O suave milagre


Em muito do que se tem escrito nos últimos dias sobre a famosa «reforma do sistema político» há várias coisas que nos têm vivamente impressionado.
A primeira é, desde logo, uma espécie de sebastianismo ressuscitado que quase nos quer fazer crer que, com mais umas leis e ou uns retoques legislativos (ainda que úteis e não desprezíveis, acrescentamos), teremos acesso a um Olimpo político de santidade e perfeição.

De facto, lendo a prosa de alguns, parece que se congemina um suave milagre (que esperamos que o Papa, se cá vier em Maio de 2000, já possa reconhecer), graças ao qual os putativos corruptos passarão a pessoas de irrepreensível honestidade; os contumazes demagogos se transferirão de armas e bagagens para o campo da seriedade e da sobriedade; as grandes e impenitentes vedetas da «política-espectáculo» deixarão os palcos do seu péssimo espectáculo para só pisar os nobres tablados da política dos valores, da coerência, do respeito pelos compromissos, da dedicação ao interesse público; e, sobretudo, os eleitos e os eleitores terão empreendido um histórico processo de «reconciliação» e um comovente movimento de «aproximação» que deixará uns e outros a rebentar de tanta intimidade.
A segunda coisa que nos causa forte impressão é que, em quilómetros de comentários sobre os «vícios» do «sistema político» (repare-se como, nestas alturas, é conveniente falar do «sistema» para não falar dos verdadeiros responsáveis), não apenas se faça um silêncio de chumbo sobre a relação, hoje incontornável, dos «media» com o «sistema político» mas também a generalidade dos «media» volte a assumir a postura dos implacáveis justiceiros, flagelando sem dó nem piedade alguns defeitos, vícios e comportamentos que nunca teriam ganho a expressão e a gravidade que ganharam sem a prestimosa ajuda dos próprios «media» e dos seus critérios e opções.
Também aqui seria aconselhável uma maior prudência porque, se o suave milagre acima descrito se confirmar, muita coisa teria de mudar nas orientações dominantes no sistema mediático nacional, pois iria perder muitos assuntos, factos e acontecimentos virtuais, e quem sabe mesmo se, por exemplo e a bem da aproximação dos eleitos aos eleitores, não teriam de passar a informar decentemente a opinião pública do que se discute, do que se vota e do que cada partido defendeu e como votou no Parlamento, o que hoje em dia raramente é uma relevante prioridade.

E, finalmente, a terceira coisa que nos impressiona (ou talvez nem tanto) é o regresso do que se poderia chamar a lógica férrea das generalizações. Que, antes, se manifestava na quase geral recusa de apurar ou identificar diferenças de orientação, de atitude e de comportamento das diversas forças políticas e agora se expressam na ideia difusa, mas falsa e não inocente, de que haveria uma grande «consenso» inter-partidário em torno da alegada «reforma do sistema político».
É que, na sessão de abertura da nova legislatura e com o Presidente da República a ouvir, o PCP já disse bastante para se perceber que assim não é, e que grande é a diferença entre a superficialidade da cosmética de ocasião e a real vontade de melhorar a democracia portuguesa.— Vítor Dias


«Avante!» Nº 1357 - 2.Dezembro.1999