O condomínio fechado da 3ª via


Uma megafantasia política tenta percorrer e ganhar o mundo: a chamada 3ª via, oferecendo aos povos um planeta sorridente, mansamente descansado das suas desgraças, até contente em paz com a fome e o desemprego, imune a violências, guerras e discriminações – isto é, instalado numa nova ordem mundial globalizada, sob a égide do mercado capitalista, triunfante e triunfal.
Adam Smith, o grande economista do «equilíbrio perfeito» entre a oferta e a procura, decerto ele próprio se espantaria com a arrogância de quem quer dar comandos ao mundo a partir de um omnipotente mercado global. Nos tempos modernos nunca nos fora dado deparar com uma tal teoria e prática tão perigosamente totalitárias como as que se manifestam no que ficará para a memória histórica com o nome enganador e deturpador de globalização. Totalitarismo que agora pretende deixar de ter fronteiras e soberanias nacionais: quer ultrapassá-las com todos os mecanismos e injunções, num só e único poder.
Perguntar-se-á se em Florença essa chamada globalização se quis dotar de instrumentos jurídicos, isto é, compulsivos – e obrigatoriamente rentáveis para quem os impõe. Mas não é bem assim. A compulsividade já se encontra nas mãos do FMI, do Banco Mundial, da NATO, da Organização Mundial do Comércio... O objectivo de Florença era outro: criar uma cobertura político-ideológica «de esquerda» à dominação global capitalista.
A Internacional Socialista estava lá para isso.

Chamando Clinton à sua cimeira de Florença, a IS (agora secretariada pelo social-cristão Guterres) identificou-se oficialmente com a «nova ordem mundial» proclamada no pós guerra fria pelos EUA, clarificando assim a sua identificação com aquilo a que Bernard Shaw, referindo-se a um certo socialismo, chamava um «parasitismo total». A 3ª via é a prova mais claramente expressa, e agora notarialmente reconhecida em Florença por firmas ilustres a assinar por baixo, de uma fachada (ainda) social democrata para dar cobertura ao totalitarismo neo-liberal.
Apresentando-se como um pretenso Astérix europeu, que até vai falando de diversificação cultural em relação aos EUA, a IS esqueceu-se de tomar uns golinhos de poção mágica, para imaginar e apresentar espaço futuro. Porque a Europa «globalizada» que ela pretende representar, sem ideologia, sem marcos doutrinais, vende barato a sua história, tão digna de ser pensada e projectada em novos passos, entregando-a às mãos decadentes do império romano – perdoem a gralha; o que queria dizer era: do todo poderoso império norte-americano.

Este encontro de bem abastecidos figurantes nada pode oferecer aos tantos milhões de condenados em vários continentes que, para solução da sua miséria e esperança de desenvolvimento económico e social confiaram nos enganos do neo-liberalismo e da social-democracia. Reunidos no seu condomínio fechado de Florença os gestores da globalização não puderam esconder o medo de que a irresistível, forte e justa tentação de igualdade e justiça, se vá tornando cada vez mais séria, com ideias e acções que ameacem o ruir, não de um simples muro, mas de uma verdadeira muralha a separar passado e futuro.
Atravessando essa muralha, um fantasma esteve presente em Florença: o fantasma das ideias do socialismo. Mesmo depois de lhe terem decretado a morte, os administradores do condomínio capitalista sabem que esse ideal continua vivo e tem força para gerar dinâmicas capazes de pôr cobro aos seus sonhos de dominação global. Um fantasma que em cada dia renasce, se torna real e ganha vida com a luta e a esperança de milhões de seres humanos.


«Avante!» Nº 1357 - 2.Dezembro.1999