Crónica de um êxito anunciado


No dia 1 de Janeiro de 2000, Portugal assumirá a presidência da União Europeia por um período de seis meses. Por tal facto, anda o Primeiro Ministro numa entusiástica azáfama, exibindo qualidades e valências, ostentando capacidades e dinamismos, procurando assumir as «grandes responsabilidades» que lhe pesam sobre os ombros e dar resposta a «um conjunto muito significativo de tarefas importantes» decorrentes das decisões e das não-decisões de Helsínquia. Não é necessária grande imaginação para prever, com um mínimo de rigor, o que será o encerramento formal da presidência portuguesa, previsto para 20 de Junho, em Santa Maria da Feira. Isto é: não é necessário esperar seis meses para se saber, certeza certa, que «a presidência portuguesa foi um êxito unanimemente reconhecido» e para ouvirmos os muitos e importantes amigos que o Primeiro Ministro tem obtido – graças, como se sabe, a uma planificada ofensiva de captação de amizades e simpatias – tecerem os mais rasgados elogios ao semestral papel por ele desempenhado e às suas excelsas qualidades.

É certo que as descoordenações, confusões e outras situações verificadas no seio do Governo – que apesar de recém criado exibe sinais de desgaste característicos de governo em fim de mandato – podem perturbar a prestação europeia de António Guterres. Mas o pungente «apelo à solidariedade interna» feito pelo Primeiro Ministro no recente Conselho de Ministros extraordinário, mostra que quando Guterres fala – ou seja porque fala alto ou seja porque fala baixo – há sempre alguém que diz sim. Viu-se como o prestimoso ministro da Economia e Finanças, uns dias depois de, implacavelmente, ter destroçado a gestão de Maria de Belém na Saúde ( a ponto de deixar a colega em clamoroso «estado de choque»), obedeceu à ordem de solidariedade e, dando o dito por não dito, veio elogiar publicamente o que publicamente havia criticado. E como para grandes males grandes remédios – e talvez, também, porque Manuel Maria Carrilho continua à espera do seu Pina Moura – eis anunciado um pomposo «Conselho de Ministros de Reflexão», convocado, em mau português, para o período entre o Natal e o Ano Novo, e no decorrer do qual se espera que o Primeiro Ministro injecte no elenco governamental uma dose geral e forte de «solidariedade faz de conta» que crie as condições necessárias para que ele possa exercer com tranquilidade a sua tão sonhada presidência europeia.

Segundo o ministro Jaime Gama, as atenções e preocupações da presidência portuguesa vão centrar-se em quatro aspectos essenciais: «contribuir para que prossiga o processo de alargamento da União Europeia» (como é sabido, as perspectivas de alargamento a vinte e sete do número dos estados membro, traçadas em Helsínquia, remeteram para a presidência portuguesa a responsabilidade de tratar de seis novos candidatos); «arranque da nova CIG» (cuja deverá debruçar-se sobre um volumoso pacote também herdado de Helsínquia); «preparar «os primeiros passos de uma Política Comum de Segurança e Defesa»; e, finalmente, aquela que é a menina dos olhos, a «grande aposta» de António Guterres, o próprio: a Cimeira Extraordinária, marcada para Março, em Lisboa. Um quinto objectivo, considerado como «uma velha aposta de Portugal» era a Cimeira União Europeia – África. No entanto, e ao que parece, a «velha aposta» corre o risco de morrer de velhice... para já, pelo menos. O facto de Guterres não se lhe ter sequer referido no decorrer da triunfal conferência de imprensa em que anunciou os enormes êxitos da sua futura presidência, é indiciador de que «Portugal se prepara para deixar cair esta iniciativa». Se assim for, é mau. Como sublinhou Carlos Carvalhas no decorrer de uma iniciativa promovida pelo PCP e subordinada ao tema «Portugal África – Desenvolvimento e Cooperação», a presidência portuguesa «deve ser exercida para beneficiar a cooperação entre a Europa e a África» e, para isso, «Portugal tudo deve fazer para que a Cimeira não seja adiada e se realize» tendo em vista «fomentar um real desenvolvimento e uma verdadeira cooperação e a resolução das dívidas externas, nomeadamente dos países mais carenciados». Os obstáculos à realização da Cimeira poderão ser superados a partir do «pressuposto de que cada organização tem as suas próprias regras e cada uma das partes deve respeitar essas regras assumindo todas as consequências práticas, ou seja, ninguém pode ditar comportamentos, exclusões ou marginalizações», afirmou, ainda Carlos Carvalhas, acrescentando: «Portugal está interessado no relacionamento com todos os países do Norte de África, sem exclusões e deve rejeitar manobras que visem dividi-los ou agrupá-los segundo interesses das velhas potências coloniais».

A Cimeira Extraordinária de Março é, então, a «prioridade essencial da presidência portuguesa». Segundo o Primeiro Ministro ela será «um marco no lançamento de uma estratégia de longo prazo para fazer da UE a mais dinâmica e moderna economia mundial, com os novos factores competitivos próprios da sociedade do conhecimento, num horizonte temporal de dez anos». Trocar por miúdos tão arrevesada formulação é tarefa difícil mesmo para um cidadão com cultura e conhecimentos acima da média... Talvez por isso, e num meritório esforço clarificador, o conclave passou a ser designado por «Cimeira do Emprego». E o ministro Gama , acrescentando que o objectivo da «coisa» é «dar ao tema emprego uma concepção moderna», terá talvez esclarecido o essencial. Como se sabe, a «concepção moderna de emprego» traduz-se, em linguagem corrente, por desemprego, emprego precário, flexibilização... Mas tenhamos esperança: Guterres é um perito na matéria. Aqui há uns anos numa outra Cimeira realizada algures na Europa ele deixou todos os seus pares europeus boquiabertos ao apresentar um plano que garantia reduzir o desemprego na Europa em cerca de 50% até ao ano 2000. Disse-se, então, que face a tão espectacular milagre, o prestígio europeu, quiçá mundial, do engenheiro Guterres subiu em flecha. O desemprego, mais ou menos, também. Pelo que é de supor que, mais ou menos, assim voltará a suceder na Cimeira de Lisboa.
A acreditar no que nos vem sendo dito sobre a presidência portuguesa, depois dela nada será como era... Falta saber, em concreto, o que é que vai mudar. E, também, quem ficará a ganhar e quem ficará a perder com as mudanças.


«Avante!» Nº 1359 - 16.Dezembro.1999