Ronda do milénio
As maiores manifestações de protesto
desde a guerra do Vietnam

Por Lígia Calapez


A Conferência Mundial da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre a próxima ronda de liberalização comercial, foi suspensa sexta-feira à noite em Seattle, estado de Washington, nos EUA.

Um encontro abortado por força das contradições que dividem os seus mais importantes promotores, Estados Unidos e União Europeia, pela posição assumida entre países menos desenvolvidos, em síntese, pelas divergências que dividem os 135 países membros. Mas - sobretudo - como resultado da pressão dos povos nestes diferentes países, também de alguma forma reflectida nas manifestações que acompanharam o encontro desde o início. Dezenas de milhar de pessoas nas ruas de Seattle, num movimento de contestação sem igual nos últimos 30 anos nos EUA.

No mesmo dia em que a representante especial para o comércio norte-americano, Charlene Barshefsky, anunciava oficialmente a suspensão das negociações da OMC sobre o lançamento de uma nova ronda, sobreviventes de Bhopal assinalavam com uma romagem os quinze anos passados sobre a grande tragédia que provocou milhares de mortos em Madhya Pradesh, no centro da Índia.

Que ligação entre estes dois acontecimentos, díspares no tempo e no espaço?

Há 15 anos, uma fuga de gás tóxico das fábricas da Union Cardibe, provocava cerca de sete mil mortos. O acidente levantou uma onda de protestos, pondo em causa as condições de laboração de empresas de produtos tóxicos. Quinze anos volvidos esta grande empresa não indemnizou as vítimas nem procedeu á limpeza dos locais, fortemente contaminados. Uma delegação das vítimas decidiu avançar com uma queixa contra a Union Carbide, num tribunal de Nova Iorque, sob a acusação de «indiferença objectiva pela vida humana».

Nestes dias, em Seattle, são a voz e os interesses do grande capital, ligado ao poder estatal ou sobrepondo-se-lhe, que estão em causa. Um poder dominante que se quer ainda auto-reforçar.

O poder das grandes multinacionais e, em particular, do capital financeiro, é bem concreto. Bastará referir dois factos, a título de exemplo. O maior banco do mundo, criado pelos japoneses através da fusão entre três instituições, detém um total de activos equivalente a 266 mil milhões de contos - cerca de 14 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) português. De cada cem dólares que circulam diariamente no mundo, apenas dois pertencem á economia real.

Esta realidade é acompanhada de um aprofundamento dos desequilíbrios e desigualdades. Assim, a diferença de rendimento entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres da população era de 30 para um em 1960, subindo para 74 para um em 1997.

Esta é a realidade. O que não quer dizer, de forma alguma, uma inevitabilidade.

Os problemas que levaram ao abortar do encontro de Seattle, como as grandes manifestações que acompanharam a sua realização (juntando embora movimentos diversos e até contraditórios), testemunham - a vários níveis - isso mesmo. Ao arrepio de muitos comentários quer nestes dias têm saído nos órgãos de comunicação social, a mudança tem pés para andar. Nas palavras de Immanuel Wallerstein, conhecido historiador do capitalismo, «as pessoas que acumulam capital vão dizer que é necessário alternativas (...) É necessário reduzir o custo do trabalho, atenuar as preocupações ecológicas e reduzir o Estado providência. Tentam... como aqueles que pensam que é possível parar as marés».

Riscos e contradições

Nenhum acordo foi obtido sobre o lançamento de um novo ciclo global de negociações comerciais multilaterias. Nenhuma data para a retoma da conferência ministerial foi entretanto avançada.

Entretanto, a partir de Janeiro, em Genebra, a OMC irá discutir agricultura e serviços, de acordo com os compromissos assumidos nos acordos de Marraqueche de 1996, que encerraram o Uruguai Round. Temas que estão longe de ser inóquos e que, no que diz respeito a Portugal, poderão levar ainda a um agravamento das já difíceis condições em que se faz agricultura no nosso país.
Ainda recentemente os Estados Unidos conseguiram dois importantes trunfos. A OMC autorizou os EUA a imporem tarifas aduaneiras punitivas a diversos bens europeus como retaliação contra as restrições à importação de bananas produzidas por companhias norte-americanas e contra restrições à importação de carne bovina tratada com hormonas.
Em Janeiro, e para além da questão dos subsídios agrícolas, deverá também levantar-se a questão dos produtos agrícolas alterados geneticamente. No que respeita ao debate em torno dos serviços, os EUA pretendem um melhor acesso às suas indústrias nesta área, em particular telecomunicações, finanças, construção, serviços on-line, entre outros.
Factos que envolvem um maior poder para os grandes grupos económicos. E, por acréscimo, riscos nada negligenciáveis.
Por exemplo, o negócio com os organismos geneticamente modificados envolve três tipos de riscos, segundo destacou recentemente o Overseas Development Institute - risco de degradação do ambiente, risco de insegurança alimentar e risco decorrente da necessidade de enormes investimentos financeiros, só ao alcance das multinacionais.
Neste quadro de jogos de poder e contradições, é importante distinguir entre palavras e factos, tentar discernir interesses ocultos.
Assim, em Seattle os EUA aparecem como defensores dos direitos humanos e laborais. Mas é sabido que as companhias multinacionais, e nomeadamente as norte-americanas, fazem uso dos países do terceiro mundo para explorar a mão-de-obra barata e sem leis de protecção laboral.

