Capital e democracia

Por ALBANO NUNES
membro da Comissão Política


Apesar da evidência da regressão democrática que aí está - e que o PCP muito justamente considerou na Resolução Política do seu XV Congresso como uma característica básica fundamental do capitalismo na actualidade - nem por isso o imperialismo e seus plumitivos cessam de invocar a "democracia" para justificar a sua política de ingerências nos assuntos internos dos povos e Estados soberanos. O exemplo de Cuba é paradigmático pela contumácia de quatro décadas, pelo cortejo das derrotas acumuladas pelos inimigos da revolução cubana, e pelo grotesco dos argumentos. Mas há muitos outros. Em geral eles evidenciam a mais cínica e desbragada hipocrisia só possível e (ainda) rentável porque suportada por colossais recursos mediáticos.
O caso da cavalgada da NATO, da União Europeia, do capitalismo para o Leste da Europa é bem elucidativo do modo como os senhores do capital entendem e se relacionam com o conceito de democracia: prioridade ao lucro, à destruição de tudo o que possa recordar o que de melhor existiu nesses países, ao afastamento de qualquer resistência à expansão imperialista. O imenso desastre que no Leste afundou as economias, atirou para o desemprego, a miséria e a marginalidade centenas de milhões de pessoas, colocou no poder o crime organizado, não parece impressioná-los. Nunca deixarão de ver em Vaclav Havel um "democrata" exemplar apesar da sua responsabilidade em leis que criminalizam gerações de comunistas e de ter formalmente declarado, perante a real possibilidade de o Partido Comunista da Boémia e Morávia vir a tornar-se o partido mais votado, não empossar um governo que viessem a formar. E acharão inteiramente normal que Clinton se tenha deslocado propositadamente à Bulgária para agradecer o apoio do respectivo governo de direita à guerra da NATO contra a Jugoslávia, "apesar da oposição da maioria da população". Como normal considerarão - a avaliar por notícias publicadas nos jornais portugueses - que a imprensa alemã tenha ignorado o discurso de Günther Grass, na cerimónia de atribuição do Prémio Nobel de Literatura 1999, porque esse escritor não se conforma com a realidade do seu país e explicitamente denuncia a anexação da RDA.
A expansão para o Leste da Europa do sistema capitalista é uma prioridade do grande capital alemão, europeu e norte-americano, a que ninguém tem o direito de se opôr. Por isso a antiga Jugoslávia foi desmantelada e a nova Jugoslávia bombardeada, aliás com base em pretextos que estão cada vez mais desmistificados. Por isso prossegue a tentativa ilegal de separar o Kosovo da Sérvia (já devidamente depurado pela violenta expulsão de mais de 200.000 cidadãos kosovares de origem não albanesa) e torná-lo uma base avançada da NATO. Por isso continuam as tentativas para impôr em Belgrado um regime títere. De tal modo que a própria União Europeia, hoje confortada com um "Sr. PESC", o "socialista" Javier Solana que comandou a agressão à Jugoslávia, não desdenha ocupar-se a alto nível dos detalhes tácticos do seu plano para levar a "democracia" ao povo jugoslavo. "O Conselho decidiu, com o objectivo de promover mudanças democráticas na RFJ (República Federativa da Jugoslávia), intensificar cooperação com forças democráticas na RFJ, quando necessário trilateralmente com os EUA, incluindo a nível internacional e na forma de "task forces" ou outros mecanismos consultivos. A cooperação com as forças democráticas deve focalizar-se na assistência imediata, apoio à democracia na RFJ e planeamento da era pós-Milosevic" (de uma resolução do Conselho de Assuntos Gerais da U.E. de 6/7.12.99). É espantoso onde pode chegar o fervor "democrático" do imperialismo!

Se dúvidas pudesse ainda haver quanto à absoluta prioridade que o capital dá aos interesses de classe sobre os valores da democracia - incluindo da democracia política, com o seu valor intrínseco - aí temos a decisão do Conselho Europeu de Helsínquia de admitir a Turquia como candidata oficial à adesão à União Europeia. Genocídio no Curdistão, rapto e condenação à morte de Oçalan, prisão de Leyla Zana, de outros deputados curdos e milhares de outros cidadãos, ocupação da parte norte de Chipre... tudo isso passou para segundo plano. Ou não fora a Turquia já membro da NATO, não tivesse uma aliança militar estratégica com Israel contra o mundo árabe, não participasse activamente no processo de desestabilização do Cáucaso e na guerra pelos recursos petrolíferos do Cáspio, ao ponto de, durante a Cimeira da OSCE em Istambul, ter assinado um acordo com os EUA para a construção de um novo oleoduto em alternativa ao que passa pela Rússia!
Numa evidente encenação, o "Sr. PESC" foi a Ancara buscar o Primeiro Ministro Bulen Ecevit, a tempo de poder figurar na foto de família dos contemplados com o alargamento, e de poder declarar para os microfones que lhe puseram à frente: "Inevitavelmente as fronteiras da Europa vão estender-se mais a Leste, ao Cáucaso, ao Azerbeijão e finalmente à Ásia Central e ao resto da Ásia". Nem mais nem menos. Assim mesmo, segundo o Público de 12.12.99. Que enormidades se dizem para defender um sistema que, considerando-se superior e terminal, se arroga o direito de dar ao mundo lições de "democracia" e de intervir por toda a parte para impôr a "democracia". A tiro de canhão se necessário. A acelerada militarização da União Europeia que deu agora em Helsínquia um novo e grande passo em direcção à "Europa da defesa" e à criação de um "exército europeu", tem obviamente objectivos "democráticos".

