticados
contra os organismos oficiais sem que se veja o retorno da
riqueza quase sempre escoada para os paraísos fiscais.
O Estado é um património da população que deve ser limpo mas
não destruído. A participação social do povo deve ser
realizada na fiscalização do desempenho dos governantes e não
para tapar os buracos deixados pelos incompetentes e criminosos.
O Brasil será um país rico quando se livrar dos parasitas que
estão sugando as suas riquezas e enfraquecendo o seu povo sob o
olhar complacente da democracia de serviço que a elite
defende.
O modelo
da sociedade desenvolvida
e a realidade
Quem visita um país
desenvolvido, seja na Europa ou na América do Norte, volta para
o Brasil com autocompaixão. Se não for daqueles que procura
compensar as misérias com cinismo e deboche, procurando
compensações nas formas fáceis de esquecimento -
prostituição, droga, sem-vergonhice, roubo e violência -, se
for uma pessoa preocupada em descobrir os pontos de apoio para se
construir uma sociedade saudável, encontra logo uma infinidade
de polos de desenvolvimento soterrados. Aparentemente os países
desenvolvidos têm a «cultura» e a «educação» que nos
falta. Esta visão está carregada de preconceitos e complexos de
inferioridade.
A cultura brasileira é rica e acompanha o nível de
desenvolvimento internacional. Falta organização e recursos
para que seja possível expandir a sua produção como nas
sociedades ricas. Falta espaço para os que têm talento e os que
querem conhecer as expressões da cultura brasileira. Falta tempo
para que o cidadão descubra a sua capacidade criativa ou para
usufruir do produto cultural existente. A maior saudade que temos
de outras sociedades, aparentemente mais cultas, é da
tranquilidade com que visitamos museus, teatros, oficinas de
arte, bibliotecas, assistimos a concertos ou palestras, é a de
cidades planeadas para favorecerem os moradores e não a
velocidade do mercado consumista.
Muitas vezes temos a oportunidade de presenciar no estrangeiro um
belo espectáculo de artistas brasileiros. Os criadores da nossa
cultura, os que a investigam e desenvolvem novas expressões,
existem com tal qualidade que as sociedades mais ricas os
contratam. O problema está aqui, no Brasil, pela falta de
organização da vida nacional e de respeito pela produção
cultural. Portanto, o que aparece como atraso e
subdesenvolvimento é da responsabilidade exclusiva dos
governantes e seus comparsas que mantêm uma má distribuição
de recursos e uma desequilibrada distribuição da população
por este vasto território. Subdesenvolvidos e atrasados têm
sido os governantes do Brasil. O que falta à população
brasileira é espaço organizado e direitos de cidadania.
Deixem-nos respirar e ser o que verdadeiramente somos sem
máscaras de uma modernidade duvidosa.
O peso da
cultura
da violência
Há quem julgue
também o brasileiro mal educado e quase selvagem. O
comportamento social reflecte o modelo que o governa. Será
difícil esperar que justamente os que vivem pior e são
perseguidos pelas leis que não o favorecem, sejam melhor
comportados que os ex-deputados, corruptos e criminosos, que
saíram do Congresso Nacional para a cadeia, e tantos outros
figurões que nem condenados foram. A escola é péssima e o mau
exemplo soma com a raiva e a falta de esperança. O mais difícil
hoje é formar um jovem capaz de resistir ao modelo cínico e
mafioso exibido com tanto descaramento pelo sistema. E, no
entanto, consegue-se, apesar das pressões constantes
transmitidas pela elite, pela televisão e pelos filmes.
Além dos exemplos que vêm de cima, as máfias do crime
organizado oferecem o emprego que o governo não é capaz de
criar. Entre os excluídos sociais é rara a família que não
tem um parente ligado à máfia para garantir a sobrevivência
dos demais. Esta é uma situação existente em todo o
território nacional, desde os madeireiros da Amazónia aos
ladrões de gado de Marajó, aos traficantes de droga das
favelas, aos que desmancham os camiões e carros roubados nas
estradas ou os que cortam palmitos e orquídeas da Serra do Mar.
Os ladrões que dão a cara são apenas empregados dos cartéis
que controlam o mercado global e as forças bem armadas do crime
organizado.
Quando se fala no crime organizado utiliza-se como referência os
princípios morais para criticar os que sobrevivem à sua custa.
O medo sentido pelas prováveis vítimas dita a linguagem do
apelo sentimental e da ameaça divina. No entanto o tratamento
oficial dado aos infractores não utiliza o sentimento e as
crenças religiosas nas acções governamentais de repressão e
reeducação, muito menos qualquer princípio moral. O criminoso
é visto a partir do crime cometido e não antes, quando as
portas fechadas da sociedade não lhe deixaram outra opção de
vida.
Como escreveu Carlos Mariguella (in «Porque resisti à
prisão?»), herói da guerrilha urbana assassinado em 1969, e
também pelo sociólogo Florestan Fernandes (in «Nos
marcos da violência»), a ditadura militar, que de 1964 a 1985
manteve um regime de violência contra o povo, tornou inviável
uma solução pacífica para os problemas sociais. Hoje, sob uma
democracia racionada ou restrita (da sociedade
reconhecidamente injusta), continuamos a suportar estruturas
violentas com discursos democrático-moralistas que condicionam a
prática da criminalidade como recurso de sobrevivência. Este é
um problema assustador que explica a existência das máfias do
crime organizado como poder paralelo. Os dois poderes se
equilibram na sustentação do sistema e, para um vencer o outro,
a violência voltará sem limites.
