Sem sombra de vergonha

Por José Casanova,
membro da Comissão Política do CC do PCP


O mundo capitalista, hoje, é o Mundo. Contestado e combatido por milhões de pessoas mas dominante.
«E contudo ela move-se...».
Proclamando-se – após a derrota da primeira grande tentativa de criação de uma sociedade nova - vencedor definitivo, etapa última do progresso social e do desenvolvimento, fim da história... o capitalismo voltou a exibir ostensiva e arrogantemente a sua essência opressora e exploradora.

Os múltiplos fenómenos que lhe são característicos, muitos dos quais durante décadas viveram camuflados por força das circunstâncias, passeiam-se agora à luz do dia, desnudam-no como factor de regressão civilizacional, como factor de regressão absoluta da humanidade e indiciam o enfraquecimento (lento sem dúvida, mas crescente) das bases sociais que sustentam o seu domínio político. Quer isto dizer que – como vários observadores já sublinharam – o capitalismo, quer como sistema económico e social quer como sistema político, é um sistema fracassado e em inevitável rota de derrota. Optimismo resultante de confundir sonhos com realidades? Não: falo numa perspectiva histórica, baseado na análise concreta da situação concreta que é o Mundo actual e na convicção de que valores humanos essenciais hoje submersos pela vaga de antivalores dominantes, acabarão por emergir e impor-se – e sempre tendo em conta, naturalmente, que muitos e grandes são os obstáculos que se opõem aos que persistem em lutar contra este sistema e lhe contrapõem uma alternativa de facto solidária, fraterna, justa, livre.

A insistência e a intensidade com que, através de poderosíssimos meios de difusão, são exaltadas as supremas qualidades do sistema capitalista, levam qualquer cidadão desprevenido ou distraído a concluir que vivemos no melhor dos mundos e que as injustiças e desigualdades existentes são como que fatalidades decididas superiormente e, por isso, inevitáveis. Isto se não o tiverem já levado a concluir que, de facto, vivemos rodeados de justiça, de liberdade, de respeito pelos direitos humanos, de democracia plena, enfim. Aliás, um dos grandes êxitos da ideologia dominante reside, precisamente, em ter conseguido – por efeito de uma permanente e monumental operação de lavagem de cérebros e através de uma vasta rede de chantagens económicas, sociais, políticas, culturais – moldar o pensamento de milhões de pessoas, transformando-as em inconscientes transmissoras das ideias que melhor servem os interesses da classe dominante. Um dos principais objectivos da poderosa ofensiva ideológica que hoje varre o Mundo é o de, convencendo o cidadão anónimo de que as ideologias acabaram, transformá-lo em divulgador activo da ideologia dominante. Assim, o ser humano é cada vez mais empurrado para a situação de espectador passivo da realidade, ao qual se exige apenas que trabalhe e veja o posto de trabalho (mesmo que obtido a título precário) como uma benesse; que não se deixe influenciar pelos que o incitam a lutar por melhores condições de trabalho e salariais; que, acabado o dia de trabalho, eventualmente cumprindo horas extraordinárias que não recebe, regresse a casa, não perca tempo com leituras perniciosas e se sente frente à televisão até adormecer; que não permita que o vizinho ou o colega tenham um carro melhor ou um aparelho de televisão mais moderno do que os seus; que utilize para além de todos os limites os muitos cartões de crédito que lhe são proporcionados e que, assim, se endivide cada vez mais; que exiba perante os outros um estatuto social muito superior ao que realmente tem; que vote sempre e que vote bem, isto é dando a maioria aos partidos que lhe oferecem essa qualidade de vida – e só a eles; e que, após as eleições, volte pacífica e civicamente ao trabalho, à televisão, ao carro, ao cartão de crédito... até às próximas eleições. Ao cidadão desempregado recomenda-se-lhe e injecta-se-lhe a paciência e o voto... o voto nos tais partidos que oferecem a tal qualidade de vida...

Tudo começa e tudo recomeça, assim, nas eleições, no sufrágio universal que, conjuntamente com o multipartidarismo, por si sós e independentemente das expressões que assumam, são a democracia.

