Seattle - A cimeira do grande capital


Se dúvidas houvesse a cimeira de Seattle, ou a ronda do milénio como também a designaram, é exemplo do mundo que alguns querem impor. Um mundo ditado pelas regras do grande capital, sujeito às guerras de interesses dos principais grupos económicos mundiais pelo domínio dos mercados, em que os direitos dos trabalhadores e dos povos se apresentam sem qualquer valor para além daqueles que conjunturalmente mais beneficiem a disputa da conquista dos mercados. Um mundo a mando das multinacionais com procuração passada a uns quantos chefes de governo para irem zelando e promovendo os interesses de quem os suporta.

A cimeira - pelos seus objectivos e ambiente que a rodeou - revelou, independentemente do aparente fracasso em que se saldou, a natureza cínica, falsa e violenta de quem a encomendou. A cimeira evidenciou um enorme exercício de hipocrisia política destinado a ocultar as suas principais motivações e os objectivos essenciais que lhe estavam associados. A que não faltaram actores disponíveis, de Clinton a Kofi Anan, para representar o papel que ao grande capital interessava. A de procurar identificar na Cimeira não aquilo que ela incontornavelmente visava de garantia da total liberalização do comércio mundial ao serviço das multinacionais, mas a atribuir-lhe alegados interesses sociais e de desenvolvimento que manifestamente não tem.

Não são sinceras razões de preocupação com a dignidade dos homens e as desigualdades de desenvolvimento entre nações que enformam o discursos de circunstância de alguns destes actores. Para Clinton e outros gestores do capital os direitos dos trabalhadores e as condições da venda da força de trabalho são uma mera peça nos mecanismos da concorrência. Pelo que a súbita preocupação agora manifestada pelos direitos sociais e as condições laborais dos trabalhadores não pode deixar de ser entendida como uma atitude ditada por razões de disputa entre interesses económicos. A situação da mão de obra sobre explorada e infantil nalguns países menos desenvolvidos, talvez mais explicita e violenta mas de expressão exploradora não muito diferente da que são sujeitos os trabalhadores nos países capitalistas mais desenvolvidos, é indissociável do modo de produção capitalista e da crescente desigualdade entre países ricos e pobres que a divisão mundial do trabalho vem agravando. Pelo que a também súbita preocupação com os interesses dos chamados países pobres, conduzidos a essa situação pela prolongada rapina de recursos realizada pelas multinacionais aí instaladas e de estrangulamento financeiro das suas dividas externas, não passam na boca dos defensores da globalização de uma pouca sincera retórica destinada a disfarçar outros objectivos e interesses.

Mas a cimeira teve o mérito de revelar, pelas acções de protesto realizadas um pouco por todo o mundo, e pela forma como a administração americana lidou com as que ocorreram em Seattle, duas questões importantes:

Que nos EUA, vendidos como paradigma da democracia, esta e a liberdade têm valor só e até quando não põem em causa os interesses dominantes, ou seja, o Estado com todos os seus mecanismos de dominação e violência é em todas as circunstâncias um mero instrumento para fazer valer, de forma mais ou menos ostensiva, os interesses das classes no poder;

Que num mundo dramaticamente indefeso pela ausência de um sistema que se oponha ao que hoje domina, há quem teime em resistir e lutar ainda que nem sempre com a consciência de que o combate decisivo contra as desigualdades é inseparável da supressão do sistema capitalista. — Jorge Cordeiro


«Avante!» Nº 1358 - 9.Dezembro.1999