A
TALHE DE FOICE
O
Bastonário
Numa entrevista publicada no DN, o
Dr. Germano de Sousa, Bastonário da Ordem dos Médicos,
afirmou-se mais uma vez um homem de certezas o que, convenhamos,
não constitui grande originalidade. A ascensão intelectual
feita há cerca de 2.500 anos por Sócrates a caminho do seu
célebre «Só sei que nada sei» sempre teve, desde esses 2.500
anos para cá, o contraponto de abundantes criaturas propensas a
descer alegremente a ladeira por onde escorrega uma grande e
contrária certeza a de que sabem tudo.
Perguntado sobre o que pensa das medicinas alternativas, o Sr.
Bastonário soterra-as numa avalanche de certezas e só
condescende com a acupunctura, a quem reconhece que «tem efeitos
bem comprovados», embora considere, desdenhosamente, que um
médico da medicina tradicional chinesa «deve exercer na
sociedade que o aceita».
Se assim é, por que não consente a Ordem dos Médicos o
exercício da medicina tradicional em Portugal (e não estamos a
falar de curandeiros nem mezinhas), flagrantemente aceite e
frequentada pela sociedade portuguesa? Quanto à homeopatia, «é
vender água pelo preço de oiro» e não passa de «um sistema
dito "médico" porque pressupõe bases científicas que
não têm a mínima correspondência com o que o progresso
científico sabe».
O que o progresso científico sabe deve-o, em grande medida, ao
facto de não cristalizar o método em que assenta a
experimentação e a verificação num fim que produz
verdades absolutas, mas num instrumento que gera certezas
provisórias. Quanto à homeopatia, não sei se é apenas água
ou mais do que isso, mas também sei com saber de experiência
feito que a Medicina convencional servida aos portugueses está
longe de tranquilizar os cidadãos e mais longe ainda de
reivindicar a arrogância do saber total.
Além disso, buscar respostas naturais para a enfermidade não é
também experimentar e verificar? E a Medicina, seria hoje o que
é sem essas outras investigações dos padecimentos que não se
entrincheiram no bloco operatório nem vêem as patologias do
mundo exclusivamente a partir dum laboratório farmacêutico? E
será correcto ver o corpo humano através deste fundamentalismo
científico do Sr. Bastonário, olhando-o como uma espécie de
máquina onde apenas se pode intervir com peças de origem nos
laboratórios farmacêuticos? Mas se nem os automóveis são tão
lineares! Muitas vezes basta perceber-lhes os ruídos para os
livrar de tormentos prematuros nas oficinas! Veja-se o rosário
de sofrimentos que regularmente é desfiado nos serviços de
ortopedia deste país no tratamento de deslocamentos de ossos:
enfaixados cientificamente, encharcados de analgésicos, os
pacientes acabam frequentemente a encontrar o fim do seu
calvário nas mãos dum «endireita». Às vezes o «endireita»
dá para o torto, o que é mau, mas verdadeiramente mau não é
haver «endireitas» armados em médicos, é não haver médicos
que tenham a capacidade dos endireitas para aliviar os pacientes.
E nunca há de haver, com esta obsessão em se restringir o mundo
a um laboratório de verdades absolutas.
Todavia, um momento houve em que o cientismo do Sr. Bastonário
claudicou, convocando o simples desinteresse da indústria
farmacêutica pelos medicamentos alternativos como prova de que
«sabem que não tem efeito...»
Sabem como? Onde é que o demonstraram «cientificamente»? E
não haverá hipótese de tal rejeição procurar, simplesmente,
que não lhes estraguem o monopólio?
O que sabemos, Sr. Bastonário, é que a reivindicação
corporativa do saber absoluto nunca passou de uma arrogância
anti-científica movida por interesses particulares e
desembocando, invariavelmente, na prepotência e na impunidade.
Como, aliás, se viu na sua chocante indução de que o próprio
Presidente da República andaria a promover os bruxos e
curandeiros, só porque não prestou vassalagem à sua
concepção de acto médico... Henrique
Custódio