Debate criador aprofunda-se
no Partido Comunista de Cuba

Por Miguel Urbano Rodrigues


O povo cubano prepara-se para entrar no ano 2000 com alegria e confiança. Esse optimismo justifica-se. A Ilha não se atemorizou com o reforço do bloqueio norte-americano. A condenação dessa política pela Assembleia Geral das Nações Unidas quase coincidiu com a Cimeira Ibero-americana de Havana, cujo êxito configurou outra derrota da Casa Branca que havia desenvolvido um grande esforço para tentar

Às vitórias políticas somaram-se na frente económica outras não menos importantes.
No ano que vai findar o produto interno bruto (PIB) deverá apresentar, segundo informação oficial, um crescimento superior a 6%. Essa taxa é tanto mais significativa quanto foi obtida nas duras condições impostas pelo cerco imperial, no contexto de uma crise que atingiu brutalmente a América Latina onde o crescimento dificilmente ultrapassará os zero por cento.
Em 1999 a produção de frutas e legumes, imprescindível a uma dieta alimentar equilibrada, aumentou sensivelmente. Novas empresas estrangeiras instalaram-se no país, desafiando as ameaças da Lei Helms Burton, e o turismo continuou em expansão acelerada. A safra açucareira, após duas desastrosas, foi razoável, não obstante condições climáticas desfavoráveis. A próxima deverá ser superior.
Os números relativos à saúde e à educação confirmaram que o abismo existente entre Cuba e os demais países da América Latina se alargou. O índice de mortalidade infantil é inferior ao de Portugal. No tocante ao ensino é suficiente lembrar que um em cada onze cubanos tem hoje diploma universitário.
Uma das boas notícias mais festejadas em Novembro foi a relativa ao aumento da produção de petróleo. A descoberta de novas jazidas dá credibilidade à previsão de 3,2 milhões de toneladas no próximo ano. Admite-se que em 2001 serão atingidos os 4 milhões de toneladas, o que representaria aproximadamente metade do actual consumo do país. A esperança da auto-suficiência em combustíveis deixou de ser uma miragem romântica.
Para se avaliar o que esses números significam é oportuno lembrar que quando a URSS se desagregou, Cuba produzia menos de um milhão de toneladas de um petróleo de péssima qualidade, apenas utilizável nas caldeiras das centrais térmicas.

«Semear consciência»
num país socialista cercado

Num país socialista golpeado por uma guerra não declarada, o papel do Partido na batalha ideológica em defesa da Revolução assume naturalmente uma enorme importância. Isso ficou transparente nas Assembleias do PC de Cuba realizadas em todas as Províncias nas últimas semanas.
Os debates, pela complexidade e natureza dos problemas que estiveram no centro da discussão, e pela maneira frontal como foram abordados, somente seriam possíveis, na atmosfera de fraternidade que caracterizou essas assembleias, num partido como o cubano, temperado por décadas de luta permanente. Dirigentes, quadros, militantes, os comunistas cubanos estão hoje plenamente conscientes de que após a terramoto que destruiu a União Soviética, a sua Ilha aparece a milhões de revolucionários de múltiplas nacionalidades como uma cidadela do Socialismo e um laboratório ideológico que se tornaram património da humanidade progressista.
Não caberia num artigo como este enumerar sequer os temas debatidos nas Assembleias, tantos e tão diferenciados eles foram, abrangendo questões ligadas à produção, à eficácia no trabalho, a comportamentos sociais da militância, ao funcionamento da organização juvenil, às dificuldades das cooperativas, etc.. Como foi insistentemente sublinhado, o Partido não pode alhear-se de «nada do que acontece» no país.
Entretanto, foi o debate sobre os temas ideológicos que mais interesse despertou. Significativamente a comunicação social deu-lhe atenção prioritária, sobretudo às intervenções de Raul Castro que, na sua condição de segundo secretário do Partido, acompanhou todas essas assembleias.
O estilo rude, directo, com que Raul abordou questões ideológicas muito delicadas só poderá ter chocado os que lhe desconhecem a frontalidade. Desta vez interveio repetidamente sobre uma temática que, sendo de actualidade permanente, foi sistematicamente ignorada, com graves consequências, pelo PCUS e pelos partidos comunistas da Europa Oriental: as relações entre o Partido e o Estado, questão que sempre havia preocupado Lenine.
Na sua análise dos métodos e estilo de trabalho partidário, Raul Castro, reconhecendo o muito que se avançou, insistiu na necessidade de uma vigilância permanente contra a rotina e o esquematismo, contra a falta de espírito crítico e combativo de certos quadros, pondo uma ênfase especial na condenação das tendências administrativas, uma tentação em organismos intermédios do Partido para intervir arbitrariamente em processos económicos e produtivos. Raul foi muito claro: o Partido não administra directa nem indirectamente. O seu papel é de direcção. Não lhe cabe substituir-se ao Estado. O novo sistema de gestão, ao atribuir maior autonomia mas também maior responsabilidade às empresas, é incompatível com práticas tradicionais que envolvem ingerências dos quadros do partido na esfera administrativa.
Sustentando que uma correcta compreensão do papel do Partido é cada vez mais fundamental num combate que envolve a própria sobrevivência do Socialismo, Raul sublinhou que nenhuma outra instituição como o PCC está em condições tão favoráveis para comandar a batalha de ideias e promover a integração de todas as forças e organizações revolucionarias com esse objectivo, tendo presente que «influir nas pessoas e semear consciência requer uma actuação inteligente e criativa, oportuna, diferenciada e multifacetada».
Fez-se muito nesse sentido. Mas terá de se fazer muito mais — advertiu — para que os métodos e o estilo de que o Partido precisa para cumprir o seu papel dirigente sejam uma realidade permanente no conjunto da organização. Até «onde chegamos — perguntou — para materializar a orientação do companheiro Fidel de desenvolver um Partido de aço?»
A Assembleia de Havana foi cenário de debates empolgantes. Pelo que a televisão mostrou — e foi muito — poucas vezes em grandes plenários comunistas a discussão ampla em torno de questões fundamentais do ideário comunista e da sua praxis terá sido tão aberta, criadora e participada.
Raul sabe que o Partido pode ir muito mais longe no seu desafio permanente ao impossível aparente. Aquilo que no seu discurso revela insatisfação perante os resultados obtidos não deve ser interpretado como manifestação de falta de confiança. Pelo contrário. A franqueza do dirigente traduz uma confiança inquebrantável na capacidade do Partido para ajudar o povo cubano a assumir vitoriosamente os tremendos desafios que enfrenta, cercado, na viragem do milénio.
A franqueza, por vezes quase brutal, de Raul Castro, é própria do revolucionário cuja vida o levou repetidamente a entrar em conflito com a própria lógica aparente da história. É a confiança nos comunistas cubanos da nova geração e não o medo do futuro que o leva a recordar-lhes que os veteranos de geração histórica que tornou possível a Revolução não são eternos, a lembrar-lhes que houve apenas um Martí no século XIX e um Fidel no XX. Para vencerem, como comunistas, a batalha do século XXI os jovens não podem esquecer que o sujeito da história é colectivo, o povo, e que cabe ao Partido dirigi-lo e inspirá-lo na defesa e aprofundamento da primeira Revolução socialista das Américas.
Discursos como o de Raul Castro na Assembleia de Havana constituem um atestado da maturidade do Partido Comunista de Cuba.


«Avante!» Nº 1358 - 9.Dezembro.1999