O muro das aparências


Continuam as acesas polémicas em torno da questão de saber se estamos ou não a algumas semanas da entrada de um novo século e de um novo milénio. A razão diz que não. A aparência diz que sim. E como, neste Mundo em que, segundo se diz, a informação, em catadupas, circula veloz por moderníssimas auto estradas – mas em que, é preciso dizê-lo, a desinformação e a não informação gozam de iguais prerrogativas - a aparência continua a dominar... é óbvio que a esmagadora maioria da população do Planeta vai comemorar, dentro de algumas semanas, a passagem do século e do milénio... Este caso concreto de domínio da aparência sobre a razão e a realidade é exemplar do que se passa, de uma forma geral, no Mundo actual.
Também é verdade, no entanto, que um pouco por todo o lado surgem fortes e crescentes sinais evidenciadores de que as coisas não têm que ser sempre assim, que não estamos fatalmente condenados a sofrer o triunfo da aparência, da mentira, da falsidade. O sistema capitalista, que hoje domina o Mundo e que tem procurado impor-se como «o fim da história», «a ordem natural das coisas», contra a qual não é necessário nem vale a pena lutar, é contestado por segmentos cada vez mais vastos da humanidade e, por efeito disso, desnuda-se cada vez mais, exibe crescentemente à luz do dia a sua essência opressora e exploradora – e as aparências por detrás das quais tem ocultado essa real essência tendem a dar lugar à nudez crua da verdade.

Ninguém contesta o papel desempenhado pelas dezenas de milhares de pessoas que se manifestaram em Seattle, nos resultados da conferência da Organização Mundial de Comércio. Com efeito, parece ser generalizada a opinião de que o recuo a que foram forçados os chefes da globalização capitalista, só foi possível graças, nomeadamente, à acção consciente, determinada e persistente levada a cabo por iniciativa de um vasto e diversificado conjunto de estruturas – sindicatos, ong’s, movimentos ecologistas, organizações políticas de esquerda – e que mobilizou a multidão de Seattle e influenciou decisivamente sectores significativos da opinião pública mundial. Também parece não deixar margens para quaisquer dúvidas o facto de a grandiosidade e a força dessas acções de protesto terem constituído uma autêntica surpresa não só para os promotores da conferência da OMC mas igualmente para a generalidade dos observadores mundiais. O que não surpreende, na medida em que, à força de tanto apregoarem o fim e a inutilidade da luta, à força de tanto prégarem a passividade e o conformismo, é natural que eles próprios se tenham convencido do que diziam e escreviam, que eles próprios tenham tomado a aparência pela realidade.
A verdade é que as poderosas manifestações de massas ocorridas nos últimos dias em Seattle constituem uma realidade e são, por isso, um dado importante a reter: elas confirmam a importância, a necessidade e o valor da luta, mostram a existência de um enorme potencial de disponibilidades e vontades para as lutas do futuro e, porque assumiram um conteúdo de crítica ao sistema capitalista, reforçam a confiança e abrem novos caminhos à esperança na vitória da realidade sobre a aparência.

Uma multidão de cerca de cento e cinquenta mil pessoas travando uma luta com as características acima referidas teria que causar, necessariamente, sérias preocupações e múltiplos receios aos que, por obrigação e precaução, têm a tarefa de defender a ordem capitalista. E assim aconteceu. As preocupações e receios assumiram a forma habitual nestas circunstâncias: violência destemperada contra os manifestantes, centenas e centenas de pessoas arrastadas para as prisões, o estado de emergência decretado para facilitar a repressão – tudo isto enquanto, lá dentro, essa destacada figura de «esquerda» que é o Presidente Clinton, exibindo o seu sorriso made in USA, proclamava que «numa sociedade livre, as pessoas querem ser ouvidas» e «devem ser ouvidas». Ou seja, e mais uma vez: lá dentro a aparência, cá fora a realidade, lá dentro o capitalismo com a sua máscara humana, cá fora o capitalismo à solta mostrando-se como é. Na «pátria dos direitos humanos», no «berço da democracia e da liberdade», é assim que as coisas se passam: tudo, ou quase tudo, pode ser permitido e tolerado a quase todos... desde que se portem bem, isto é desde que não contestem minimamente o intocável, o sacrossanto sistema.

A propósito, recorde-se a recente Cimeira Ibero Americana realizada em Havana e os esforços desenvolvidos pelo imperialismo norte americano não só para a boicotar – pressionando presidentes de diversos países no sentido de não participarem – mas também para criar em torno dela um ambiente de tensão, de agitação, de conflitos. Para o Governo dos Estados Unidos da América, a Cimeira de Havana teria que ser «um momento alto de contestação do regime cubano», de «demonstração da ausência de liberdades em Cuba», enfim de confirmação de tudo o que a propaganda veiculada às ordens da CIA se encarrega de difundir por todo o Mundo. As grandes cadeias de televisão norte americanas davam conta daquilo a que chamavam uma «atmosfera de grande tensão» existente em Cuba nos dias que antecederam a Cimeira, garantiam que a «crescente oposição ao regime» envolvia camadas cada vez mais amplas da população e anunciavam uma «grande marcha da oposição» que, ao longo de seis longos quarteirões, iria contestar massivamente o regime – enquanto as rádios de Miami lançavam lancinantes apelos à mobilização para a «marcha». Entretanto, e para dar força à aparência que difundiam, produziam dramáticas «informações» referindo «o assassínio de crianças em Cuba»...
O que realmente se passou é conhecido: os chamados dissidentes apareceram mais ou menos à hora marcada, cumpriram melancolicamente a tarefa que lhes estava destinada filmados, fotografados, entrevistados por órgãos de comunicação social de todo o Mundo... e a Cimeira traduziu-se num incontestável êxito. Na realidade, é grande a diferença entre Seattle e Havana. E dado que é a realidade e não a aparência que marca a diferença, relembremos um facto concreto sistematicamente ocultado por quem não tem interesse em que ele seja conhecido, derrubemos o muro das aparências hipócritas, não esqueçamos o bloqueio imperialista que tantas dificuldades e sofrimentos tem trazido ao povo cubano e sublinhemos a realidade: nos quarenta anos de vida da Revolução Cubana, nunca em qualquer lugar de Cuba ocorreram acontecimentos semelhantes aos ocorridos nos últimos dias em Seattle.


«Avante!» Nº 1358 - 9.Dezembro.1999