O bug social do milénio
Por Zillah Branco
Muito se tem falado sobre o «bug» do milénio, como sendo apenas o caos (ou o defeito) do sistema informático pela entrada no ano 2000. Alguns problemas já têm ocorrido pela falta de previsão dos quatro dígitos da data anual até agora tranquilamente iniciados pelo 1.9.
Não acredito que
tal ninharia possa assustar os entendidos de informática,
sobretudo os piratas - rackers - do sistema que se
especializam em invasões de arquivos fechados a sete chaves. Mas
acompanho com curiosidade as previsões de desastre no sistema
financeiro que hoje é o coração do capitalismo. Pior serão as
consequências de caos informático no abastecimento de energia
eléctrica, água ou telefone, já que os trabalhadores foram
substituídos por computadores cuja inteligência é artificial e
dependente de prévia programação (a tal que vai emperrar com a
mudança do ano).
Tenho a sensação de que esta conversa artificial encobre o caos
mais profundo que já está afectando todo o sistema capitalista.
Senão, porque anunciar que Bill Gates será obrigado a dividir
as suas empresas para não ser considerado monopolista? E a que
se deve a crescente crítica aos fracassos da globalização
vindas de sectores que até ontem a aplaudiam como a solução
para todos os problemas de desenvolvimento mundial? E as
controvérsias sobre a «Terceira Via» social-democrata que, de
antemão, já se sabe que é a tentativa de reciclagem do
estafado sistema capitalista com uma boina e um blusão que
lembrem os combatentes socialistas de outros tempos?
Não creio nas profecias religiosas que anunciam o fim do mundo
no ano 2000, mas acredito que grandes transformações hão-de
vir para superar o monumental desastre criado pelo sistema
capitalista (que o escritor Gunter Grass classifica como «um
autêntico poder fundamentalista» que tudo decide através
das Bolsas de valores) em todos os países com a destruição dos
aparelhos produtivos nacionais, o agravamento da exploração e o
aumento incontrolável da pobreza, a restauração das
propriedades latifundiárias e dos monopólios, a privatização
dos patrimónios nacionais, a negação dos direitos da
humanidade, a destruição da natureza, inclusive a humana, e o
encerramento dos caminhos de esperança que sempre animaram a
juventude.
Os defensores do capitalismo só agora começam a perceber que a
sua elite foi minada pelo fomento da injustiça imposta às
grandes massas, apodreceu na torre de marfim onde o cinismo e a
ociosidade a intoxicou. Degradaram-se como ser humano com a perda
dos princípios elementares conquistados pela humanidade e
corroeram o próprio poder com a destruição dos direitos de
cidadania. Transformaram os cidadãos livres que construíram a
democracia em escravos de uma estrutura autoritária que
repercute as ordens do mercado.
O imenso bingo
No Brasil, assim
como em muitos outros países dependentes, vive-se uma guerra
civil encoberta por uma mal remendada capa democrática. Segundo
os cálculos da ONU, neste ano de 1999 que ainda não terminou,
já morreram em São Paulo devido a causas violentas mais
vítimas que na guerra do Kosovo. E as chacinas continuam e
espalham- se para as cidades pequenas por onde circula a droga e
o crime organizado. As pessoas fecham-se em casa, prisioneiras do
medo, enquanto os bandidos ficam senhores das ruas. De acordo com
os índices internacionais várias cidades brasileiras perdem
anualmente, por morte violenta, 50 habitantes em cada 100 mil, o
que corresponde a uma situação de guerra.
Os políticos eleitos consomem o seu tempo em Comissões
Parlamentares de Inquérito contra o narcotráfico e as formas de
corrupção que invadem a estrutura de poder enquanto o país
navega sem rumo. Os órgãos do Governo debatem-se para conseguir
recursos que derretem diante da alta do dólar para importar os
produtos de primeira necessidade que o Brasil deixou de produzir
sem incentivos nacionais (o Banco Nacional de Desenvolvimento
obedece a uma estranha determinação de investir apenas em
empresas privadas, inclusive estrangeiras. Nesta função tem
aplicado os recursos nacionais na criação de capital para que
os empresários estrangeiros comprem o património brasileiro).
