Lembrar Soeiro Pereira Gomes
50 anos depois


Percursor do Neo-Realismo, dirigente comunista e organizador de importantes lutas de massas, Soeiro Pereira Gomes desapareceu há 50 anos.
Por todo o País multiplicam-se iniciativas que assinalam a data e celebram a vida e a obra daquele que nunca separou a literatura da militância e dos ideais.

O Avante! junta-se à homenagem com um dossier onde se inclui uma reportagem do debate sobre o autor, organizado em Alhandra, e a intervenção de Álvaro Cunhal na ocasião, bem como textos de Manuel Gusmão, António Dias Lourenço e Urbano Tavares Rodrigues.
Os textos de António Dias Lourenço e Urbano Tavares Rodrigues são extractos de intervenções proferidas no Seminário «Soeiro Pereira Gomes: o homem, a obra, a vida», realizado recentemente em Nápoles pelo Instituto Universitário Oriental, sob a responsabilidade científica do professor Giovani Ricciardi. Os textos integrais destas e das restantes intervenções apresentadas no seminário, da autoria de reputados especialistas portugueses e italianos, serão publicados no número relativo a Janeiro/Fevereiro da revista Vértice.

No âmbito das celebrações, o PCP promove uma exposição sobre Soeiro Pereira Gomes, patente ao público no Centro de Trabalho de Alhandra até ao fim de Dezembro.


 

Biografia

Joaquim Soeiro Pereira Gomes nasceu em 1909 na aldeia de Gestaçô, concelho de Baião, no seio de uma família de pequenos agricultores do Douro. Aprendeu a ler com o pai no «Primeiro de Janeiro», ainda antes de entrar na escola primária. Mais tarde vai para a Escola Agrícola de Coimbra, onde tira o curso de regente.
Em 1930, assina um contrato com a Companhia da Catumbela e embarca para Angola. Em 1931, regressa a Portugal insatisfeito com a experiência, quer pelas condições de trabalho quer pelos rigores do clima.
Nesse ano casa com Manuela Câncio Reis, fixa residência em Alhandra e emprega-se no escritório da fábrica «Cimento Tejo».
No final dos anos 30, Soeiro Pereira Gomes adere ao PCP, ingressa na célula da empresa e pouco depois integra o Comité Local de Alhandra, participando activamente na vasta acção cultural impulsionada pelo Partido em todo o Baixo Ribatejo, em articulação com o trabalho clandestino da organização.
Pioneiro do movimento neo-realista cuja consolidação se acentua a partir de 1939, Soeiro Pereira Gomes colabora nos jornais «Sol Nascente» e «O Diabo». Na sua casa juntam-se, entre outros, Alexandre Cabral, Sidónio Muralha e Alves Redol.
Soeiro organizou ainda cursos de ginástica para os operários da «Cimento Tejo», ajudou a criar bibliotecas populares nas sociedades recreativas e deu corpo ao projecto de construção de uma piscina (a «charca») para o povo de Alhandra, onde se forjaria uma figura ímpar da natação portuguesa, o comunista Baptista Pereira (a personagem Ginêto dos «Esteiros»).

Juntamente com Alves Redol e Dias Lourenço, promoveu e animou inúmeras excursões de fragata no Tejo, onde, a pretexto da confraternização, se aglutinavam intelectuais e se estabelecia o contacto político fora da vista do fascismo. A fragata e a bateira transformaram-se então em verdadeiras casas de apoio ao trabalho conspirativo, nas duras condições de luta clandestina.
Entre 1940 e 1942, Soeiro Pereira Gomes participa na reoganização do PCP e passa a fazer parte do Comité Regional do Ribatejo, que integrava Dias Lourenço e Carlos Pato.

Em Novembro de 1941, é publicado «Esteiros» pela editora Sírius com ilustrações de Álvaro Cunhal, obra que foca aspectos fundamentais da transformação da sociedade portuguesa da época.
O ano de 1941 é também marcado pela passagem de um devastador ciclone, em cujas operações de salvamento Soeiro se empenhou intensamente.
Entretanto, o regime salarazista tudo fazia para impedir o conhecimento dos crimes do holocausto nazi: as tabernas, os cafés e outros lugares públicos estavam proibidos de ligar os aparelhos de rádio à BBC à hora das emissões em língua portuguesa. Por isso, Soeiro Pereira Gomes, residente numa pequena moradia de um só piso, abria a janela da sala em que tinha a telefonia para que muitos populares pudessem escutar disfarçadamente as informações de Londres sobre a evolução da II Guerra Mundial.
Em 1944, Soeiro começa a escrever «Engrenagem», livro que não terá tempo de concluir, dado o rumo que a sua vida tomaria a partir de então.
Nas greves de 8 e 9 de Maio desse ano, Soeiro encontrava-se no seio dos trabalhadores em luta, como membro do Comité Regional da Greve do Baixo Ribatejo. A Pide teve conhecimento prévio do movimento grevista e começa a preparar uma cilada a Soeiro. Este vence a situação, mergulhando na clandestinidade na tarde de 11 de Maio de 1944.
É-lhe então confiada a Direcção Regional do Alto Ribatejo, entretanto criada, e onde ainda hoje a sua influência é recordada no alargamento da organização do Partido.
Acabada a II Guerra Mundial, o PCP realiza o seu IV Congresso na Lousã, em Julho de 1946, sendo Soeiro Pereira Gomes eleito para o Comité Central. Em Agosto elabora um «esboço sobre a maneira como utilizar as praças de jornas ou praças de trabalho no Movimento de Unidade Camponesa para o derrubamento do fascismo» e, pouco depois, é destacado para o Sector de Lisboa, onde se torna membro da Comissão Executiva do Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista (MUNAF), ao mesmo tempo que acompanha a actividade dos camaradas que actuavam no Movimento de Unidade Democrática (MUD).
Soeiro era elemento de ligação do Partido com o Conselho Nacional de Unidade Anti-Fascista quando adoece gravemente. Ainda participa no início da campanha presidencial de Norton de Matos em 1949, mas a doença progride minando-lhe a resistência física.