Dá que pensar, por exemplo, a afirmação de Malloch Brown, administrador do programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que diz: «A última coisa que precisamos é a extensão das missões da OMC aos direitos sociais e ao ambiente. A OMC é uma pequena organização fechada que estabelece regras de comércio. Se os seus funcionários, não eleitos, tivessem também que julgar conflitos sobre ambiente e direitos sociais, o problema da irresponsabilidade e do segredo seria cem vezes pior».

Protesto

Quando os países membros do GATT (organizações que daria lugar à OMC) se reuniram, em 1986, na cidade de Punta del Este, no Uruguai, o facto mereceu apenas alguma atenção dos média e de publicações da especialidade.

Agora, em Seattle, foram dezenas de milhar de pessoas que saíram à rua, numa acção sem igual nos EUA nos últimos 30 anos e que fez lembrar os grandes movimentos de contestação dos anos 60, em particular os protestos contra a guerra do Vietname.
Nem todas as organizações não governamentais (ONG) presentes neste protesto teriam as mesmas motivações. Houve, é verdade, alguma violência, pretexto de repressão com gazes lacrimogéneos e balas de borracha, tão excessiva que o chefe da polícia de Seattle foi o próprio a reconhecê-lo publicamente. Mas, no fundamental, os protestos foram dirigidos contra a própria lógica do capitalismo e uma das suas mais acabadas expressões - a Organização Mundial do Comércio.
Em causa está, como foi sublinhado pelo dirigente de uma das organizações envolvidas no protesto, «quem elabora as regras do comércio internacional e quem é que essas regras servem».
Pelo seu simbolismo, é interessante realçar que Seattle é sede de empresas como a Microsoft e a Boeing e tem um passado de lutas. Foi palco da primeira greve geral em 1919 e conheceu, nos anos 60, uma onda do movimento de contestação contra a guerra do Vietnam.
Por força do entrecruzamento destes diferentes factores - as contradições do capital, a luta dos povos contra a submissão dos interesses dos seus países aos das multinacionais e a sua expressão nas manifestações em Seattle - a pomposamente apelidada de cerimónia inaugural impedida Ronda do Milénio começou com uma pelas manifestações de rua e terminou com uma declaração de suspensão do encontro. A montanha pariu um rato. Ou nem isso. Mas a ameaça mantém-se.

 

Apelo por uma moratória

O Governo português deveria informar os cidadãos sobre o que está em discussão nesta ronda, agora terminada, da Organização Mundial do Comércio e pedir uma moratória sobre novas medidas liberalizadoras, como é reclamado por milhares de organizações não governamentais de todo o mundo.

Este o apelo dirigido ao executivo por mais de uma centena de pessoas, entre as quais os professores universitários Avelãs Nunes, Oscar Lopes, Sérgio Ribeiro, Carlos Pimenta e José Morgado, o Nobel da Literatura José Saramago e o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), Luiz Francisco Rebelo.
O documento apela ao Governo para que defenda a convenção sobre biodoversidade, as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em matéria laboral e as resoluções de conferências internacionais sobre ambiente, desenvolvimento e promoção da mulher.
Na conferência de imprensa em que foi divulgado o apelo, Sérgio Ribeiro denunciou a falta de informação sobre o que estava realmente em jogo em Seattle.

O fracasso de Seattle

Por Lino de Carvalho


Parece que fracassou esta primeira ronda ministerial da Organização Mundial do Comércio. Ainda bem. A definição da agenda, que era o que nesta fase estava em cima da mesa para dar início a um processo negocial que deverá durar, pelo menos, três anos, não pressagiava nada de bom para a economia e os trabalhadores dos países menos desenvolvidos.

Fracassou, por um lado, em resultado das próprias contradições do capitalismo traduzida nos interesses divergentes (mas não antagónicos) dos vários blocos regionais presentes em Seattle. Mas fracassou também – tal como o AMI / Acordo Multilateral de Investimentos tinha fracassado – devido à mobilização da opinião pública mundial (agricultores, trabalhadores, ambientalistas, consumidores) presentes em força nas ruas da cidade sede da Boeing e da Microsoft. Opondo-se à OMC (embora, reconheça-se, por vezes com objectivos contraditórios) a cerca de uma centena de milhar de manifestantes obrigou os diversos interesses capitalistas a travar os seus ímpetos liberalizadores e foi a primeira forte expressão da globalização da luta contra a globalização do capital.