Os Postos de Saúde não reabastecem as suas farmácias e o
ministro é vencido em batalha publicitária pelos grandes
laboratórios quando anuncia a possibilidade de substituir o
medicamento mais caro por outro similar. Mas o facto é que mesmo
nas farmácias do Estado não existem os remédios
imprescindíveis aos tratamentos aconselhados, mesmo quando há
risco de vida.
Parece não haver tempo para se traçar uma estratégia de
desenvolvimento. Assim como a população que vive acossada, os
governantes dedicam todo o seu esforço no combate às pressões
sem que se vislumbre o fim. Enquanto isso o Brasil escapa a
qualquer forma de controle. Multiplicam-se os apelos para que o
povo crie soluções e para que Deus ajude.
A ex-deputada federal Socorro Gomes, na coordenação do
Movimento em Defesa da Amazónia no Pará denuncia (sem contar
com o apoio governamental ou dos meios de comunicação social),
uma ampla campanha para que a Amazónia seja entregue ao Mundo,
livre da soberania territorial do Brasil, que vem sendo promovida
pelos Estados Unidos e os países do G-7 com a distribuição de
adesivos com o slogan «defenda a floresta, queime um
brasileiro». Por trás da cobiça internacional que
recomenda o terrorismo como forma de pressão, veicula-se a
racista afirmação de que os brasileiros são incapazes de
promover o desenvolvimento nacional e menos ainda o chamado
«pulmão do mundo». Esses argumentos não são novos, pois
foram urdidos em 1850 quando os Estados Unidos pretenderam obter
a livre navegação no interior da Amazónia. Hoje somam-se às
campanhas pelas privatizações, com a justificação de que o
Estado é incapaz de gerir o património nacional, que assolam os
países do Terceiro mundo e encaminham a substituição dos
núcleos de poder económico e os próprios exércitos pelas
forças internacionais controladas pela OTAN em nome da
globalização. Muita gente boa embarca nessa conversa racista
esquecendo que as falhas dos serviços do Estado brasileiro são
devidas à má administração e à corrupção criadas por um
sistema político que impede a verdadeira participação popular
na fiscalização para a defesa dos interesses nacionais.
Os cálculos financeiros que movem as bolsas e traçam os
destinos da Nação dominam diariamente o espaço informativo das
TVs. Sem deixar de ser uma lamentável realidade, são o ópio da
população e também dos governantes. Cria-se uma mentalidade de
jogadores com os olhos postos neste imenso bingo que se
subordina ao casino mundial de Nova York e países ricos
da Europa. Os noticiários ocupam-se totalmente com tais
questões, que aparecem intercaladas com crimes hediondos e novos
assaltos, sequestros e chacinas, além de mensagens sugestivas
sobre o fim do mundo na virada do milénio, enquanto a realidade
quotidiana nacional, a comezinha acção de sobrevivência, fica
oculta e os acontecimentos internacionais só aparecem
episodicamente quando ocorre alguma tragédia de grandes
proporções.
Sob a carga cerrada da cultura da violência conjugada com uma
visão financeira da vida económica, desaparecem as análises da
situação económica e social que explicam as raízes da
miséria, do agravamento da marginalidade, e da crescente
dependência nacional em relação ao centro do poder global. E,
desaparecendo a análise dos fenómenos sociais e económicos, os
governantes tornam-se marionetes do jogo decidido fora do
país sem assumirem o papel que lhes foi entregue pelo voto
popular de promover o desenvolvimento nacional.
O bug social é o mais grave
O bug
social do sistema, que explode pela combinação dos vários
desastres acima referidos, tem a sua maior expressão no
desequilíbrio mental dos herdeiros da elite alimentados pela
cultura da violência exportada dos Estados Unidos e de outros
países ricos através de filmes, livros, modas, internet, combinada
com o desaparecimento da esperança de uma vida digna. De um
momento para outro os pais, que deram tudo o que o filho pediu e
que estavam felizes por ele seguir um curso superior numa das
melhores escolas do país, ficam em estado de choque porque o
jovem comprou uma metralhadora e matou três pessoas deixando
cinco feridas numa plateia de cinema onde assistiam a mais um
filme de violência (facto verídico ocorrido em S. Paulo no mês
de Outubro). Outros surpreendem-se com a notícia de que o filho,
médico recém formado, ateou fogo ao calouro da sua Faculdade, e
outros ainda com a morte por afogamento de um jovem estudante
provocada por colegas numa brincadeira com muita bebedeira dentro
da Universidade (todos estes factos são verídicos e ocorreram
no Estado de São Paulo durante o ano de 1999). E assim vemos no
subdesenvolvido Brasil os jovens imitarem a geração perdida dos
Estados Unidos, que uma vez por semana estarrece aquele país com
uma chacina na escola.
