O
tempo a voltar
para trás
Está a RTP1 a transmitir às
segundas-feiras a série «Crónica do Século» e felizmente no
seu primeiro canal, o que é quase uma boa surpresa. Na verdade,
dado os hábitos antecedentes, era legítimo o receio de que
fosse considerado que a história do Portugal contemporâneo
seria matéria que só podia interessar aquele minguado grupo de
telespectadores que, ainda estranhamente interessados em temas
culturais ou supostos de o serem, são acantonados na TV2. Ora,
não foi assim decidido. E no capítulo transmitido na passada
semana, assinado pelo jornalista Jacinto Godinho, ouviu-se logo
de entrada uma frase de importância invulgar quase como síntese
do que foi, no seu âmago, a I República portuguesa: «Em
Abril e Maio de 1919, no período da ressaca pós-sidonista e
pós-guerra civil entre republicanos e monárquicos, os governos
democráticos procuraram uma reconciliação com os sindicatos
cada vez mais fortes e radicais. Domingos Pereira nomeia pela
primeira vez para seu ministro do Trabalho um socialista, Augusto
Dias da Silva, que lançou o bairro operário do Arco do Cego e
fez aprovar a histórica lei das oito horas de trabalho. No
Barreiro, Alfredo da Silva recusa-se a aplicar a lei e fecha as
fábricas. Nos confrontos com a polícia morrem dois operários.
Face aos protestos dos industriais, os governos democráticos
mudam logo de estratégia.»
Quanto a estas palavras, convirá talvez lembrar que a
expressão «governos democráticos» designa os governos do
Partido Democrático e não caracteriza qualquer opção
ideológica pela democraticidade e que o socialismo de Dias da
Silva era o de 1919. Alfredo da Silva, toda a gente sabe quem foi
e até tem uma estátua no Barreiro, mas dos operários mortos
pela repressão que o industrial desencadeou ao desobedecer à
lei poucos ou nenhuns sabem os nomes e é claro que não há
deles nem estátua nem nada de sequer vagamente semelhante. De
qualquer forma, dir-se-ia que naquelas palavras está quase tudo
o que foi a I República e levou ao seu assassínio: a
instabilidade provocada pelas tentativas armadas dos monárquicos
para fazerem regressar o País à monarquia (contra a expressa
vontade de D. Manuel), o carácter burguês e quase sempre
conservador dos sucessivos governos, a exasperação de uma
classe operária que via traídas as esperanças que a República
lhe suscitara, a repressão brutal contra operários cheios de
razão. Já depois dos momentos iniciais, «Crónica do Século»
abordaria largamente um outro factor: a agitação lançada pela
direita sob fachada extremo-esquerdista, incluindo a suspeita
histórica de que a sinistra Legião Vermelha que assassinou no
19 de Outubro era de facto uma encomenda da direita sem
escrúpulos.
Oitenta anos depois
De então para cá,
passaram oitenta anos, o que não é tão pouco como isso num
tempo em que, como bem se sabe, as mutações foram galopantes. E
aconteceu uma coisa que se diria espantosa se não soubéssemos
bem como as coisas são por dentro: durante diversos dias, as
televisões trouxeram-nos imagens de fortes contingentes
policiais, ainda bem mais armados e equipados que os das das
imagens toscas de 1919 que «Crónica do Século» nos trouxe, a
reprimirem populares que se manifestavam, indignados, contra a
obediência dos governos aos interesses dos grandes patrões. Foi
em Seattle, e é claro que o que estava em jogo já não era uma
lei das oito horas de trabalho (embora também o fosse,
lembremo-nos dos operários-escravos do Sudoeste Asiático, da
Índia, de outros lugares), mas a própria sobrevivência da
espécie humana. Porque a cupidez patronal, agora transportada e
ampliada para a dimensão das multinacionais tentaculares, não
recua perante nada, nem mesmo perante o risco de morte para os
netos de todos e não apenas dos trabalhadores. Eles lá pensam,
decerto, que os seus descendentes hão-de poder safar-se ao
preço dos milhões de dólares que poderão pagar. É natural:
estão habituados a comprar tudo.
Quanto aos métodos de gestão das dificuldades imediatas,
evoluíram pouco em oitenta anos e são resumíveis numa palavra:
polícia. Em Seattle de 99, como no Barreiro de 19, açularam
polícias contra cidadãos que apenas reclamavam a vida com
justiça mínima e dignidade bastante. Dir-se-ia que é o tempo a
voltar para trás a mando dos donos deste mundo informatizado mas
podre e inviável a médio/longo prazo. Parece que em Seattle
não morreu ninguém. Mas, bem se sabe, a repressão segue dentro
de momentos em qualquer outro canto do planeta. Correia
da Fonseca