Lembrar
Soeiro Pereira Gomes
50 anos depois
Percursor do Neo-Realismo, dirigente comunista e organizador de importantes lutas de massas, Soeiro Pereira Gomes desapareceu há 50 anos.
Por todo o País multiplicam-se iniciativas que assinalam a data e celebram a vida e a obra daquele que nunca separou a literatura da militância e dos ideais.O Avante! junta-se à homenagem com um dossier onde se inclui uma reportagem do debate sobre o autor, organizado em Alhandra, e a intervenção de Álvaro Cunhal na ocasião, bem como textos de Manuel Gusmão, António Dias Lourenço e Urbano Tavares Rodrigues.
Os textos de António Dias Lourenço e Urbano Tavares Rodrigues são extractos de intervenções proferidas no Seminário «Soeiro Pereira Gomes: o homem, a obra, a vida», realizado recentemente em Nápoles pelo Instituto Universitário Oriental, sob a responsabilidade científica do professor Giovani Ricciardi. Os textos integrais destas e das restantes intervenções apresentadas no seminário, da autoria de reputados especialistas portugueses e italianos, serão publicados no número relativo a Janeiro/Fevereiro da revista Vértice.No âmbito das celebrações, o PCP promove uma exposição sobre Soeiro Pereira Gomes, patente ao público no Centro de Trabalho de Alhandra até ao fim de Dezembro.
Biografia
Joaquim Soeiro Pereira Gomes nasceu em 1909 na aldeia de Gestaçô, concelho de Baião, no seio de uma família de pequenos agricultores do Douro. Aprendeu a ler com o pai no «Primeiro de Janeiro», ainda antes de entrar na escola primária. Mais tarde vai para a Escola Agrícola de Coimbra, onde tira o curso de regente.
Em 1930, assina um contrato com a Companhia da Catumbela e embarca para Angola. Em 1931, regressa a Portugal insatisfeito com a experiência, quer pelas condições de trabalho quer pelos rigores do clima.
Nesse ano casa com Manuela Câncio Reis, fixa residência em Alhandra e emprega-se no escritório da fábrica «Cimento Tejo».
No final dos anos 30, Soeiro Pereira Gomes adere ao PCP, ingressa na célula da empresa e pouco depois integra o Comité Local de Alhandra, participando activamente na vasta acção cultural impulsionada pelo Partido em todo o Baixo Ribatejo, em articulação com o trabalho clandestino da organização.
Pioneiro do movimento neo-realista cuja consolidação se acentua a partir de 1939, Soeiro Pereira Gomes colabora nos jornais «Sol Nascente» e «O Diabo». Na sua casa juntam-se, entre outros, Alexandre Cabral, Sidónio Muralha e Alves Redol.
Soeiro organizou ainda cursos de ginástica para os operários da «Cimento Tejo», ajudou a criar bibliotecas populares nas sociedades recreativas e deu corpo ao projecto de construção de uma piscina (a «charca») para o povo de Alhandra, onde se forjaria uma figura ímpar da natação portuguesa, o comunista Baptista Pereira (a personagem Ginêto dos «Esteiros»).Juntamente com Alves Redol e Dias Lourenço, promoveu e animou inúmeras excursões de fragata no Tejo, onde, a pretexto da confraternização, se aglutinavam intelectuais e se estabelecia o contacto político fora da vista do fascismo. A fragata e a bateira transformaram-se então em verdadeiras casas de apoio ao trabalho conspirativo, nas duras condições de luta clandestina.
Entre 1940 e 1942, Soeiro Pereira Gomes participa na reoganização do PCP e passa a fazer parte do Comité Regional do Ribatejo, que integrava Dias Lourenço e Carlos Pato.Em Novembro de 1941, é publicado «Esteiros» pela editora Sírius com ilustrações de Álvaro Cunhal, obra que foca aspectos fundamentais da transformação da sociedade portuguesa da época.
O ano de 1941 é também marcado pela passagem de um devastador ciclone, em cujas operações de salvamento Soeiro se empenhou intensamente.
