Estratégia dos EUA reactualiza
perigo de uma guerra nuclear

Por Miguel Urbano Rodrigues


Os grandes media internacionais quase ignoraram o incidente.

Um míssil experimental lançado de uma ilha do norte da Noruega foi por erro técnico identificado pelo dispositivo de segurança da Rússia, no Árctico, como míssil balístico estratégico «multi stage», disparado de um submarino e armado com ogivas.
A resposta com ogivas nucleares russas foi suspensa no último instante, quando só faltava o «sim» vindo da
maleta de Ieltsin.
As agências noticiosas dedicaram escassas linhas ao episódio. Pouca gente no mundo tomou conhecimento do que se passara. Aquilo mereceu na altura menos atenção do que um beijo da princesa Diana.

Aconteceu em 1995, numa fase em que as relações entre os EUA e o governo russo atravessavam uma fase de lua de mel.
Desde então houve grandes mudanças na estratégia norte-americana e as relações entre Washington e Moscovo tornaram-se extremamente complexas e contraditórias.
Invocando pretensas ameaças à sua segurança, os EUA lançaram-se na maior corrida armamentista da sua história. Concebem e produzem novas ogivas nucleares e armas convencionais de alta tecnologia assim como sofisticados sistemas antimísseis de custo fabuloso.
Neste contexto a Rússia e a China, sentindo-se cada vez mais ameaçadas pela política de hegemonia mundial dos EUA, e não tendo possibilidades de competir no plano financeiro e tecnológico, começam a encarar o recurso às armas nucleares como uma forma de «sobrevivência».
Uma perigosa e mal conhecida forma de loucura instala-se assim no planeta. A entrada no novo milénio coincide com a ressurreição da ameaça do holocausto nuclear.
A responsabilidade pela situação criada cabe aos EUA. O sistema de poder que dirige aquele país elaborou uma doutrina que visa à supremacia absoluta e perpétua sobre a totalidade do planeta. Para defender aquilo a que chama os interesses vitais dos EUA e impor a vontade imperial, Washington afirma publicamente a sua disposição para intervir militarmente em qualquer parte do mundo onde e quando o julgue necessário.
A guerra de agressão contra a Jugoslávia foi uma advertência. A revisão do conceito estratégico da NATO é esclarecedora da transformação desta em instrumento militar e político dessa estratégia e também de um protectorado de novo tipo que a Europa aceita, contrariada, mas passiva (1).
Os países do Terceiro Mundo que não se submetem à vontade imperial, são, ao entrarem em choque com os EUA, designados como «estados bandidos» e emergem como alvos potenciais de agressões armadas. A inscrição na lista negra depende de múltiplos factores, entre os quais prevalece a ambição. Mas, em princípio, qualquer país não desenvolvido que recuse ostensivamente o modelo imposto pela globalização neoliberal e insista em seguir um caminho próprio corre o risco de ser incluído entre «os estados bandidos ou terroristas».
A ameaça de agressão aparece cada vez mais inseparável da paranóia política do sistema de poder norte-americano. A vítima escolhida é apresentada ao povo dos EUA como perigoso agressor potencial.
Formou-se gradualmente um círculo vicioso que empurra a humanidade para uma situação que, segundo alguns cientistas e observadores, é a mais perigosa desde a segunda guerra mundial uma situação na qual o uso efectivo de armas de destruição maciça assume perspectivas ameaçadoras.
Nem nos piores períodos da guerra fria os EUA investiram tanto dinheiro em armamentos e «sistemas de defesa». No ano 2000 o orçamento de Defesa prevê um aumento de gastos militares da ordem de 16 mil milhões de dólares. O total estimado para o ano é de 289 mil milhões, devendo ultrapassar 331 mil milhões em 2005. (2)
Enquanto aplica sanções a países que promovem experiências nucleares, Washington retoma, com descaramento, as suas. No momento está em curso um projecto para realização de «experiências nucleares virtuais» (que utiliza uma nova geração de supercomputadores) e de reacções nucleares em laboratório. O argumento oficial para justificar essas iniciativas é o de que elas são indispensáveis para a manutenção da operacionalidade e segurança do arsenal nuclear norte-americano. Na realidade trata-se de «desenhar» novas ogivas, que visam substituir as do sistema Trident. Somente esse projecto absorverá 4 500 milhões de dólares (mais do que o Projecto Apolo). Outro projecto prevê para 2003 a realização da chamada «National Ignition Facility». Nesta, 192 lasers simularão o calor produzido por uma mega explosão termonuclear. Em claro desafio à letra e espirito de compromissos internacionais, serão iniciadas em breve em Nevada e Los Alamos (ou já o foram) experiências nucleares subterrâneas (definidas como subcríticas) com plutónio.
A preocupação suscitada por tais experiências e pela política a elas subjacente é tamanha que um jornal tão fiel ao establishment como o Washington Post as definiu em editorial como «uma receita para o desastre» (3).