Alhandra recorda vida e obra de um escritor militante

Em Alhandra, no dia 7, desfilaram histórias da época de Soeiro Pereira Gomes e reflectiu-se sobre o presente e o futuro, num concorrido encontro com Álvaro Cunhal. Na sala da Sociedade Euterpe Alhandrense, podia-se ainda ver uma exposição sobre a vida e a obra do escritor, patente até ao fim do mês no Centro de Trabalho.

Centenas de pessoas enfrentaram a fria noite de 7 de Dezembro para participar no debate sobre «A Vida e a Obra de Soeiro Pereira Gomes», tema proposto pela Comissão de Freguesia de Alhandra do PCP, que organizou a iniciativa.
Junto a um Tejo invisível pela neblina, o grande salão da Sociedade Euterpe Alhandrense praticamente encheu com as pessoas que ali se deslocaram para ouvir Álvaro Cunhal (cuja intervenção publicamos nestas páginas) e com ele discutir não só as criações do escritor neo-realista, como também a intervenção política e social do militante comunista.
Soeiro Pereira Gomes nasceu longe de Alhandra, mas a população local vê-o como um natural da vila e mesmo como um herói da região. Isso ficou bem patente nas intervenções no debate, repleto de testemunhos das lutas sindicais da época de Soeiro e de histórias protagonizadas pelo escritor: as operações de salvamento após o ciclone de 1941, a criação de bibliotecas nas colectividades ribatejanas, a construção de uma piscina em Alhandra, entre outras.
Um dos intervenientes, já membro do Partido na década de 40, lembrou a tentativa dos militantes da zona de Vila Franca de Xira de levar Soeiro Pereira Gomes para Inglaterra para lá ser tratado. A operação seria feita de forma clandestina num navio, mas os responsáveis decidiram abortá-la quando descobriram que estavam previstas escalas noutros portos.
Álvaro Cunhal recordou também o passado, mas abordou o presente e o futuro do Partido, do país e do mundo. O dirigente comunista afirmou que, quando o Governo pede ao PCP que rejeite o passado e se transforme num partido semelhante ao PS, está a dar «um conselho de morte, um conselho para a nossa liquidação».
Para Álvaro Cunhal, o Partido tem de manter as suas convicções e permanecer ligado às massas na luta por melhores condições de vida. Veja-se os exemplos dos países onde os partidos comunistas deixaram de o ser. «Onde estão os benefícios dessas mudanças?», interrogou um participante na discussão.
O dirigente comunista elogiou a juventude portuguesa e falou da sua experiência com os mais novos, sublinhando a sua «vivacidade» e os «debates interessantes» em que tem participado em escolas secundárias e universidades de todo o país. Álvaro Cunhal referiu que os jovens constituem «uma grande massa que podemos ganhar, confiando neles e incentivando-os». — Isabel Araújo Branco


  • Álvaro Cunhal:
    Dedicação, coragem, firmeza ideológica
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Temos boas razões para estarmos aqui em Alhandra neste encontro evocativo de Soeiro Pereira Gomes.
A vida, a luta, a actividade revolucionária, a sua obra como escritor, estão inseparavelmente ligadas a esta terra.

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Soeiro Pereira Gomes teve destacado papel: na reorganização do Partido nos anos 40; nas grandes lutas operárias, em que participou, nomeadamente na greve de 8 e 9 de Maio de 1944; no desenvolvimento da organização, nomeadamente na Organização Regional do Ribatejo, que nesses anos dirigiu, como membro do Comité Central a partir do IV Congresso; no aprofundamento da ligação do Partido às massas e aos movimentos de massas; e na formação, organização, actividade e influência do movimento de unidade antifascista, nomeadamente do MUNAF e do MUD, tendo sido (como representante do Partido), membro das estruturas de direcção do movimento.

A sua actividade de militante na fábrica e nas lutas operárias tinha ainda outros aspectos de extraordinário valor: no movimento associativo; na realização de obras sociais; no desporto; na ligação estreita, actuante e solidária com as populações. Em 1941, nas operações de salvamento, quando do ciclone e inundações, com a sua coragem salvou muitas vidas. E ainda na actividade artística.
Soeiro Pereira Gomes foi um dos jovens escritores que constituíram o núcleo inicial da corrente literária que ficou conhecida com o nome de neo-realismo. Militante na fábrica, organizador de greves e outras lutas de operários e camponeses, dirigente do Partido, Soeiro Pereira Gomes era também um talentoso artista.
A sua obra de escritor é curta, mas valiosa e significativa. A par dos «Contos Vermelhos», em que narra episódios da vida e da luta clandestina, e do romance «Engrenagem», inspirado pela sua experiência na Cimento Tejo, a sua afirmação como romancista revela-se com «Esteiros» escrito e editado antes de passar à clandestinidade.
«Esteiros» é uma comovente história da vida de crianças que (como ele escreveu) «nunca foram meninos». Uma história de trabalho infantil; de miséria; de picardias, de audácia e aventuras, transbordando qualquer coisa de heróico na vida dessas crianças.
«Esteiros« foi desde logo considerado e reconhecido como uma pequena obras prima. Pediu-me que a ilustrasse e assim fiz, certo porém de que os modestos desenhos não eram dignos do valor da obra literária. Observação atenta da vida, «Esteiros» é um romance de profundos sentimentos de amor e ternura pelas crianças e transmite (sem o explicitar) a indignação pela exploração e miséria de que são vítimas.
Este romance traduz (não em termos de análise política, mas com igual força de expressão e convencimento) o humanismo dos ideais e da luta dos comunistas.