Entretanto, o regime salarazista tudo fazia para impedir o conhecimento dos crimes do holocausto nazi: as tabernas, os cafés e outros lugares públicos estavam proibidos de ligar os aparelhos de rádio à BBC à hora das emissões em língua portuguesa. Por isso, Soeiro Pereira Gomes, residente numa pequena moradia de um só piso, abria a janela da sala em que tinha a telefonia para que muitos populares pudessem escutar disfarçadamente as informações de Londres sobre a evolução da II Guerra Mundial.
Em 1944, Soeiro começa a escrever «Engrenagem», livro que não terá tempo de concluir, dado o rumo que a sua vida tomaria a partir de então.
Nas greves de 8 e 9 de Maio desse ano, Soeiro encontrava-se no seio dos trabalhadores em luta, como membro do Comité Regional da Greve do Baixo Ribatejo. A Pide teve conhecimento prévio do movimento grevista e começa a preparar uma cilada a Soeiro. Este vence a situação, mergulhando na clandestinidade na tarde de 11 de Maio de 1944.
É-lhe então confiada a Direcção Regional do Alto Ribatejo, entretanto criada, e onde ainda hoje a sua influência é recordada no alargamento da organização do Partido.
Acabada a II Guerra Mundial, o PCP realiza o seu IV Congresso na Lousã, em Julho de 1946, sendo Soeiro Pereira Gomes eleito para o Comité Central. Em Agosto elabora um «esboço sobre a maneira como utilizar as praças de jornas ou praças de trabalho no Movimento de Unidade Camponesa para o derrubamento do fascismo» e, pouco depois, é destacado para o Sector de Lisboa, onde se torna membro da Comissão Executiva do Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista (MUNAF), ao mesmo tempo que acompanha a actividade dos camaradas que actuavam no Movimento de Unidade Democrática (MUD).
Soeiro era elemento de ligação do Partido com o Conselho Nacional de Unidade Anti-Fascista quando adoece gravemente. Ainda participa no início da campanha presidencial de Norton de Matos em 1949, mas a doença progride minando-lhe a resistência física.
Alhandra recorda vida e obra de um escritor militante
Em Alhandra, no dia 7, desfilaram histórias da época de Soeiro Pereira Gomes e reflectiu-se sobre o presente e o futuro, num concorrido encontro com Álvaro Cunhal. Na sala da Sociedade Euterpe Alhandrense, podia-se ainda ver uma exposição sobre a vida e a obra do escritor, patente até ao fim do mês no Centro de Trabalho.
Centenas de pessoas
enfrentaram a fria noite de 7 de Dezembro para participar no
debate sobre «A Vida e a Obra de Soeiro Pereira Gomes», tema
proposto pela Comissão de Freguesia de Alhandra do PCP, que
organizou a iniciativa.
Junto a um Tejo invisível pela neblina, o grande salão da
Sociedade Euterpe Alhandrense praticamente encheu com as pessoas
que ali se deslocaram para ouvir Álvaro Cunhal (cuja
intervenção publicamos nestas páginas) e com ele discutir não
só as criações do escritor neo-realista, como também a
intervenção política e social do militante comunista.
Soeiro Pereira Gomes nasceu longe de Alhandra, mas a população
local vê-o como um natural da vila e mesmo como um herói da
região. Isso ficou bem patente nas intervenções no debate,
repleto de testemunhos das lutas sindicais da época de Soeiro e
de histórias protagonizadas pelo escritor: as operações de
salvamento após o ciclone de 1941, a criação de bibliotecas
nas colectividades ribatejanas, a construção de uma piscina em
Alhandra, entre outras.
Um dos intervenientes, já membro do Partido na década de 40,
lembrou a tentativa dos militantes da zona de Vila Franca de Xira
de levar Soeiro Pereira Gomes para Inglaterra para lá ser
tratado. A operação seria feita de forma clandestina num navio,
mas os responsáveis decidiram abortá-la quando descobriram que
estavam previstas escalas noutros portos.
Álvaro Cunhal recordou também o passado, mas abordou o presente
e o futuro do Partido, do país e do mundo. O dirigente comunista
afirmou que, quando o Governo pede ao PCP que rejeite o passado e
se transforme num partido semelhante ao PS, está a dar «um
conselho de morte, um conselho para a nossa liquidação».
Para Álvaro Cunhal, o Partido tem de manter as suas convicções
e permanecer ligado às massas na luta por melhores condições
de vida. Veja-se os exemplos dos países onde os partidos
comunistas deixaram de o ser. «Onde estão os benefícios dessas
mudanças?», interrogou um participante na discussão.