Ogivas em alerta permanente
e armas convencionais no espaço

A tradicional relutância dos intelectuais pelos aspectos tecnológicos da problemática nuclear explica, parcialmente, a ausência de tomadas de posição claras e frequentes sobre as novas ameaças que se adensam sobre a humanidade. Simultaneamente, os grandes órgãos de comunicação social, directa ou indirectamente controlados pela engrenagem neoliberal, não estão minimamente empenhados em informar a opinião publica sobre os perigos da escalada militar norte-americana.
Nas ultimas semanas tive a oportunidade de assistir em Havana a interessantes conferencias sobre o tema, pronunciadas por especialistas. Uma delas impressionou-me particularmente.
Foi no decurso de um seminário internacional promovido pelo Movimento Cubano para a Paz e a Soberania dos Povos.
Quando o físico nuclear italiano Angelo Baracca principiou a falar, poucos o escutavam com atenção. Era a ultima intervenção, no final dos trabalhos, e todos estavam fatigados. Tais coisas disse, entretanto, que, ao terminar, o plenário saudou-o com a maior ovação do dia. Da sua intervenção retirei muitas das informações que se seguem.
Baracca começou por trazer ao debate uma realidade pouco lembrada. Washington persiste no seu objectivo de reduzir a Rússia à condição de pais subdesenvolvido e faz o possível para a tornar inofensiva militarmente. É um jogo altamente perigoso.
Os EUA, contrariando o espirito de declarações apaziguadoras sobre a «nova amizade russo-americana», mantém o seu arsenal estratégico em estado de permanente alerta com as ogivas apontadas para «alvos inimigos» em território russo. Nunca, é útil recordar, renunciaram ao direito do «first use», isto é, de dispararem o primeiro míssil nuclear.
Em novembro de 98, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Joschka Fischer, propôs timidamente que os EUA (e a NATO) renunciassem à doutrina do «first use». Logo o secretario da defesa de Clinton, William Cohen o admoestou friamente, declarando que o «first use» constitui «parte integrante do nosso conceito estratégico e pensamos por isso que deve permanecer exactamente como está». (4)
O novo conceito estratégico da NATO, aprovado em Abril p.p., confirmou, alias, no essencial, a doutrina nuclear do Pentágono, segundo a qual as armas estratégicas ofensivas são «a suprema garantia da segurança dos aliados».
Cientes de que a Rússia (e a China) não tem actualmente possibilidades de os acompanhar na corrida a novas armas, os EUA esforçam-se por desenvolver armamentos convencionais de alta tecnologia, argumentando que tal opção representa um serviço à humanidade e à paz, pois as tais armas tornarão progressivamente obsoletas e supérfluas as nucleares. E porquê?
Segundo Washington, as novas armas convencionais permitem golpear os objectivos estratégicos do inimigo com muito maior precisão do que as ogivas nucleares, com a vantagem de serem «limpas».
A tese da precisão e eficácia cirúrgicas de tais armas, submetida, entretanto, à prova na agressão à Jugoslávia ficou reprovada no sangrento exame.
A estratégia paranóica daqueles que nos EUA exercem o poder político invisível teria, inevitavelmente, de desencadear reacções defensivas em países que por ela se sentem ameaçados.