Um exemplo claro desta situação foi a criação da FEBEM -
Fundação Estadual do Bem Estar do Menor -, instituição criada
em 1982 pela ditadura, onde os jovens infractores da lei (seja
por roubar um pão ou por assalto a mão armada) são tratados
como detidos perigosos, com extrema violência, de modo que saem
formados como bandidos. Com o aumento da criminalidade há uma
superlotação insuportável tanto nos presídios para adultos
como na FEBEM. São verdadeiras fábricas de bandidos onde as
máfias, muitas vezes infiltradas através de funcionários e
policiais, vão buscar os seus elementos de confiança para agir
nas ruas. É claro que os discursos moralistas são destinados
aos ouvidos da população que é vítima do crime e acredita no
governo. Os que não acreditam procuram pactuar com os bandidos
para garantir a sobrevivência. Avoluma-se uma gigantesca bola de
neve neste círculo vicioso que alimenta a marginalidade social.
Em nome da cultura recebemos uma enxurrada de filmes de
violência e falta de carácter produzidos nos países
«desenvolvidos». É preciso não esquecer que a indústria
cultural está subordinada às regras comerciais de um mercado
dirigido pela política da ganância e de interesses mais
escusos. Se a droga e a prostituição podem ser vendidas com
maior facilidade e com maior lucro, estes serão os temas
predominantes. Se a violência, traduzida em adrenalina, é
produto de primeira necessidade para manter a alienação e a
incapacidade de combater os abusos de poder, esta será a
mensagem principal. São milhares, senão milhões, de textos e
filmes comprados com o dinheiro brasileiro, através dos media
e empresas «culturais», para educarem os nossos «incultos»
jovens. Enquanto isso a nossa cultura vai atraindo os etnólogos
dos países ricos pela sua beleza exótica, assim como o
conhecimento nativo das plantas medicinais vão enriquecendo os
laboratórios estrangeiros. E nós ficamos com a fama de
subdesenvolvidos sem cultura.
Neste quadro vemos que a cultura da violência tem sido bastante
cuidada pelos que pretendem manter a sociedade brasileira na mira
das máfias. E não se pode deixar de reconhecer que os órgãos
de comunicação social colaboram e o governo se omite para que
permaneça a imagem de uma sociedade dominada pelo crime. Para
terminar delegam a Deus a função de bem educar as criancinhas
que crescem nas ruas «sem cultura» e à população o dever de
salvá-las do domínio da máquina do crime. Uma das poucas
coisas organizadas no Brasil é a escola do crime, a cartilha, a
infra-estrutura de apoio, as condições sociais e económicas e
a protecção dos padrinhos.
Cultura
e soberania nacional
Capacidade criativa
e inteligência para utilizar os recursos da moderna tecnologia
não faltam no Brasil. Um dos muitos exemplos é a TV Tagarela
que funciona na favela da Rocinha no Rio de Janeiro. São 200 mil
os seus telespectadores que aplaudem e colaboram nos programas
quotidianos que tratam dos problemas de saneamento, drogas,
saúde e educação. Com financiamento da Holanda montaram o
equipamento e vão formando novos profissionais. Em outras
regiões já existiam rádios que escapam ao modelo
estandardizado dos media globalizada para manter informada
a população de cada comunidade onde habitam os excluídos.
Os organizadores de comunidades, sejam os de ONGs nacionais
ou estrangeiras, sejam as igrejas que fazem trabalho de base,
têm conseguido levar à população mais carente os mecanismos
da comunicação e da formação tecnológica. Com uma certa
autonomia na escolha dos temas é introduzida a cultura do
sistema global, o que se nota imediatamente pela alteração do
vocabulário recheado com termos ingleses da indústria da
comunicação social. A diversidade cultural, que tanto
enriqueceu o Brasil, tem sido moldada pela televisão com o seu
vocabulário restrito e a sua programação medíocre. É uma
arma de dois gumes no combate à exclusão social.
Assim como a sociedade brasileira hoje reflecte uma cultura
herdada da ditadura que deixou toda a estrutura montada para que
prevalecesse o autoritarismo e a injustiça do sistema,
fortaleceu-se a cultura da droga mantida pelo poder paralelo das
máfias, e ainda a cultura da elite que define como desenvolvido
e avançado tudo o que brilha aos olhos do mercado global que
estabelece os limites da indústria cultural. Por baixo, abafada,
persiste à histórica cultura brasileira aliada às raízes dos
princípios éticos da convivência social que foram forjados nos
últimos cinco séculos.
A defesa da cultura brasileira é um dos últimos redutos da luta
pela soberania nacional nesta fase de liquidação das riquezas
herdadas dos 500 anos da nossa história. É também uma
oportunidade de auto-valorização do cidadão brasileiro que tem
sido espezinhado e humilhado por quem se considera elo de
ligação com os países desenvolvidos. Para se ter cultura não
é preciso ser rico, nem doutor, menos ainda cidadão de país
desenvolvido. Basta ter história e conservar a memória do que
aprendeu, viu e ouviu durante a sua existência. Para não ser
afogado na anticultura, ou sob o peso da cultura da violência é
preciso levantar a cabeça e não aceitar novas formas de
colonialismo, mesmo que impostas por brasileiros.