O dirigente comunista elogiou a juventude portuguesa e falou da
sua experiência com os mais novos, sublinhando a sua
«vivacidade» e os «debates interessantes» em que tem
participado em escolas secundárias e universidades de todo o
país. Álvaro Cunhal referiu que os jovens constituem «uma
grande massa que podemos ganhar, confiando neles e
incentivando-os». Isabel Araújo Branco
Temos boas razões para estarmos
aqui em Alhandra neste encontro evocativo de Soeiro
Pereira Gomes. 1 Soeiro Pereira Gomes teve destacado papel: na reorganização do Partido nos anos 40; nas grandes lutas operárias, em que participou, nomeadamente na greve de 8 e 9 de Maio de 1944; no desenvolvimento da organização, nomeadamente na Organização Regional do Ribatejo, que nesses anos dirigiu, como membro do Comité Central a partir do IV Congresso; no aprofundamento da ligação do Partido às massas e aos movimentos de massas; e na formação, organização, actividade e influência do movimento de unidade antifascista, nomeadamente do MUNAF e do MUD, tendo sido (como representante do Partido), membro das estruturas de direcção do movimento. A sua
actividade de militante na fábrica e nas lutas
operárias tinha ainda outros aspectos de extraordinário
valor: no movimento associativo; na realização de obras
sociais; no desporto; na ligação estreita, actuante e
solidária com as populações. Em 1941, nas operações
de salvamento, quando do ciclone e inundações, com a
sua coragem salvou muitas vidas. E ainda na actividade
artística. Ainda uma
outra característica da personalidade de Soeiro Pereira
Gomes. Além da dedicação, da coragem, da firmeza
ideológica e da sua obra literária, deixou-nos um
exemplo de particular relevo num comunista, sobretudo num
dirigente comunista. Simples, modesto, dirigindo sem
assomos de superioridade ou imposição, tratava os
camaradas e as pessoas em geral com respeito e estima.
Convivia fraternalmente com eles, ensinando e aprendendo
com a vida e com os outros. São valores, com os quais,
todos nós, na época, procurávamos aprender, e com os
quais necessitamos de continuar a aprender. É um dos
mais ricos elementos da herança que Soeiro Pereira Gomes
nos deixou. 2 Há porém
ainda dois aspectos: um, a situação mundial que se
vivia; outro de natureza ideológica, de que são
inseparáveis o pensamento, actividade e a personalidade
de Soeiro Pereira Gomes. Pouco se fala neles, mas eu
gostaria de os abordar aqui convosco. O «Avante!» dava notícias da guerra tendo como título da página «A URSS vencerá!». E Soeiro Pereira Gomes (como muitos outros militantes) tinha na parede um mapa da URSS, no qual, bandeiras presas com alfinetes marcavam a linha da frente, no avanço libertador do Exército Vermelho, até à tomada de Berlim, ao hastear da bandeira, com a foice e o martelo no alto do Reichtag e (como se dizia então) «até liquidar a fera no próprio covil». É de
lembrar que o Partido se encontrava então isolado do
movimento comunista internacional, desde a ruptura das
relações com a Internacional Comunista em 1938, por
suspeitas da IC de provocação, no seguimento da fuga do
Aljube de Francisco Paula de Oliveira (Pavel). Camaradas: 3 Um último
aspecto. Nesses anos foi de importância capital para a
acção revolucionária do movimento comunista e do nosso
Partido a consciência de que possuíamos a poderosa arma
de uma teoria revolucionária que não só explicava o
mundo, mas indicava como transformá-lo. Uma teoria
anti-dogmática e criativa, a teoria revolucionária do
proletariado, o marxismo-leninismo. Soeiro
Pereira Gomes e outros dirigentes e quadros do Partido
estudávamos as obras de Marx, de Engels, de Lénine e
procurávamos, e encontrávamos nelas experiências e
ensinamentos para o nosso pensamento e a nossa acção. |
(...) Estava-se no
início dos anos 30 quando Salazar, assumido o comendo
absoluto do Estado, iniciava a consolidação e
institucionalização do regime fascista privilegiando a
ofensiva contra o movimento operário organizado e os
sindicatos independentes de classe. É neste
quadro que se forma e se integra a vida e actividade
política e militante de Soeiro Pereira Gomes. (...) As grandes