A própria CIA adverte que no ano 2015 dezenas de países estarão em condições de lançar mísseis balísticos. A corrida às armas nucleares acentua-se, portanto, naqueles que, possuindo-as, não estão em condições de produzir armamentos convencionais de altíssima tecnologia.
Isso é já uma realidade no Irão, no Paquistão, na Coreia do Norte, na Rússia e na China. Com regularidade, a CIA, activíssima na espionagem, informa que tipos de mísseis e ogivas estão a ser produzidos aqui e ali no vasto mundo exterior ao império americano. Segundo a Agencia de Langley, a China, que deve possuir já a bomba de neutrões, ensaiou o míssil DF-31, de combustível solido com alcance de 8000 quilómetros, e prepara o Dong-Feng 41, capaz de atingir alvos estratégicos a 12 000 km, nos EUA (5).
A Rússia moderniza os seus mísseis Cruise Kh-55 e Kh-22 e aperfeiçoa o Topol-M, transportador de ogivas múltiplas, e concebido para ultrapassar o muro das defesas americanas anti-mísseis.
Obviamente, os relatórios da CIA são utilizados na justificação da escalada do Pentágono. A estratégia planetária norte-americana, tida por indispensável numa nação cujos dirigentes a definem como predestinada para salvar a humanidade e torná-la prospera e feliz, exige «o domínio total do campo de batalha». Assim, de acordo com a «Joint Vision 2010» e a «Spacecom 2020», a hegemonia terá de ser tal que ninguém ousará desafiá-la. O domínio da Terra seria garantido por um sistema digitalizado integrado por satélites de espionagem, alarme e comando-controlo e por defesas missilisticas e de armas convencionais instaladas no espaço. Esse sistema, similar a coisas que temos contemplado nos filmes da Guerra das Estrelas, poderia golpear o «inimigo», em dois ou três minutos, quando os actuais mísseis balísticos estratégicos necessitam de vinte ou trinta para atingir objectivos distantes.
Angelo Barracca, ao denunciar a paranóia bélica norte-americana, sublinha com carradas de razão, que, ao alarmar povos que por ela se sentem ameaçados, aumenta enormemente os perigos de um holocausto. «As novas armas convencionais - afirma - destroem qualquer estabilidade estratégica precedente». Acossados, alguns países tentam «reequilibrar a situação confiando em armas de destruição maciça de tecnologia menos avançada, potenciando o dissuasor nuclear e prevendo o recurso a qualquer meio militar: desde armas químicas e bacteriológicas até à guerra ecológica, a guerrilha e o terrorismo».
Outro grave factor de desestabilização é o velho sonho norte-americano do escudo espacial, a barreira antimíssil que tornaria os EUA «invulneráveis, «porque interceptaria e destruiria todos os mísseis lançados pelo inimigo antes de poderem atingir os alvos. O Tratado ABM (Anti Ballistic Missile Treaty) de 1972 proíbe a montagem desse sistema defensivo porque o equilíbrio então existente previa a vulnerabilidade do inimigo.
A Rússia, colocada contra a parede, encara com pavor a ameaça do escudo espacial norte-americano que a tornaria impotente na eventualidade de uma agressão dos EUA. O seu já minguado e quase obsoleto arsenal estratégico ficaria inofensivo. As afirmações de Washington de que o escudo espacial teria por função única interceptar mísseis vindos do Irão ou da Coreia do Norte, ou de outros «estados bandidos» não convenceram os estados maiores russos. Moscovo chegou à conclusão de que a ruptura por Washington do tratado ABM seria o fim de qualquer negociação START sobre mísseis estratégicos