Democracia e soberania nacional são, em certo sentido, duas faces da mesma moeda. Uma não pode existir sem a outra. O pretenso "direito de ingerência", que o imperialismo pretende ver juridicamente consagrado, é afinal um instrumento do imperialismo, do colonialismo e do neocolonialismo, e como tal deve ser energicamente rejeitado pelas forças de esquerda e progressistas, mesmo quando apareça disfarçado com as roupagens do mais entranhado respeito pelo "indivíduo" e pela "pessoa humana". Quando Guterres, no encontro de Florença em que pontificou Clinton, se congratula com o "crescimento do direito da pessoa humana perante o direito de soberania nacional", está afinal a levar água ao moínho da reacção.
De facto o "direito de ingerência" - como o de "bom governo", "governabilidade" e outros - é um conceito/pilar de uma "nova ordem" institucional e jurídica que, a concretizar-se, colocaria fora de lei a própria democracia, o direito de cada povo a escolher e construir o seu próprio modo de viver. A luta pela transformação anticapitalista da sociedade ficaria proibida nesta "nova ordem". Para serem tolerados pelo sistema, os partidos comunistas e revolucionários teriam de deixar de o ser. Os comunistas portugueses deveriam abandonar o seu projecto de sociedade socialista e comunista para Portugal e abdicar do seu próprio Programa de uma Democracia Avançada.

A democracia está a ser duramente golpeada pelo avançado processo de mundialização capitalista. A democracia política, já reduzida a quase nada na sua dimensão participativa, tende a tornar-se meramente simbólica e formal na sua dimensão representativa. A vontade popular é desfigurada por eleições condicionadas pelo imenso poder do dinheiro e a manipulação dos "media". As instâncias eleitas são crescentemente esvaziadas de capacidade de decisão e poder. As grandes opções de desenvolvimento e de configuração da sociedade são transferidas para entidades supranacionais não eleitas, fora do controlo democrático e popular. O poder económico não só comanda o poder político, como tende a confundir-se e a fundir-se com ele. Uma tal evolução está nos antípodas da concepção de democracia que preconizamos e confirma, agora no plano internacional, uma tese central do PCP em relação à revolução portuguesa: a de que a defesa e aprofundamento da democracia é inseparável do combate antimonopolista e anti-imperialista.
A democracia, ou é cada vez mais e simultaneamente económica, social e cultural (além de política, obviamente) ou não o será verdadeiramente.
O que implica a crítica, teórica e prática, do sistema de relações socio-económicas dominantes (a começar pelo regime de propriedade e as relações de exploração) e da superestrutura política, jurídica, cultural, moral que se ergue sobre aquela base material e existe precisamente para a conservar e reproduzir. O que coloca a questão do Estado e da sua natureza de classe, dos interesses que objectivamente defende, da orientação das suas políticas. O que aponta para profundas transformações socio-económicas que, para serem efectivamente democráticas, ao serviço dos interesses e aspirações das grandes maiorias, geralmente desapossadas e deserdadas, serão necessariamente antimonopolistas e anti-imperialistas. Ou seja, dirigidas contra os grandes grupos económicos e financeiros que se apropriaram das conquistas da revolução científico-técnica, controlam os "média" e os principais centros (Universidades, Fundações, Institutos...) de produção e reprodução ideológica, concentram patrimónios e capitais, dominam os fluxos financeiros e comerciais do mundo. E contra um sistema de poder mundial em processo de formação (G-7, OCDE, FMI, BM, OMC, NATO, etc.) com pretensões ao papel de "governo global" e "gendarme planetário".
Neste sentido, acções como as realizadas em Seattle e um pouco por todo o mundo aquando da recente reunião ministerial da OMC, têm particular significado. Elas indicam e confirmam todo um caminho a percorrer de cooperação e acção comum no plano internacional conjugada com a luta no marco nacional. Evidenciam também o estreitamento da base social de apoio do capitalismo na sua forma actual e as amplas perspectivas abertas à acção das forças sociais e políticas que se opõem ao neoliberalismo e ao próprio capitalismo. São bons sinais para o século que aí vem.


«Avante!» Nº 1359 - 16.Dezembro.1999