Ainda uma outra característica da personalidade de Soeiro Pereira Gomes. Além da dedicação, da coragem, da firmeza ideológica e da sua obra literária, deixou-nos um exemplo de particular relevo num comunista, sobretudo num dirigente comunista. Simples, modesto, dirigindo sem assomos de superioridade ou imposição, tratava os camaradas e as pessoas em geral com respeito e estima. Convivia fraternalmente com eles, ensinando e aprendendo com a vida e com os outros. São valores, com os quais, todos nós, na época, procurávamos aprender, e com os quais necessitamos de continuar a aprender. É um dos mais ricos elementos da herança que Soeiro Pereira Gomes nos deixou.

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Há porém ainda dois aspectos: um, a situação mundial que se vivia; outro de natureza ideológica, de que são inseparáveis o pensamento, actividade e a personalidade de Soeiro Pereira Gomes. Pouco se fala neles, mas eu gostaria de os abordar aqui convosco.
Para conhecer e compreender a orientação e acção do Partido nesses anos (e portanto também a vida militante de Soeiro Pereira Gomes) é indispensável ter em conta, a situação internacional que se vivia.
É uma verdade histórica que a Revolução de Outubro de 1917 e a formação da URSS tiveram influência determinante na criação do PCP. Desses acontecimentos o Partido recebeu o poderoso estímulo e a activa solidariedade da primeira Revolução (em milénios da história da Humanidade) que empreendeu a construção de uma sociedade sem explorados nem exploradores — uma sociedade socialista.
A União Soviética, nos anos 40, inspirava os trabalhadores do mundo pelas suas realizações na construção da nova sociedade e pelo seu papel na luta contra o fascismo que culminou com derrota do fascismo na 2ª Guerra Mundial.
Nesses anos, mesmo quando os exércitos alemães avançavam irresistíveis, ocupavam a Europa, chegavam aos Pirinéus, e a Leste, invadiam a União Soviética chegavam às portas de Leninegrado, de Moscovo e Stalinegrado, mesmo então, nós aqui confiávamos na vitória militar da União Soviética, como determinante para a vitória final dos Aliados.

O «Avante!» dava notícias da guerra tendo como título da página «A URSS vencerá!». E Soeiro Pereira Gomes (como muitos outros militantes) tinha na parede um mapa da URSS, no qual, bandeiras presas com alfinetes marcavam a linha da frente, no avanço libertador do Exército Vermelho, até à tomada de Berlim, ao hastear da bandeira, com a foice e o martelo no alto do Reichtag e (como se dizia então) «até liquidar a fera no próprio covil».

É de lembrar que o Partido se encontrava então isolado do movimento comunista internacional, desde a ruptura das relações com a Internacional Comunista em 1938, por suspeitas da IC de provocação, no seguimento da fuga do Aljube de Francisco Paula de Oliveira (Pavel).
Em 1947 fui encarregado pelo Partido de tentar restabelecer essas relações. Levava também como tarefa (no caso de conseguir chegar à União Soviética) de solicitar aos camaradas que Soeiro Pereira Gomes (já então gravemente doente) fosse lá tratar-se.
A última vez que nos encontrámos foi em fins de 1947 (precisamente nas vésperas da minha partida). Foi em Salir do Porto (na Baia de S. Martinho do Porto), onde então Soeiro Pereira Gomes vivia na clandestinidade. Estava escrevendo o seu romance «Engrenagem» que não viria a acabar.
Apesar de gravemente doente, mantinha o seu espírito militante, a sua esperança na vida e a sua confiança no futuro. Infelizmente a gravidade da doença e a dificuldade de ligações e viagens clandestinas não permitiram que fosse tratado.
Faleceu jovem, em 5 de Dezembro de 1949, com 40 anos de idade. A luta contra a morte não impediu que (até aos últimos dias de vida) continuasse confiante na vitória da causa comunista.

Camaradas:
Ele, como muitos outros que deram tudo de si próprios na luta pela liberdade e por uma sociedade melhor ficaram pelo caminho. Vitimados pela doença. Ou mortos nas prisões. Ou assassinados pela PIDE. Não chegaram a viver a conquista da liberdade, a Revolução de Abril e suas exaltantes realizações, a instauração de um regime democrático.
Falando nós hoje aqui de Soeiro Pereira Gomes, creio ser justo e necessário não só lembrá-los, mas manter viva a gratidão que lhes devemos por tudo quanto deram para o bem dos trabalhadores, do povo, do País e pelo grande exemplo das suas vidas.

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Um último aspecto. Nesses anos foi de importância capital para a acção revolucionária do movimento comunista e do nosso Partido a consciência de que possuíamos a poderosa arma de uma teoria revolucionária que não só explicava o mundo, mas indicava como transformá-lo. Uma teoria anti-dogmática e criativa, a teoria revolucionária do proletariado, o marxismo-leninismo.
Teoria que assenta as suas raízes na prática revolucionária que se enriquece e desenvolve e actualiza dando respostas novas às novas situações, aos novos fenómenos, à evolução da sociedade, mas cujos princípios fundamentais relativos ao conhecimento da natureza e do mundo, à explicação do capitalismo e à necessidade e possibilidade da sua superação por uma sociedade socialista inspiravam (e, a meu ver, bom será que continuem a inspirar) as nossas análises e a nossa orientação.