Desespero russo

Em Moscovo, Ieltsin tem feito o possível para acalmar tensões. Mas não consegue mais conter o protesto dos sectores das Forças Armadas que reagem com indignação às humilhações infligidas pelos EUA ao pais e exigem uma política de resposta firme à agressiva estratégia de Washington.
No corpo de oficiais cresce o numero dos que tem consciência da necessidade de uma política patriótica que corresponda à tradição nacional. A Rússia continua a ser o maior pais do mundo e apesar de arruinada pela mafia que se instalou no Kremlin dispõe de enormes recursos naturais e humanos. Cedo ou tarde voltará a ser uma grande potência com influencia decisiva no rumo da humanidade.
A pretensão norte-americana de integrar na NATO as republicas bálticas foi a gota de agua que no Exercito fez transbordar a panela da indignação reprimida.
O ministro dos Estrangeiros Ivanov, que está muito longe de ser um radical, viu-se obrigado a advertir Washington de que Moscou se opõe intransigentemente a um novo avanço para leste da NATO e tomará medidas adequadas para impedir a concretização do projecto. Simultaneamente informou que os efectivos das Forças Armadas russas na Europa, reduzidos no âmbito do CFE (Convencional Forces in Europe), podem ser aumentados.
O ministro da Defesa, Sergueyev já havia tornado publico que a doutrina militar russa fora revista. Um porta-voz do Ministério acrescentou que se os EUA levarem adiante o sistema anti-misseis, «a Rússia ver-se-á forçada a aperfeiçoar as suas forças nucleares estratégicas e tomar outras medidas assimétricas orientadas para a melhora da sua própria segurança nacional nas novas condições militares estratégicas». (6)
O ministro da Energia atómica, Lev Ryabov, confessou que a produção de ogivas nucleares é presentemente um decimo da registada na ultima fase de existência da URSS, pelo que será necessário rever a produção de armamentos.
As primeiras medidas concretas já foram tomadas. Na opinião da Duma, o rearmamento constitui hoje a principal prioridade do pais, precedendo o problema da divida externa. Está previsto um aumento de 50% nas verbas atribuídas à Defesa. O novo Conceito de Segurança Nacional tornado publico a 5 de Outubro p.p. prevê um rearmamento escalonado por dez anos, o que fará os gastos militares subirem de 2,5% para 6,5% do PIB.
Como era de esperar Washington reagiu imediatamente. A pressão maior é, porem indirecta, sendo exercida através de uma manobra de chantagem do FMI.
Muito mais alarmante é texto do projecto da Nova Doutrina Militar Russa, elaborado sob a responsabilidade do ministro da Defesa e defendido por este perante Conselho de Segurança Nacional. Às Forças Armadas é atribuído um papel diferente, resultante da introdução inesperada do conceito do «first use». O preambulo proclama o espirito defensivo da doutrina, mas, assumindo uma postura fortemente critica da agressiva estratégia unipolar dos EUA, sublinha que «a Federação Russa considera que o progresso social, a estabilidade e a segurança internacionais podem ser garantidos no contexto de um mundo multipolar». Reconhecendo a actual debilidade russa no campo das armas convencionais, informa que «a Federação Russa se reserva o direito de usar armas nucleares em resposta ao uso de armas nucleares ou de outras armas de destruição maciça contra ela e os seus aliados, em resposta a uma agressão em larga escala com armas convencionais em situações criticas para a sua segurança nacional». (7)
Finalmente, naquilo que foi interpretado como advertência solene aos EUA, o ministro afirmou enfaticamente que Moscovo não exclui a possibilidade de uma guerra nuclear.
Seria ingénuo concluir que se tratou de uma bravata. O ministro Sergueyev falou pelas Forças Armadas, expressou o seu sentimento. Daí o alarme que as suas palavras provocaram em Washington.

A paranóia americana, que lembra - repito mais uma vez - a do III Reich está a empurrar o mundo para a beira do abismo.
É preciso, urgente, tomar consciência dessa assustadora ameaça.
O que se passou no Kosovo não foi suficiente para abrir os olhos às grandes massas, não mobilizou ainda as forças democráticas e progressistas para uma luta necessária, dificílima, tenaz, de longa duração contra o sistema de poder cuja estratégia, se não for contida, pode conduzir ao holocausto.
Nos Balcãs impende já um perigo medonho sobre as futuras gerações. As quantidades de substancias químicas altamente toxicas, liberadas pelo bombardeamento da fabrica de Pancevo podem, por si só, gerar, alem de múltiplas variedades de cancro, mutações genéticas de consequências imprevisíveis. A contaminação do Danúbio é uma tragédia ecológica que vai afectar por tempo indeterminado a vida no grande rio e nas suas margens até ao Mar Negro. Transcorrerão anos antes que se possa ter o quadro definitivo dos efeitos devastadores para a saúde das bombas de grafite.
O silencio de um sistema mediatico perverso, controlado pelos sacerdotes da globalização imperial, não consegue esconder o panorama assustador que a humanidade contempla, cada vez mais angustiada, na viragem do milénio. Os jogos de guerra que acompanhamos no cinema podem, de repente, desembocar num conflito apocalíptico. Mas nada está decidido. A humanidade dispõe de saber, forças e lucidez para evitar a catástrofe. Talvez nunca o desafio às esquerdas responsáveis tenha sido tão universal e decisivo.

1) «Avante», 21.11.99
2) Numeros citados por Angelo Baracca, em Havana, 26.11.99
3) «Washinton Post», 25.5.99
4) «New York Herald Tribune», 24.11.98
5) Associated Press, 21.5.99
6) «Nuclear News», 28.7.99
7) Russia Weekly-69, Center for Defense Information, Washington, 31.8.99


«Avante!» Nº 1359 - 16.Dezembro.1999