Diz-me quem
(e como) lês...

Por Sérgio Ribeiro


Diz-me quem lês. Mas também, e talvez melhor, diz-me como leste quem leste ou estás a ler. Dir-te-ei como estás... Vamos para as leituras cheios de preconceitos, quanto aos autores, quanto aos temas, quanto à oportunidades destes tratados por aqueles. Por vezes, tão fortes são os preconceitos que impedem os leitores de retirar, do que lêem, aquilo que a leitura tinha para lhes dar. Que, em alguns casos, muito é ou poderia ser.

Estas observações valem para os dois sentidos. Os preconceitos podem ser do tipo do leitor tudo ir aceitar do que o autor possa ter escrito sobre o tema, ou do tipo de nada ir aceitar do que o autor tenha escrito, ainda que sejam verdades como punhos, mesmo que demonstrem, em toda a clareza, as mentiras que foram ditas e escritas por outros para levarem a água ao seu moinho ou ao moinho de quem tem moinhos.
Estou a escrever, como algum leitor mais atento que possa ter – se leitores tenho... e, se os tenho, tenho-os cheios de preconceitos – terá já adivinhado, a partir de reflexões que me suscita o livro de Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (a contra-revolução confessa-se), que li, com os meus preconceitos, mas, consciente deles, com um grande esforço para que eles não me prejudicassem as lições que dele sabia ter para colher.
O facto é que estou convencido de que muito aprendi – aprender, aprender sempre, como dizia o outro que Lenine tinha por pseudónimo – e que valeu a pena o esforço de tornar a leitura difícil. Treino que, aliás, procuro praticar em todas as leituras que vou fazendo.
Não vou, como será óbvio, e por várias razões, comentar o livro. Entre outras razões porque leituras como esta exigem um tempo de sedimentação, um repegar neste ou naquele capítulo, uma segunda leitura, se não do todo, pelo menos de algumas partes.
No entanto, é precisamente uma dessas releituras, já feitas com o livro ainda a quente, que me empurra para vir à escrita.
O tema do poder, o que é e como se reparte numa sociedade dividida em classes sociais, como fazer uso do poder que se consegue, como lutar para o conquistar, parece-me tema prioritário e particularmente oportuno. Um poder multiforme, com nível autárquico, nível regional – ainda que só desconcentrado do poder central –, nível nacional e também nível supranacional. O poder como exercício e como abuso.
Quase no final, depois de toda a enorme documentação e testemunhos que o ensaio sistematiza, escreve Álvaro Cunhal que é fácil o abuso e a absolutização do poder quando não existem, ou existindo não são assegurados, princípios e mecanismos de fiscalização do seu exercício.
As páginas que se seguem são uma ilustração (mais uma daquelas em que o livro é pródigo) de como a prática destes anos portugueses comprovam essa consideração nuclear sobre o poder e o seu exercício.
Ilustração de como a Constituição de 1976 definiu as competências dos órgãos de soberania, as suas independências no âmbito das competências próprias e as interdependências nesse quadro constitucional. No sentido de prevenir e de contrariar poderes absolutos e abusos de poder
Ilustração de como o processo contra-revolucionário foi pondo em causa, sucessiva e sistematicamente, todos esses princípios e as práticas correspondentes. Desde o Presidente da República – que chegou a ser considerado «força de bloqueio»!...- ao Tribunal Constitucional, da Assembleia da República e do próprio Governo ao Magistério Público, os mais variados órgãos de fiscalização democrática do exercício do poder (Alta Autoridade para a Comunicação Social, Comissão Nacional de Eleições) têm sido hostilizados e desautorizados quando fiscalizam de facto e incomodam um «certo» poder. De classe.
Para mais, como sublinha Álvaro Cunhal, «a progressiva liquidação de mecanismos de fiscalização do exercício do poder foi realizada em nome do aperfeiçoamento da democracia e em nome da "estabilidade"». Democracia que se tem degradado, estabilidade que se tem revelado muito instável, económica, social, culturalmente. Mas que, em contrapartida, tem polarizado o poder económico, agravado as desigualdades sociais, colonizado culturalmente.
Estará a ampliar-se o cisco no olho do vizinho para esconder o pedregulho que nos atingiu a vista?
Para responder a esta pertinente e tão oportuna questão seria aconselhável recuar uns anos (o tal Congresso Extraordinário, em Loures, em 1990) e umas páginas e reler o que, no princípio do livro – para que, aliás, o autor remete o leitor ao escrever esta parte do capítulo final –, se afirma, sem qualquer ambiguidade: «a história e a experiência universais e a história das sociedades do século xx mostram que, tanto nos países capitalistas como em países socialistas, o abuso do poder é fácil, frequente e com consequências perversas». Porque, como logo adianta, «o abuso do poder é fácil e facilmente impune em todas as áreas da vida social, incluindo nos partidos políticos, se não há mecanismos de fiscalização democrática do seu exercício».
Haveria, agora, que discutir o que se entende por fiscalização democrática, por democracia. Se ela é aquilo que o poder económico decreta que seja, com uma aparente (e hipócrita) exigência no que respeita a liberdades e garantias individuais e excluindo dos princípios democráticos os direitos e garantias sociais, culturais, económicos (a democracia à porta das empresas?).
Mas fiquemo-nos, hoje, por esta anotação que leitores distraídos, ou que só lêem o que confirma preconceitos, têm ignorado. Porque a sua ideia de democracia tem inerente o permanente (e natural) abuso do poder. Sobre os trabalhadores.


«Avante!» Nº 1357 - 2.Dezembro.1999