Soeiro Pereira Gomes e outros dirigentes e quadros do Partido estudávamos as obras de Marx, de Engels, de Lénine e procurávamos, e encontrávamos nelas experiências e ensinamentos para o nosso pensamento e a nossa acção.
Partidos que, dizendo-se marxistas, riscaram do seu património a Revolução de 1917 e o pensamento e acção de Lénine, deixaram de ser marxistas. Alguns, liquidaram-se a si próprios e acabaram por desaparecer.
Estais certamente de acordo em que, quando actualmente se pergunta «O que é ser comunista hoje?» podemos responder (além de outras definições) que não pode intitular-se comunista quem de facto deixou de o ser.
Para nós, «ser comunista hoje» (frente às grandes transformações sociais e à ofensiva global do imperialismo) é saber encontrar o caminho da luta para a solução dos problemas da hora presente, e os previsíveis a curto prazo.
Para nós, a par da luta por uma viragem democrática e patriótica na política nacional e a par da luta contra a ofensiva global do imperialismo; é também tarefa da nossa natureza e identidade continuar com confiança a luta por uma sociedade socialista, assinalando as lições do passado; mantendo-nos dignos de gerações e gerações de comunistas que (como Soeiro Pereira Gomes) consagraram suas vidas à luta pelos nossos ideais, prosseguindo com confiança a luta pela causa comunista.

  • António Dias Lourenço
    A personalidade política
    de Soeiro Pereira Gomes

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Joaquim Soeiro Pereira Gomes terminou o curso de regente agrícola na cidade universitária de Coimbra onde se radicara um professorado avançado e democrático e uma juventude académica irreverente e combativa empenhados no combate ao escolasticismo do ensino superior oficial.
Terminado o seu curso técnico Soeiro, ainda jovem, deslocou-se para Angola, então uma espécie de «jóia da coroa» do colonialismo português em África e aí colheu novos valores de consciência diante da desumana exploração colonial.
Por pouco tempo aí se manteve. Breve deixou África, rompeu o emprego da empresa colonialista portuguesa de Luanda e retornou ao continente.

Estava-se no início dos anos 30 quando Salazar, assumido o comendo absoluto do Estado, iniciava a consolidação e institucionalização do regime fascista privilegiando a ofensiva contra o movimento operário organizado e os sindicatos independentes de classe.
No mundo, com a paulatina superação da crise económica mundial de 1929/31, o nazi-fascismo ascende ao pode na Alemanha. Davam-se primeiros passos para a criação do eixo Berlim-Roma.
O triunfo da República em Espanha, a escalada para a Guerra Civil Espanhola (cujo chefe, general, Sanjurjo, que vivia no Estoril e tinha em Lisboa a direcção política e a direcção militar operacional da insurreição e que se despenhou na região do Alentejo quando, num avião, se dirigia a Marrocos para assumir o comando), também os primeiros passos na preparação e desencadeamento da II Guerra Mundial, iniciada com a activação do «vespeiro dos Balkans», as primeiras operações de anexação do Sarre, da região dos Sudetas, da Áustria, da Abissínia, foram acontecimentos de grande repercussão no mundo e em Portugal sob o domínio do fascismo.

É neste quadro que se forma e se integra a vida e actividade política e militante de Soeiro Pereira Gomes.
Radicado em Alhandra – na época um centro industrial de certa importância num concelho de forte concentração da propriedade rústica, Vila Franca de Xira, onde laços de classe ligavam numa aliança natural em torno de reivindicações fundamentais comuns os assalariados da indústria e da agricultura.
Aí conheceu e contraiu matrimónio com uma jovem compositora musical e activista local do teatro amador – Manuela Câncio Reis.
Aí também, quadro superior da maior cimenteira do país – a Cimentos Tejo, do poderoso grupo Sommer Champalimaud – onde se situavam igualmente fortes núcleos da metalurgia e das indústrias alimentar e têxtil, Pereira Gomes encontrou o PCP, em rigorosa clandestinidade, e uma actividade cultural de massas de projecção nacional que iria estar em força na actividade e na base social do movimento neo-realista em Portugal e do trabalho criador de dois dos mais qualificados iniciadores na área do romance e do jornalismo de ideias.

(...)
Soeiro Pereira Gomes inspirou-se para o seu trabalho de romancista, contista e sociólogo, no sector de exploração do trabalho em que ele próprio se inseria, do operariado industrial de Alhandra e do Baixo Ribatejo. Depois, quando teve de passar à clandestinidade para não cair nas malhas da odiosa polícia política do regime fascista de Salazar, encontrou, na odisseia clandestina dos seus irmãos de combate e dele próprio, motivos de inspiração para os seus «Contos Vermelhos» e «Refúgio Perdido» e para o seu trabalho de organizador e teórico do movimento de massas particularmente o seu folheto «Praça de Jornas», que teve grande impacto no movimento dos assalariados agrícolas.
A sua morte prematura na clandestinidade e as exigências do trabalho clandestino a que se entregou por inteiro privaram a literatura portuguesa daquele que poderia ter sido a figura mais alta do neo-realismo português e o seu Partido – o Partido Comunista Português – de um valoroso militante e quadro dirigente que muito poderia ter dado ainda à causa dos trabalhadores manuais e intelectuais e do seu povo.
Uma vincada expressão da sua personalidade política era sem dúvida a sua íntima ligação à população trabalhadora da sua terra adoptiva – Alhandra – aos problemas sociais e culturais dos alhandrenses.
Em Alhandra a multifacetada acção social de Soeiro granjeou-lhe o reconhecimento, a admiração e a profunda estima da população local.
Não é deslocado referir aqui um episódio – já conhecido e por mim referido num trabalho há quatro anos publicado, «Vila Franca de Xira um concelho no País», revelador do seu espírito solidário e de extrema dedicação ao povo.
No decurso de uma calamitosa tempestade que em Fevereiro de 1941 assolou toda a região de Lisboa e vale do Tejo e fez numerosas vítimas nas zonas ribeirinhas Soeiro Pereira Gomes tripulando, com três trabalhadores de Alhandra, uma frágil barca do Tejo conseguiu salvar do Mouchão de Alhandra (uma ilhota do Tejo fronteiriça à fábrica de Cimento em que trabalhava) mais de uma vintena de vidas de assalariados agrícolas (homens e mulheres) que viram engolidas pelas águas revoltas os «aposentos» de palha e colmo onde se alojavam.
Outro, jovem comunista e campeão internacional de natação de fundo – Baptista Pereira, o «Gineto» do seu romance «Esteiros» - conseguiu, seguindo o exemplo corajoso do escritor fazer vários salvamentos a nado.
Em Alhandra, chefe de escritório da cimenteira, Soeiro Pereira Gomes sempre se recusou a ser peão dos interesses patronais, identificou-se totalmente com os do mundo do trabalho na empresa. Aí se encontrou com a organização clandestina do Partido Comunista Português a que emprestou os primores de uma elevada cultura geral e da sua actividade dinâmica de caracter social de amplos contornos.
Este «encontro» com o PCP foi decisivo para a sua formação política e militante, para o seu percurso de resistente antifascista e de escritor neo-realista.
O contacto directo com os trabalhadores comunistas da Cimento Tejo e como núcleo neo-realista de Vila Franca de Xira, as suas qualidades pessoais justificaram a sua inclusão, primeiro no Comité Local de Alhandra, depois no Comité Regional do Ribatejo.
Os primeiros anos da década de 30 (Pereira Gomes radicou-se em Alhandra em 1932) foram cruciais, de profundos abalos e transformações.
Na retoma da primeira grande explosão da crise geral do sistema capitalista mundial, de 1929/31, marcada pelo ascenso do nazi-fascismo na Alemanha hitleriana dá-se o endurecimento da exploração e da repressão fascista que se agravam com o desencadeamento da II Guerra Mundial. Mas a estrela do nazi-fascismo na frente militar começa a empalidecer e após Stalinegrado o espectro da derrota hitleriana abala os regimes fascistas de Portugal e Espanha. Obrigado a recuos estratégicos o salazarismo, sob a pressão do movimento operativo e da luta antifascista manobra para sobreviver.

