Não chegámos ao fim da história


 


Se não há saída,
uma má saída é saída?

Há uma sabedoria, um ritmo e um tempo africanos. Tenho-o sentido ao longo de muitos anos de experiências – que muitos são já os anos... – e de confrontos com tempos, ritmos, posturas de outras latitudes.
Naquela noite, acabado o jantar de amigos, em que a conversa foi sempre muito interessante mas em que mais se falou, naturalmente, da Guiné-Bissau, já à porta do elevador, ainda me ofereceram um livrinho, de capa discreta mas sugestiva e deixaram cair «... já que leste o livro do Filinto, lê também este do Abdulai Sila que parece que não conheces... vais gostar...»
Ainda nessa noite, naquele folhear despreocupado, ganhei algum apetite, mas a hora já era avançada. No dia seguinte, abri-o de novo, disposto a um começo de leitura e fiquei logo parado na frase de antelóquio no cimo da página branca que antecedia o prefácio.
Fiquei parado naquela posição que, segundo o José Saramago, é a que mais deveria agradar ao escritor. De livro na mão, olhos sem lerem, a pensar no que o escritor escrevera, ou pusera no seu livro para que o leitor lesse.

A frase estava em crioulo, Si fere ala,/fere bonde ko fere?*, e em itálico. O asterico encaminhava o leitor para a nota de pé de página onde, em corpo mais pequeno, se traduzia para português: Se não há saída, uma má saída é saída?
Foi difícil voltar a página, embora tenha valido a pena porque o livrinho (inho pelo formato e número de páginas) merece ser lido, e mais que uma vez me provocou a tal paragem na leitura que o «nosso Nobel» gosta de saber que os seus leitores fazem. Nada de empatias acríticas, já lá dizia o Brecht...
Mas, acabado o livro, a frase que primeiro me agarrara, agarrado me tinha. Se não há saída, uma má saída é saída?
A frase tem-me acompanhado e, com o tempo e as situações, fui-me atrevendo a glosá-la, embora não seja capaz de retroverter as glosas para crioulo embora, se calhar, o crioulo, na riqueza que lhe desconhecemos, também aceite as glosas a que me atrevi.

Ultimamente, fixei-me nesta: Se nos parece que não há saída, tentar uma má saída será saída?
Tudo está na confiança que se tem ou não nas saídas que são nossas. Se na nossa frente só vemos o muro, o empasse, o obstáculo aparentemente intransponível decerto que uma má saída será a saída para quem não quiser ficar parado. E parado não se pode ficar. Senão, cai-se da bicicleta...
Já vivemos tempos em que também assim era, e com ainda maior clareza. E não é preciso ter-se já vivido tanto que permita recuar até aqueles anos que dobraram dos 30 para os primeiros anos de 40. Mais perto destes tempos que se vivem hoje, assim muitos de nós (ou que nossos foram) se teriam encontrado. Com o muro à frente, o empasse, o obstáculo aparentemente intransponível.
Hoje, temos a tal globalização, temos o capitalismo implantado em todo o planeta mesmo onde não o está, ou onde os modos de produção ainda são pré-capitalistas mas não têm outras referências reais, temos as estratégias transnacionais, temos as integrações regionais sem alternativa, os caminhos únicos, as moedas e os bancos centrais que únicos são, temos o casamento da social-democracia com a humanismo cristão (ou lá o que é, se é que não é amancebamento contra os mandamentos do dito humanismo), temos a coca-colonização cultural, o direito de ingerência, Solanas a passar de campeão da campanha contra a NATO a secretário-geral da citada e, logo depois do comprovado zelo, a Sr. PESC, isto é, Política Externa e Segurança Comum da União Europeia completamente NATizada. Temos tudo isso, e muito mais, como sendo as pedras do muro, as razões do empasse, as trincheiras do obstáculo.

Não há saída! (afirma-se); uma má saída é saída? (pergunta-se). Ou então: não há saída? (pergunta-se); uma má saída é saída! (afirma-se).
Mas o caso é que há... outras saídas, ou outras possíveis formulações. Assim, por exemplo: não há saída? (pergunta-se); uma má saída é saída? (pergunta-se também).

É claro que desenhar janelas que não dão para lado nenhum, ou portas que não se abrem nunca, pintar graffitis que gritem liberdade sem que ninguém ouça o grito, argumentar diletantemente com razões nossas contra sem-razões sem convencer ninguém, decorar com vermelho ornamentos rosa/laranja em arames farpados, não são saída. Mas isso basta para procurar a saída da má saída?
Só assim fará quem se tiver convencido – e está no seu mais legítimo direito – que, pronto!, não há saída, quem tenha desistido de uma saída nossa, quem tiver pressa em encontrar uma saída sua... até porque a vida é curta e já não sobra muito tempo para cumprir destinos.
Mas permitam que haja quem, quando não há saída, procura... a saída. Aliás, se não o permitirem, é o mesmo. Haverá, de certo, quem venha a encontrar a saída. Até porque os muros, os empasses, os obstáculos intransponíveis têm muito pouca consistência, estão cheios de contradições.

Quando chegámos a esta luta, lemos umas coisas que nos ensinaram a perceber muito do que hoje se passa – não tudo, nem lá perto... –, e não foi só nos livros dos teóricos do marxismo. Lemos também noutros lados, por exemplo em chamados «O Muro das Pedras/Subterrâneos da Liberdade» em que o escritor nos dizia que as mãos e as unhas também servem para derrubar muros e obstáculos. Destes. Que têm a ver com classes sociais, com trabalhadores, com exploração, com mais valia, com essas coisas de que haverá alguma dificuldade em falar e em fazer ouvir.

Talvez em crioulo! — Sérgio Ribeiro


«Avante!» Nº 1358 - 9.Dezembro.1999