Ora, um sistema que reduz o seu conceito de democracia a esses dois valores e deles faz as suas bandeiras únicas é, obviamente, um sistema com um paupérrimo conteúdo democrático ou pior do que isso. De facto, limitar a democracia à sua vertente política escamoteando-lhe as vertentes económica, social e cultural configura um conceito de democracia profundamente... antidemocrático. E se, para além disso, se transforma cada vez mais essas duas bandeiras em elementos decorativos, adulterando-as, moldando-as à medida dos seus interesses, então estamos perante uma farsa, entramos no reino da mascarada democrática. E é disso que se trata.

Tomando como referência o exemplo dos Estados Unidos da América – «berço da democracia» e expoente máximo deste sistema e de todas as suas bondades democráticas – verificamos, em primeiro lugar, que só uma total ausência de rigor (e de seriedade) pode levar seja quem for a denominar por multipartidarismo o sistema partidário ali existente. Na verdade, os dois únicos partidos que têm possibilidade de ser governo são partidos do sistema, sendo impossível detectar entre eles quaisquer diferenças essenciais e de fundo, realidade que é camuflada por imensas e permanentes vagas de exibição de diferenças superficiais e anódinas. Quer isto dizer que estamos, de facto, perante uma iniludível mistificação e que, na melhor das hipóteses, o tão exaltado e incensado multipartidarismo dos EUA não passa, afinal, de um prosaico e contrabandeado unipartidarismo bicéfalo.

Continuando no rasto do exemplar modelo de democracia política estado-unidense, constatamos, em segundo lugar, que em matéria de sufrágio universal a situação não é melhor: assegurando previamente, e sem margem para qualquer devaneio democrático, a vitória de não importa que cabeça do partido do sistema, o modelo tende a ficar reduzido a nada no que toca à participação eleitoral dos cidadãos. E só um grande sentido de humor negro e de desrespeito pela inteligência das pessoas pode levar a que se glorifique o sufrágio universal num país onde a abstenção chega a atingir e, por vezes, ultrapassa, os 70% ... Eis um exemplo expressivo do estado de saúde dos pilares básicos da democracia política que nos é impingida como modelo.

Entretanto, e como se vê, a exportação do modelo norte-americano é hoje, e cada vez mais, uma realidade concreta que ameaça atingir dimensão planetária. Um dos tais fenómenos característicos do capitalismo que acima são referidos é, precisamente, o da construção artificial da alternância e da bipolarização, vistas como condição essencial para assegurar um poder político que dê ao sistema a tranquilidade de que o sistema precisa, que crie condições para que, seja qual for a sigla que estiver no Poder, nada de essencial seja posto em causa. E assim está a ser feito.

É nesse conceito de democracia política que se insere a tão proclamada «necessária reforma do sistema eleitoral» no nosso País. O pretexto invocado é o combate à abstenção – embora nenhum dos subscritores da exuberante tese tenha até agora explicado qual a relação entre sistema eleitoral e abstenção. Da mesma forma que ninguém se deu ao trabalho de interpretar o facto de a abstenção estar em processo de crescimento constante em países com sistemas eleitorais os mais variados, aliás atingindo em muitos deles níveis bastante superiores aos registados em Portugal. E porque tudo parece indicar que a abstenção pouco ou nada tem a ver com o sistema eleitoral e tem muito ou tudo a ver com o sistema político, económico, social e cultural dominante, é legítimo concluir que os fervorosos defensores da «reforma do sistema eleitoral» estão muito menos preocupados com a abstenção do que com o reforço desse sistema dominante. Daí a operação em curso visando obter, através de mecanismos de engenharia eleitoral e machadando a proporcionalidade, aquilo que o eleitorado português sempre tem lucidamente recusado: a garantia para toda a eternidade da bipolarização e da alternância.

«O mundo capitalista - de que a IS é o actual expoente – parece já não ter sombra de vergonha» - escreveu Victor Cunha Rego no «Diário de Notícias» de Segunda-feira passada. De facto assim é.


«Avante!» Nº 1357 - 2.Dezembro.1999