As grandes greves operárias e camponesas de 1941 e 1942 rasgam horizontes inusitados à luta libertadora do povo português. A repressão fascista contra o movimento operário e popular adquire caracter de massas.
É no Baixo Ribatejo, durante as agressões de assalariados agrícolas de 1943 e principalmente as lutas e greves do operariado industrial de 1943 e 1944 na região de Lisboa, Margem sul e Baixo Ribatejo que o fascismo envereda por formas de repressão em massa.
Pela primeira vez as praças de touros de Vila Franca, de Lisboa e de Montemor-o-Novo são transformadas em transitórios campos de concentração.
As greves de 8 e 9 de Maio de 1944 assinalam uma viragem na vida e na actividade de Soeiro Pereira Gomes.
Já como quadro político de responsabilidade numa região onde se concentravam unidades industriais de grande dimensão no plano nacional, Soeiro empenha-se activamente no novo curso do movimento de massas, colhe ao vivo e em directo uma experiência de luta de grande envergadura.
As greves de 8 e 9 de Maio, exactamente a um ano do fim da II Guerra Mundial, movimentam mais de 20 000 trabalhadores.

(...)
A fábrica de Cimentos Tejo, onde se empregava Soeiro Pereira Gomes, conjuntamente com a Têxtil do Sul e a Penteação de lãs, constituíam um baluarte de luta de importância decisiva na região. Concitavam por isso, com particular ferocidade, as actividades repressivas da polícia política.
Pereira Gomes escapou por pouco ás garras policiais. Avisado a tempo por uma vizinha, pode escapulir-se da sua residência quase sob as vistas dos esbirros policiais.
Um dos jovens grevistas aprisionados na Praça de Touros de Vila Franca – Saul Pereira – viu-o mesmo passar diante da porta, num carro a grande velocidade anotando de passagem a expressão de tristeza do escritor fugitivo.
E Pereira Gomes passa à clandestinidade. Membro do organismo clandestino de direcção regional do PCP é-lhe confiada a responsabilidade política do Alto Ribatejo.
Nas novas condições vêm ao de cima as suas excepcionais qualidades de organizador e de responsável político. Também o seu caracter de homem e militante comunista.

(...)
Com Soeiro Pereira Gomes o Alto Ribatejo, todo o distrito de Santarém se tornaram uma forte base da organização do PCP com uma intensa vida cultural e política.
É no jornal «Ribatejo», órgão clandestino a que ele deu vida que publica pela primeira vez o trabalho sobre as «Praças de Jornas». Estas «praças» eram o mercado de trabalho dos assalariados agrícolas. Aí patrões e «manageiros» discutiam o preço das «jornas» (o salário diário dos proletários do latifúndio.
No folheto Soeiro avançou com a proposta de formação de «Comissões de Praça» que centralizavam o montante do salário a discutir com os patrões ou os seus «manageiros».
Um passo importante foi dado com as «Comissões de Praça» na unidade dos trabalhadores do campo.
Pereira Gomes tornara-se um quadro dirigente de excepcional capacidade.
O Congresso (ilegal) do PCP em 1946, na Lousã – região de Coimbra – elege-o membro do Comité Central e tarefas politicamente mais complexas lhe são confiadas.

(...)
Com a sua morte desaparece uma grande figura da literatura portuguesa e um firme e corajoso resistente antifascista e dirigente do PCP.
Hoje quando se comemora em Portugal um quarto de século da Revolução libertadora de 25 de Abril de 1974, o seu nome e a sua actividade não podem deixar de estar noscimentos do regime democrático em Portugal.