greves operárias e camponesas de 1941 e 1942 rasgam
horizontes inusitados à luta libertadora do povo
português. A repressão fascista contra o movimento
operário e popular adquire caracter de massas. (...) (...) (...) |
Importa reconsiderarmos hoje o Neo-Realismo, após todos os sucessos e desastres históricos que o Socialismo conheceu desde o início dos anos quarenta e todas as voltas e reviravoltas, tratos de polé e momentos exaltantes que o romance sofreu desde então. Primeiro o chamado novo romance francês ou romance objectal e até anti-romance ou ainda romance do olhar; e logo em seguida, na década de sessenta, a força e o fascínio do realismo mágico latino-americano; depois a escrita textual ou o apogeu do hipertexto, que evacua do romance o próprio autor, e mais tarde a desconstrução do romance e de novo a idolatria do fragmento e ainda o regresso à História e à biografia e por fim à fábula inócua superficialmente interessante, em sintonia com uma certa pós-modernidade (uma delas) ligada ao culto da moda e da televisão, e à sociedade-espectáculo, que acompanham o triunfo actual, passageiro que seja, do neo-liberalismo ou capitalismo global. O
neo-realismo português foi, antes de tudo - é bom não
o esquecer - uma literatura de resistência ao fascismo
salazarista, o que lhe ampliou as margens, embora tenha
tido como «deus oculto» (para citar Lucien Goldmann, o
grande sociólogo da literatura desse período) ou como
guia teórico, a visão marxista da história e do
futuro, concebida como luta de classes, e a inevitável
vitória do Socialismo. (...) (...) (...) (...) (...) (...) É-me
difícil encontrar as palavras necessárias para falar
criticamente dos Contos Vermelhos. Estão tão
perto da vida, são páginas tão fortes, tão cheias de
singelo humanismo, de infinita dedicação à luta pela
liberdade do povo português, que, sempre que os releio,
me emocionam e me aparecem como transcrição exacta e
apaixonada do que foi concretamente para cada comunista,
cada clandestino, essa saga interminável e obscura,
entre o perigo constante, a solidão e quantas vezes o
cárcere, a tortura. |
Escritos por Soeiro Pereira Gomes na clandestinidade, Os contos vermelhos narram experiências típicas ou exemplares da vida clandestina dos resistentes comunistas ao fascismo. Contam acções de personagens em situações excepcionais, porque a clandestinidade política é um estado de excepção, por um lado porque é violentamente imposta, por outro, porque aqueles que a ela se decidem, sempre minoritários, o fazem para acabar com a situação que a impõe. São histórias que figuram homens comuns, mas portadores de uma força; histórias sobre a sua experiência física e moral do medo. Medo de ser preso, medo de falhar, medo de ter medo, medo supersticioso dos fantasmas que vêm (em parte) da infância, medo da tortura e do sofrimento físico, medo de morrer,- de perder a vida e os afectos que a tecem. Mas são também histórias sobre a força anímica, moral e política, que pode vencer esses medos. São assim, também, histórias de uma esperança. A daqueles a quem anima uma paixão histórica: a de uma luta pela liberdade que lhes aparece indissociavelmente ligada à luta por uma revolução. Há quem ache que se trata de uma esperança ingénua, equivocada, ou destinada a frustrar-se. Mas, reparem, talvez não seja muito difícil perceber que essa esperança é, nestes contos, um factor de dignidade individual e, ao mesmo tempo, algo que vem de se fazer parte de um colectivo, tão livremente escolhido que por ele se arrisca a dureza da vida clandestina e, no limite o risco de morte. Este fazer parte significa a partilha de um conhecimento de como as coisas são e de ideais de transformação, de valores e de projectos de uma mudança do mundo e da vida. No primeiro conto, "Refúgio perdido", um revolucionário, perseguido e quase cercado, perde o seu refúgio e, por duas vezes mais, no mesmo dia, falha a sua instalação num novo quarto; falha também um encontro para passar os jornais clandestinos que deve distribuir. Acaba por dormir ao relento, sem ter comido, e pensando que não faltará ao encontro de recurso (um segundo encontro já pré-marcado para o caso de falhar o primeiro). No