Ilusões


Um amigo contava outro dia, para ilustrar a pobreza do palmo de terra que lhe coubera em sorte, que no local o pasto era tanto ou tão pouco que as magras ovelhas que persistia em criar o perseguiam em cavalgada sempre que aparecia de calças verdes.
A história veio-me à lembrança a propósito da conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC) que reúne em Seattle, nos EUA, representantes de 135 países.
A iniciativa é patrocinada pela Microsoft e pela Boeing. Não há nada de estranho nisto, é tão só um sinal dos tempos. E os tempos da globalização que se discute em Seattle é o das multinacionais que rivalizam com os Estados enquanto potências económicas.
Ninguém poderá pois estranhar que uma General Motor (EUA), uma Mitsui (Japão) ou uma Exxon (EUA), cujo volume de negócios é superior, respectivamente e por ordem decrescente, ao Produto Interno Bruto (PIB) da Dinamarca, da África do Sul ou da Grécia, queiram ter uma palavra a dizer sobre o futuro da globalização. Também não se poderá estranhar que uma Ford Motor, por exemplo, que movimenta mais capital do que a Noruega, a Arábia Saudita, Portugal ou o Egipto, tenham mais peso do que aqueles e muitos outros Estados nas decisões que vierem a ser tomadas.
Se a lógica das multinacionais e dos Estados ricos é elementar, o mesmo não se poderá dizer da que preside ao pensamento de quem, fazendo parte dos mais pobres entre os ricos, se deixou inebriar pela ilusão de pertencer ao clube, como aqueles porteiros de farda à general que por abrirem a porta aos sócios acreditam ser da elite. Escreve José Manuel Fernandes no editorial de anteontem do «Público» que os esforços da OMC «são do nosso interesse - daqueles que fazem parte do mundo mais ricos -, assim como são do interesse dos pobres e desvalidos do planeta». Porquê? Porque «a livre circulação de mercadorias (...) permitirá - idealmente - que essas mercadorias sejam produzidas onde é mais barato e mais eficaz produzi-las, e vendidas onde delas há necessidade». Um breve olhar para os resultados já produzidos pela globalização basta para revelar que «onde é mais barato» produzir é nos paupérrimos países onde grassa o trabalho infantil, o trabalho escravo, o trabalho sem direitos, o trabalho pago a preços de miséria. E que onde as mercadorias são vendidas, a baixo preço, encerram as empresas onde antes essas mesmas mercadorias eram produzidas, lançando no mercado sucessivas vagas de desempregados. O mesmo olhar breve revela ainda que crescimento económico não é sinónimo de desenvolvimento económico e muito menos de justiça social. Nada disto parece incomodar JMF, para quem «a OMC é a mais democrática das instituições jamais criadas» no domínio da economia e dos mercados porque, diz, «pela primeira vez, começa a haver um direito internacional que não é apenas o direito do mais forte a impor a sua vontade».
Desconhece-se em que mundo vive JMF, embora seja de admitir que, a exemplo das esfomeadas ovelhas da história, tenha uma especial predilecção por fardas e galões de latão, cujo dourado deve tomar por ouro puro. Pela nossa parte - catalogados por JMF como aqueles de que «não rezará a história», os que «estão do lado conservador, intolerante e passadista dos nossas sociedades» - acreditamos não só que o mundo não é uma mercadoria, mas também que os lucros devem ser para as pessoas. Para as pessoas todas, o que obviamente dará menos a cada um, mas dará sem dúvida muito mais justiça social.
É a velha questão de quem faz o bolo e de quem o come. Velha e tão actual, imagine-se, que ainda há quem não a tenha percebido. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1357 - 2.Dezembro.1999