  • Urbano Tavares Rodrigues
    Ficcionista - poeta
    pioneiro do Neo-Realismo

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Importa reconsiderarmos hoje o Neo-Realismo, após todos os sucessos e desastres históricos que o Socialismo conheceu desde o início dos anos quarenta e todas as voltas e reviravoltas, tratos de polé e momentos exaltantes que o romance sofreu desde então. Primeiro o chamado novo romance francês ou romance objectal e até anti-romance ou ainda romance do olhar; e logo em seguida, na década de sessenta, a força e o fascínio do realismo mágico latino-americano; depois a escrita textual ou o apogeu do hipertexto, que evacua do romance o próprio autor, e mais tarde a desconstrução do romance e de novo a idolatria do fragmento e ainda o regresso à História e à biografia e por fim à fábula inócua superficialmente interessante, em sintonia com uma certa pós-modernidade (uma delas) ligada ao culto da moda e da televisão, e à sociedade-espectáculo, que acompanham o triunfo actual, passageiro que seja, do neo-liberalismo ou capitalismo global.

O neo-realismo português foi, antes de tudo - é bom não o esquecer - uma literatura de resistência ao fascismo salazarista, o que lhe ampliou as margens, embora tenha tido como «deus oculto» (para citar Lucien Goldmann, o grande sociólogo da literatura desse período) ou como guia teórico, a visão marxista da história e do futuro, concebida como luta de classes, e a inevitável vitória do Socialismo.
Esta lição preside de facto à elaboração das grandes obras ficcionais de Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Faure da Rosa e Manuel Tiago, por exemplo. E de Antunes da Silva, Alexandre Cabral e outros neo-realistas de maior ou menor mérito. Mas cada um deles, consoante o seu grau de conhecimento, nem sempre muito elevado, do materialismo histórico e dialéctico e a sua outra cultura humanística e literária, e naturalmente a sua sensibilidade e a sua ideossincracia própria, produziu romances e contos muito diversos na apreensão do real, na maneira de veicular criticamente a mensagem, no nível de literariedade e nas ressonâncias pessoais, embora com um denominador comum: a denúncia do regime e das suas desiguaIdades iníquas e uma certa esperança em contribuir pela escrita para transformar o País, fazendo-se ouvir.
Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes, os primeiros a surgirem, com o chamado grupo de Vila Franca de Xira, voltaram-se decididamente para a sondagem lúcida, mas também apaixonada, do mundo dos operários e camponeses, alimentando o ambicioso projecto de levarem a efeito, à luz da análise marxista, uma espécie de levantamento do homem e da terra portuguesa, que relevava quase tanto da sociologia como da literatura, o que se explica pelo facto de esta poder romper ou iludir mais facilmente as barreiras da censura, que condicionou durante tantas décadas a vida cultural e a produção artística em Portugal.
Essa mesma censura castrou a produção neo-realista, humilhando os escritores, cortando-lhes parcialmente as obras, como sucedeu com Redol e Manuel da Fonseca da forma mais estulta, ou proibindo-as totalmente e gerando a auto-censura, o pior dos males, o medo de escrever, a necessidade de baixar a fasquia, de usar eufemismos, de sugerir, sem dizer, de deixar à imaginação do leitor muito do não dito. Há quem entenda que os neo-realistas se defenderam bem destes escolhos, criando os seus códigos alusivos, usando o efeito de distanciação, certas parábolas, certas ambiguidades expressivas. A verdade é que tudo isso, esses disfarces, essas metáforas e cumplicidades com o leitor, pode o escritor socorrer-se delas em liberdade e então resultam melhor.

(...)
Soeiro escreveu amorosamente Esteiros. À janela da vida, debruçando-se sobre as adolescências pobres e tendo já entrado quantas vezes nas casas da miséria e da marginalidade, pode imaginar sem esforço, ou mesmo copiar do real, amalgamando-as e transformando-as, personagens tão ricas e diversas como as do João Gaitinhas, do Maquineta, do Malesso, do Cocas, do Sagui, do violento Gineto, representação da pura e nua rebeldia.

(...)
A apetência de Soeiro para aflorar o onírico e o poético, paralelamente à crua representação das injustiças sociais e à análise das infra-estruturas económicas (a exploração dos fracos pelos fortes, a devoração das pequenas e médias empresas pela grande fábrica), essa vontade de penetrar no mais fundo e no menos claro dos seres humanos e também a difusa vontade da beleza que a palavra surpreende e recria, tão patente nas rápidas descrições da natureza e das estações do ano, conferem-lhe um lugar muito especial no aerópago neo-realista. o de um fiel seguidor dos princípios da escola, ao mesmo tempo com sensibilidade estética, próxima da escrita poética. Mas é sobretudo nas situações, no arranjo dos quadros familiares, na expressão do sofrimento humano e na permanente vontade de sonho que se entremostra o poeta que há em Soeiro Pereira Gomes.

(...)
Engrenagem é um esplêndido romance, que apenas carecia da revisão (porventura da reelaboração de algumas passagens) que Soeiro não pôde levar a cabo, para nos surgir simultaneamente como incisiva análise das relações económicas e humanas numa vila ribatejana e numa grande fábrica de ferro e aço (semelhante nalguns aspectos à dos Cimentos-Tejo, onde o autor foi chefe de escritório) e verdadeira epopeia das lutas do operariado industrial.
Extremamente dotado para o diálogo, Soeiro faz-nos ouvir os rudes proletários dessa fábrica paradigmática, tal como os camponeses das hortas e os filhos da miséria que desaguam na estrada em construção e, sob a ríspida orientação do empreiteiro, suam todos os venenos, britando pedra de sol a sol. Maços e picaretas de uma escravatura consentida.

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É patente nas páginas de Engrenagem a familiaridade e o lúcido conhecimento que Soeiro tinha do carácter, das manhas, da revolta e do sofrimento dos proletários de Alhandra, o pequeno grande mundo que ele amava. Basta ver como no-los apresenta e revela em acção; um deles até sacrifica um dedo da mão para obter o seguro de trabalho. Mas a grande pintura colectiva, em tons afogueados, quase excessivos, é a do motim em que os operários, na fúria do protesto, ameaçam, como já disse, tudo arrasar. Além desta cena, é ainda muito impressionante o inspirado segmento textual em que o narrador externo pinta por palavras o ventre da fábrica.