segundo conto, "O pio dos mochos", alguém que, tendo estado preso, "falou", recebe dos seus camaradas uma oportunidade para se reintegrar no combate. Devendo deixar, no cemitério de uma povoação em luta e cercada pelas forças policiais, panfletos de apoio aos camponeses e alguns mantimentos, é assaltado pelos medos, mas, ajudado por aquele que lhe propôs a tarefa, acaba por cumpri-la e reencontrar uma espécie de alegria. No fundo, venceu uma prova. No terceiro conto, "Mais um herói, alguém que é preso parece preparar uma auto-justificação para a eventualidade de, sob a tortura, acabar por denunciar os seus. Entretanto, confrontado com um camarada seu que já cedeu e começou a "falar", opera-se nele uma convulsão ao mesmo tempo estranha e clara: um gesto de indignação e de rebeldia, que levará a que aquele seu companheiro recuse o que já disse, e faz com que ele próprio vá resistir à tortura. Podemos reparar que a ordem dos contos não segue linearmente a ordem da sua redacção (todos eles são datados), o que revela um gesto de composição que estabelece uma ordem crescente de intensidade. O último conto é aquele que mais próximo nos leva ao encontro com a brutalidade, o risco do desastre moral, da derrota política, da morte. A intensidade do que está em jogo temos que a imaginar. De certa forma, na literatura é tendencialmente sempre assim: a literatura é obra de imaginação, mas também no sentido em que solicita a imaginação de quem lê. Em cada conto, os protagonistas estão, em grande medida, sós. É certo que há sempre, embora com funções diversas, uma outra personagem, um seu camarada que aparece; mas a força com que experimentam o medo, reagem e actuam, têm que a encontrar em si. Entretanto, a essa relativa solidão chegam os ecos e os gestos de uma presença solidária: a de um partido que, golpeado pelas prisões e o assassinato, sobrevive pelas suas raízes sociais, pelos laços que o ligam àqueles que o fazem. Tais ecos chegam pelo encontro ou acção de um outro camarada, pela recordação da "voz" que fala nos jornais clandestinos, pela participação po-ética do narrador naquilo que conta. Reparem
noutra coisa. O narrador parece frequentemente contar a
partir do ponto de vista, do olhar, do pensamento da
personagem. Logo a abrir o primeiro conto, o último
período do primeiro parágrafo parece indirectamente
integrar no discurso da narração o pensamento da
personagem. Por outro lado, esse narrador ao dar-nos
conta do que os protagonistas pensam, usa por vezes o
discurso directo, mas também, e com significativa
frequência, um processo que podemos designar como discurso
indirecto livre: então, esses pensamentos relatados
entre aspas, contêm entretanto modificações da pessoa
e dos modos e tempos verbais que esperaríamos num
discurso directo entre aspas. Talvez valha a pena reparar agora que os dois romances que Soeiro Pereira Gomes escreveu abriam com dedicatórias. Esteiros: "Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro"; Engrenagem: "Para os trabalhadores sem trabalho -rodas paradas duma engrenagem caduca". Qualquer delas contém uma referência a um estado de coisas ("homens que nunca foram meninos"; "trabalhadores sem trabalho"); referência que implica um ponto de vista determinado, uma posição e uma avaliação ("rodas de uma engrenagem caduca"), que partem de um modo de olhar (ou de conhecer) que, ao mesmo tempo, projecta no presente a presença/ausência de um futuro de emancipação. Esse futuro está já presente, como possibilidade real, quando se caracteriza a engrenagem como caduca (assim como na acção que Fariseu protagoniza e no panfleto que lê), e está ausente (por isso objecto de conquista), porque a engrenagem permanece e domina (sabemos que ainda hoje domina, mesmo na diferença das suas formas. Não é preciso construir uma estética normativa para legitimar literariamente os Contos Vermelhos de Soeiro Pereira Gomes. Eles auto-justificam-se na sua comovente condição de gestos de alguém que ao dedicá-los também dedicava a (sua) vida. As suas dedicatórias são gestos político-ideológicos, é evidente, mas nisso mesmo são gestos éticos, não o esqueçamos; gestos poéticos. |