Mas, afinal o que é que estava em debate em Seattle? O início de um caminho visando mais liberalização e mais desregulamentação do comércio mundial no quadro da mundialização do sistema capitalista e do seu domínio por grandes conglomerados transnacionais.

O processo de internacionalização dos processos produtivos e da consequente divisão internacional do trabalho (capitalista) com a globalização dos mercados e das trocas comerciais é uma inevitabilidade do ponto de vista das leis da economia. A questão está em saber a favor de quem se desenrola este processo.

Quando se diz que a liberalização do comércio é boa para os países menos desenvolvidos "esquece-se" de dizer que é boa, sobretudo, para a burguesia nacional desses países e para as transnacionais que aí exploram o trabalho infantil e a baixa remuneração da força de trabalho, desenhando uma economia baseada no comércio exportador e, portanto, sempre dependente dos mercados internacionais que não controlam e prejudicando (ou até inviabilizando) o aproveitamento dos recursos nacionais e o respectivo desenvolvimento sustentado de sectores produtivos. Como não se diz que o processo de liberalização das trocas internacionais tem vindo a provocar mais desigualdades entre países "ricos" e "pobres" e a cavar o fosso entre os que beneficiam das mais valias desse processo e o grosso da população. Escondem que se em 1973 a distância entre países ricos e pobres era de 44 para 1, em 1992 essa diferença era já de 72 para 1. Como escondem que se em 1960 os 20% da população mundial nos países mais ricos tinham 30 vezes o rendimento dos 20% mais pobres, em 1997 essa diferença tinha aumentado para 74 vezes.

Quando se diz que a OMC é necessária para a regulação do comércio "esquecem-se" de dizer que a OMC é uma estrutura com poderes supranacionais, com um funcionamento opaco e dirigida por obscuros funcionários intimamente ligados às transnacionais e aos países mais poderosos. E não dizem que o organismo mais forte da OMC e que se chama ORD/Orgão de Regulação de Diferendos é um órgão onde os peritos adeptos do livre-cambismo têm uma posição determinante com poderes de decisão quase soberanos sobre os conflitos nos mercados internacionais. O caso da "guerra" da banana entre os EUA e a União Europeia com uma decisão favorável à pretensão norte-americana foi tomada por peritos ligados à Chiquita Benders, a transnacional norte-americana maior produtora e exportadora de banana do mundo e que esteve na base da queixa dos EUA.

O que desde já esta nova ronda negocial do comércio internacional tem como objectivo é liberalizar ainda mais o comércio de bens alimentares sem atender à especificidade e ao papel multifuncional das diferentes agriculturas o que levaria a que as agriculturas menos desenvolvidas e as pequenas explorações familiares sucumbissem ainda mais face às poderosas agriculturas altamente profissionalizadas dos EUA, da Canadá, da Nova Zelândia e de outros países. Mas também procurando legalizar os Organismos Genéticamente Modificados e a produção de bens alimentares, designadamente carne, feita à base de processos artificiais (é o caso da carne com hormonas) sem consideração pelos seus efeitos na saúde pública.

No que se refere aos Serviços e Acesso aos Mercados Públicos o objectivo é bem claro: colocar completamente todos os mercados públicos, isto é a saúde, a educação, a água, etc. na esfera dos interesses privados. Em matéria de saúde, por exemplo, os EUA definiram como objectivo para Seattle "encorajar a extensão das privatizações, obter acesso aos mercados e uma decisão que admita o direito de propriedade privada estrangeira maioritária nas unidades de saúde".

No dossier cultural o objectivo é também tratar o intercâmbio de bens culturais como meras mercadorias, pondo em causa os direitos de criação, a existência de políticas de promoção da cultura nacional e também procurando a apropriação privada dos chamados direitos de propriedade intelectual, que inclui o patenteamento de seres vivos e o controle, por exemplo, de sequências genéticas da vida pelos grandes laboratórios que os registem.

No fundo o que estava em debate em Seattle era submeter todas as esferas da actividade humana ao mundo do comércio, dos negócios privados e do lucro tratando tudo como mercadoria.

E quando se diz que querer fazer parar a liberalização é como querer parar o vento com as mãos é preciso responder que liberalizar as trocas entre países com tão poderosos desníveis de desenvolvimento conduz inevitavelmente, como tem conduzido, ao domínio dos mais pobres pelos mais poderosos e à extensão da massa de desempregados, de pobres e de excluídos em todo o mundo. E que há alternativas. Essa liberalização só tem algum sentido se feita dentro de blocos económicos com níveis aproximados de desenvolvimento e, mesmo aí com regras que respeitem a especificidade dos sectores produtivos de cada País. E no quadro de um outro projecto de desenvolvimento para a humanidade baseado nos valores do socialismo e de regras mutuamente vantajosas para os países contratantes.


«Avante!» Nº 1358 - 9.Dezembro.1999