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Os contos de Soeiro Pereira Gomes têm de ser reavaliados, isto é, devidamente reconhecidos como magníficos exemplares de uma arte da narrativa curta voltada para a suprema síntese e, em muitos casos, para a súbita fulgurância poética.
Não são rápidos apontamentos rascunhados nos intervalos da acção política; bem pelo contrário me aparecem na generalidade como frutos sazonados de um intenso desejo de exprimir a fraternidade com os mais escarnecidos e isolados, os mais pobres de afecto, totalmente excluídos do bem-estar, da cultura, até mesmo do círculo dos seus iguais, como o Pastiure.
O talento verbal de Soeiro Pereira Gomes, o seu dom de criar atmosferas, de caracterizar personagens, de comunicar ao leitor a dor ou a alegria, a solidão, a humilhação ou a esperança, pelas palavras e pelas conotações mais certeiras, mais eficazes, sem um lugar-comum, sem um empolamento do discurso, alguma coisa deve decerto às leituras literárias, que despertaram nele o escritor. Entre elas seguramente Zola, talvez Tchekov e Maupassant, mestre da economia discursiva.

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Com o recuo de mais de meio século, ao olharmos para trás, para a juventude ardorosa desse primeiro neo-realismo, fremente de poesia emancipadora, ainda ligado ao melhor naturalismo de Zola e à lição dos grandes escritores russos como Gorky e Fedor Gladkcov, criadores do realismo socialista, vemos os pioneiros Redol e Soeiro numa nuvem de esperança, ao lado da classe operária, a grande vítima social de então, mas também protagonista de um futuro histórico radioso, tal como os dois romancistas a vêem na sua infinita confiança. Ambos militantes do Partido Comunista Português, ambos em combate com as palavras, instrumento da sua arte e da sua luta. Soeiro Pereira Gomes, no entanto, ama a palavra em si - não pode escondê-lo -; os seus arranjos verbais, as suas metáforas e comparações, a forma como, através das imagens verbais, tenta recriar o telurismo da natureza, o milagre sempre renovado da luz, a beleza e os dramas de cada estação, os desencontros do homem e da terra úbere, que um destino aziago amiúde lhe torna madrasta, são, fora de dúvida, de um esteta, sendo de um revolucionário.

É-me difícil encontrar as palavras necessárias para falar criticamente dos Contos Vermelhos. Estão tão perto da vida, são páginas tão fortes, tão cheias de singelo humanismo, de infinita dedicação à luta pela liberdade do povo português, que, sempre que os releio, me emocionam e me aparecem como transcrição exacta e apaixonada do que foi concretamente para cada comunista, cada clandestino, essa saga interminável e obscura, entre o perigo constante, a solidão e quantas vezes o cárcere, a tortura.
Mas, se assim eu recebo e dolorosamente, euforicamente também, vibro a tal ponto com os Contos Vermelhos, é que, sem dúvida, em cada página, cada verbo, cada adjectivo, cada comparação ele pôs, talvez mais por instinto artístico do que por artifício (sabemos como a arte da palavra é consubstancial à literatura), ele pôs unidas, fundidas, a alma, quer dizer, toda a vibração do espírito e do corpo, e sobretal o talento. Esse seu invulgar talento de narrador-poeta.

  • Manuel Gusmão
    Os Contos Vermelhos
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Quando quem
dedica um conto
também dedica a vida

Escritos por Soeiro Pereira Gomes na clandestinidade, Os contos vermelhos narram experiências típicas ou exemplares da vida clandestina dos resistentes comunistas ao fascismo. Contam acções de personagens em situações excepcionais, porque a clandestinidade política é um estado de excepção, por um lado porque é violentamente imposta, por outro, porque aqueles que a ela se decidem, sempre minoritários, o fazem para acabar com a situação que a impõe.

São histórias que figuram homens comuns, mas portadores de uma força; histórias sobre a sua experiência física e moral do medo. Medo de ser preso, medo de falhar, medo de ter medo, medo supersticioso dos fantasmas que vêm (em parte) da infância, medo da tortura e do sofrimento físico, medo de morrer,- de perder a vida e os afectos que a tecem. Mas são também histórias sobre a força anímica, moral e política, que pode vencer esses medos. São assim, também, histórias de uma esperança. A daqueles a quem anima uma paixão histórica: a de uma luta pela liberdade que lhes aparece indissociavelmente ligada à luta por uma revolução. Há quem ache que se trata de uma esperança ingénua, equivocada, ou destinada a frustrar-se. Mas, reparem, talvez não seja muito difícil perceber que essa esperança é, nestes contos, um factor de dignidade individual e, ao mesmo tempo, algo que vem de se fazer parte de um colectivo, tão livremente escolhido que por ele se arrisca a dureza da vida clandestina e, no limite o risco de morte. Este fazer parte significa a partilha de um conhecimento de como as coisas são e de ideais de transformação, de valores e de projectos de uma mudança do mundo e da vida.

No primeiro conto, "Refúgio perdido", um revolucionário, perseguido e quase cercado, perde o seu refúgio e, por duas vezes mais, no mesmo dia, falha a sua instalação num novo quarto; falha também um encontro para passar os jornais clandestinos que deve distribuir. Acaba por dormir ao relento, sem ter comido, e pensando que não faltará ao encontro de recurso (um segundo encontro já pré-marcado para o caso de falhar o primeiro).

