Liquidação total


Quem, há algumas semanas, minimamente se deslocava em zapping pelas televisões nacionais e, também, pelos canais estrangeiros acessíveis pelo satélite ou pelo cabo, terá seguramente reparado na verdadeira avalancha de programas, documentários ou simples notícias-tipo-efeméride relacionadas com os dez anos passados sobre a chamada «queda do Muro de Berlim» e que, em verdadeiro tom de fanfarra triunfante, enxameavam os telejornais de todo o mundo.
Não se pode estranhar, convenhamos, que os porta-vozes da classe dominante e os detentores dos correspondentes meios de difusão do «pensamento único» tenham aproveitado a efeméride para festejar o apressadamente chamado «fim da História» - embora não parecendo cuidar de se precaver em relação àquilo que, com o decorrer dos anos, foi surgindo perante a opinião pública, de forma mais ou menos transparente, como... «o repetir da velha história».
Claro que, em meio de uma escandalosa uniformização que nada abona em termos de pluralismo da informação, forçosamente um ou outro programa teriam de conseguir, apesar de tudo, transmitir uma ideia mais objectiva daquilo que, no plano das relações internacionais, toda a gente com um palmo de testa hoje reconhece ter sido mais do que uma «reunificação» entre dois países: a «anexação» de um pelo outro, à sombra das sempre exaltadas liberdades formais de uma democracia burguesa cuja prática real sucessivamente se tem afastado, ao longo da História, dos valores intrínsecos da verdadeira democracia política, mas também social, económica e cultural.
Um desses programas terá passado despercebido aquando da sua transmissão, em 3 e 4 de Novembro, pelo canal franco-alemão Arte sob a forma de um documentário de duas partes (de uma hora cada) intitulado significativamente, na sua versão alemã, «RDA: Liquidação Total – A História da Treuhand, 1990-1994», e realizado ainda este ano por Axel Grote e Michael Jürgs.
Daí, o necessário destaque que aqui parece oportuno ser-lhe dado.
Com o apoio de forte documentação audiovisual, na qual abundavam declarações (hoje em parte libertas de evasivas e disfarces) de muitos dos protagonistas e responsáveis de então, nele se abordava, de uma forma bem mais transparente do que é habitual, todo o processo de anexação levado a cabo pelas autoridades de Bona em relação ao antigo território da RDA, designadamente no que toca a vertente económica desse processo e suas dramáticas consequências no campo social - verdadeiras cicatrizes das profundas feridas hoje ainda longe de sarar.
E nele se escalpelizava, sobretudo, ponto por ponto, a estratégia levada a cabo (desde a sua fundação em Julho de 90) por uma sociedade fiduciária – a Treuhand – criada pela administração Kohl para assegurar a transição monetária nos novos Ländern criados na parte Leste da Alemanha e, acima de tudo, a transição da «economia planificada» para a «economia de mercado».
Uma transição que, em menos de um ano e mesmo levando em conta a situação anterior de «emprego artificial», provocou um imediato exército de 2,7 milhões de desempregados - hoje elevado, só no campo da indústria, para 4 milhões - tudo agravado pelas tremendas desigualdades criadas no campo do direito à saúde ou da fiscalidade e na gritante disparidade na distribuição dos rendimentos, com o indisfarçável aprofundamento (até psicológico) das divisões entre Leste e Oeste e, no fundo, a aviltante manutenção da divisão do povo alemão em cidadãos de primeira e de segunda.
Que os quatro anos de actividade da Treuhand (verdadeiro e impune Estado dentro do Estado) se revelaram paradigmáticos de uma actuação de sistemática destruição de estruturas produtivas de propriedade social e sua substituição por poderosas sucursais dos grandes grupos económicos capitalistas ocidentais ficou claro no decorrer do documentário. Mais grave, ainda: nele se denunciaram os erros de avaliação de um processo conduzido de cima para baixo, sem qualquer audição daqueles que se dizia serem os mais interessados, e sem qualquer discussão pública, mesmo no campo da RFA, acerca das grandes questões financeiras e económicas.
Daí, os grosseiros e reconhecidos erros de apreciação e estratégia na privatização a todo o custo das antigas empresas estatais da RDA, como é o caso da zona de forte implantação da indústria metalúrgica de Immelbron, na Turíngia, a perda da histórica identidade industrial de regiões inteiras ou o encerramento de empresas florescentes, como em Bischofferode; mas, também, a profusão de escândalos na intervenção desvergonhada e gananciosa de grandes empreendedores oeste-alemães, os inúmeros casos de gestão dolosa dos próprios fundos da Treuhand ou o enriquecimento fraudulento por parte de «empresários» sem escrúpulos, como em Halle. Factos que a já clássica invocação dos chamados «segredos de Estado» impediram de ser exaustivamente analisados pela própria Comissão de Inquérito criada no Parlamento de Bona!
Como se vê, sem margem para dúvidas, bem no centro da Europa, mais um exemplo da «globalização» cujas consequências nefastas os teóricos de novas «terceiras vias» tentam nestes dias inverter, para tal lhe inventando um dito «rosto humano». Mas onde é que nós já ouvimos isto? — Francisco Costa


«Avante!» Nº 1357 - 2.Dezembro.1999