Diante desses quadros surgem os debates que misturam noções de
psicologia com conceitos divulgados em campanhas norte-americanas
contra o crime, nas quais preconizam exclusivamente o controle da
venda de armas e o aumento da punição contra os infractores. Em
resumo, fica-se pela conclusão de que «falta diálogo com a
juventude e apoio terapêutico» e «precisa-se aumentar o
orçamento das forças policiais». De fora fica a existência
incontestável do poder das mafias do crime organizado, os
interesses financeiros ligados aos tráficos de droga, de
crianças, de órgãos, de jovens que se prostituem, a
orquestração de assaltos e crimes que mantêm o medo como
fórmula de subordinação e passividade das populações, a
perda de perspectiva de vida e liberdade para a juventude, a
prematura consciência de uma realidade ameaçadora para as
crianças, e a enxurrada de cursos de violência transmitidos
diariamente pelos media consumidores do produto exportado
pelo Primeiro Mundo.
O salário mínimo é de 65 dólares (cerca de 13 mil escudos) e
o custo de vida é mais alto que em Portugal. Evidentemente não
chega para sustentar nem uma pessoa, quanto mais uma família. O
desemprego, calculado oficialmente em 19 % da população activa,
na verdade é muito maior se considerados os sectores do trabalho
rural e de empregadas domésticas. Acrescente-se a falência do
serviço médico e de segurança social que a Constituição
promete, e a flagrante injustiça criada pela impunidade que faz
da elite um sector privilegiado e dos pobres as vítimas do
sistema, para entender ser praticamente impossível não roubar
ou recusar as ofertas das mafias da droga, da prostituição, da
venda de crianças para adopção, como meio de sobrevivência.
Sobre isto já falamos até à exaustão, mas importa considerar
esta situação - em que vivem cerca de 100 milhões de
brasileiros (70% da população que vive no limiar da miséria,
dos quais 10 milhões sem casa e sem salário), sujeitos ao
mecenato das mafias que controlam as redes criminosas - para se
analisar o novo fenómeno social de uma geração desnorteada
apesar de bem alimentada, instruída e protegida por suas
famílias pertencentes à elite, que também adere ao crime e
ocupa a posição de modelo social. É uma combinação demasiado
explosiva para se fingir que não constitui o maior «bug»
social do milénio.
Privatização do conhecimento
O trágico, neste
quase fim de século em que as ciências deram grandes passos,
quando se pode prever a explosão dos vulcões e visitar os
outros planetas, é ver que as ciências sociais só são
utilizadas para explicar os desastres e não para preveni-los.
Certamente a responsabilidade é dos governantes, sobretudo dos
que ostentam os títulos de cientistas, mas muito se deve também
ao silêncio dos que esperam calados ou participam das manobras
de diversão com interpretações superficiais. Injusto seria
culpar os que não conseguem ser ouvidos. Com a atenção
desperta notamos que há um clamor nacional abafado pelo som
estridente do sistema capitalista anunciando os produtos que
sustentam a sua estrutura e aumentam a pobreza das populações.
Nas entrelinhas dos noticiários televisivos, sobretudo da rede
Globo, que é uma das grandes divulgadoras da cultura da
violência e da alienação social, aparecem as expressões de
revolta de pessoas das mais variadas profissões e inclusive de
alguns dos seus melhores jornalistas. Verifica-se, então, que
há registo de tudo o que acontece no país, inclusive de
estudos, filmes, poesias, músicas, experiências pedagógicas,
que explicam com objectividade a raiz dos problemas e constroem
caminhos para a sua superação. Mas o uso deste conhecimento é
cuidadosamente doseado para apenas demonstrar que a elite conhece
a realidade e domina a sua divulgação. É um produto
passível de venda por alto valor. Não há vontade política de
alterar a situação e evitar as tragédias pois os dramas
humanos e até a morte são um produto de mercado. É o uso privatizado
do saber, que dificulta o aproveitamento prático e generalizado
dos seus benefícios. É mais um crime do sistema capitalista
contra a humanidade além de consistir numa traição à pátria.