No segundo conto, "O pio dos mochos", alguém que, tendo estado preso, "falou", recebe dos seus camaradas uma oportunidade para se reintegrar no combate. Devendo deixar, no cemitério de uma povoação em luta e cercada pelas forças policiais, panfletos de apoio aos camponeses e alguns mantimentos, é assaltado pelos medos, mas, ajudado por aquele que lhe propôs a tarefa, acaba por cumpri-la e reencontrar uma espécie de alegria. No fundo, venceu uma prova.

No terceiro conto, "Mais um herói, alguém que é preso parece preparar uma auto-justificação para a eventualidade de, sob a tortura, acabar por denunciar os seus. Entretanto, confrontado com um camarada seu que já cedeu e começou a "falar", opera-se nele uma convulsão ao mesmo tempo estranha e clara: um gesto de indignação e de rebeldia, que levará a que aquele seu companheiro recuse o que já disse, e faz com que ele próprio vá resistir à tortura. Podemos reparar que a ordem dos contos não segue linearmente a ordem da sua redacção (todos eles são datados), o que revela um gesto de composição que estabelece uma ordem crescente de intensidade. O último conto é aquele que mais próximo nos leva ao encontro com a brutalidade, o risco do desastre moral, da derrota política, da morte. A intensidade do que está em jogo temos que a imaginar. De certa forma, na literatura é tendencialmente sempre assim: a literatura é obra de imaginação, mas também no sentido em que solicita a imaginação de quem lê.

Em cada conto, os protagonistas estão, em grande medida, sós. É certo que há sempre, embora com funções diversas, uma outra personagem, um seu camarada que aparece; mas a força com que experimentam o medo, reagem e actuam, têm que a encontrar em si. Entretanto, a essa relativa solidão chegam os ecos e os gestos de uma presença solidária: a de um partido que, golpeado pelas prisões e o assassinato, sobrevive pelas suas raízes sociais, pelos laços que o ligam àqueles que o fazem. Tais ecos chegam pelo encontro ou acção de um outro camarada, pela recordação da "voz" que fala nos jornais clandestinos, pela participação po-ética do narrador naquilo que conta.

Reparem noutra coisa. O narrador parece frequentemente contar a partir do ponto de vista, do olhar, do pensamento da personagem. Logo a abrir o primeiro conto, o último período do primeiro parágrafo parece indirectamente integrar no discurso da narração o pensamento da personagem. Por outro lado, esse narrador ao dar-nos conta do que os protagonistas pensam, usa por vezes o discurso directo, mas também, e com significativa frequência, um processo que podemos designar como discurso indirecto livre: então, esses pensamentos relatados entre aspas, contêm entretanto modificações da pessoa e dos modos e tempos verbais que esperaríamos num discurso directo entre aspas.
Um exemplo de discurso directo: "Não largarei a mala que os companheiros me confiaram". Um outro agora de discurso indirecto livre: "E se, enquanto saísse, a senhoria lhe vasculhasse a mala?
Talvez não. Ela não tinha cara de bisbilhoteira. De qualquer modo, não podia demorar-se" (Estas frases, se em discurso directo, dariam qualquer coisa como: "E, se enquanto sair, a senhoria me vasculha a mala. Talvez não. Ela não tem cara de bisbilhoteira. De qualquer modo, não posso demorar-me").
Nestes textos, estes processos podem ser lidos, por exemplo, como sinais de uma intensa cumplicidade entre o narrador e os seus protagonistas. É que o narrador é um deles, partilha da sua "paixão", ou seja partilha da sua experiência apaixonada de uma vida que combate. É aliás relativamente claro que estes contos participam da produção daquela "voz" de que acima falei. Sendo contos, eles fazem aquilo que contam. O que quero dizer é que o seu contar faz parte da "construção" daquele colectivo de humanos que fazem e sofrem as coisas que os contos contam.
Contos de aventuras numa situação limite ou de crise, contos morais ou contos exemplares, porque contam experiências humanas em estado particularmente intenso ou concentrado, estas pequenas histórias são também elogios, homenagens ou dedicatórias sob forma narrativa. Quando foram, por várias vezes, publicadas clandestinamente, traziam já a dedicatória que abre a série dos três contos. Mas só depois do 25 de Abril passaram a poder aparecer com as dedicatórias que o seu autor atribuíra a cada conto. Estes contos podem também ser lidos como amplificações narrativas dessas dedicatórias. Aliás, e em sentido inverso, podemos verificar que os textos de várias das dedicatórias contêm já alusões ou micro-narrativas que remetem para a "grande narrativa" e a acção histórica de que estes contos participam.

Talvez valha a pena reparar agora que os dois romances que Soeiro Pereira Gomes escreveu abriam com dedicatórias. Esteiros: "Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro"; Engrenagem: "Para os trabalhadores sem trabalho -rodas paradas duma engrenagem caduca". Qualquer delas contém uma referência a um estado de coisas ("homens que nunca foram meninos"; "trabalhadores sem trabalho"); referência que implica um ponto de vista determinado, uma posição e uma avaliação ("rodas de uma engrenagem caduca"), que partem de um modo de olhar (ou de conhecer) que, ao mesmo tempo, projecta no presente a presença/ausência de um futuro de emancipação. Esse futuro está já presente, como possibilidade real, quando se caracteriza a engrenagem como caduca (assim como na acção que Fariseu protagoniza e no panfleto que lê), e está ausente (por isso objecto de conquista), porque a engrenagem permanece e domina (sabemos que ainda hoje domina, mesmo na diferença das suas formas.

Não é preciso construir uma estética normativa para legitimar literariamente os Contos Vermelhos de Soeiro Pereira Gomes. Eles auto-justificam-se na sua comovente condição de gestos de alguém que ao dedicá-los também dedicava a (sua) vida. As suas dedicatórias são gestos político-ideológicos, é evidente, mas nisso mesmo são gestos éticos, não o esqueçamos; gestos poéticos.


«Avante!» Nº 1359 - 16.Dezembro.1999