Caminhar na Lua
numa mina do País de Gales


Por
Pina Gonçalves


Uma experiência protagonizada por mineiros galeses de que tomei conhecimento há pouco tempo prendeu a minha atenção, não tanto pela originalidade, já que outros tentaram sem êxito em séculos anteriores as suas «cidades ideais», mas pelo exemplo de tenacidade, capacidade de resistência e ousadia para desafiar o destino neste momento historicamente muito difícil para os trabalhadores de todo o mundo.

Também não pude deixar de me preocupar com a hipótese de tentação pela «terceira via» de Blair, ou pelo «capitalismo popular», (desafio o leitor a descobrir as diferenças), para que esta experiência pode vir a tender.
Mas, vamos à nossa história.
Os acontecimentos ocorrem na localidade de Tower Colliery, onde existe uma das últimas minas de profundidade do País de Gales, e a história começa entre 1972 e 1974 com a longa greve dos mineiros britânicos durante a vigência do governo conservador de Edward Heath.
Nessa altura o abastecimento de energia da Grã-Bretanha provinha ainda em 80% do carvão doméstico, o que garantia um significativo poder reivindicativo aos mineiros, organizados no NUM, sindicato nacional dos mineiros.
Quando a Sra. Thatcher chega ao poder, em 1979, traz uma ideia de vingança contra os mineiros (que durante a 2ª guerra mundial foram a espinha dorsal do abastecimento energético para o esforço de guerra da indústria britânica), mas sobretudo traz na carteira compromissos políticos e económicos com os grandes interesses dos patrões da indústria nuclear e do gás, iniciando de imediato um processo de redução da indústria mineira, substituindo-a pelo gás, mesmo a um preço superior ao carvão em 30%, e pelo nuclear, apesar dos seus enormes custos ecológicos e financeiros.
Os mineiros dão luta, e entre 1984 e 1985 realizam uma longa greve. Mas até 1990 o encerramento e privatização de minas da empresa nacional do carvão reduz os postos de trabalho de 181 000 para 65 000.
Esta política é continuada pelo Sr. Major, e Michael Heseltine, ministro da Indústria, anuncia o encerramento de 31 das últimas 50 minas e mais 30 000 mineiros são lançados no desemprego de um só golpe.
A nossa mina, Tower Colliery, foi também atingida bem no coração de Cynon Valley, no sul do País de Gales, uma bolsa de resistência activa às políticas thatcherianas.

Os mineiros desta localidade mobilizam-se. Marcham para Londres protestando contra o encerramento dos seus poços. As mulheres têm um papel extremamente activo na luta, juntando-se ombro a ombro aos seus maridos, filhos, pais e irmãos.
Toda a localidade apoia os «seus mineiros», organizando colectas para eles, já que os fundos sindicais foram bloqueados pelo governo argumentando que a acção dos sindicatos era ilegal.
Aliás, o governo da Sra. Thatcher, para combater os sindicatos, obteve do parlamento o voto necessário para aplicar múltiplas cláusulas restritivas do direito à greve e aos direitos sindicais em geral, ilegalizando acções como a ocupação do local de trabalho durante a greve, e permitindo a transposição dos piquetes de greve em caso de lock out, e, cúmulo dos cúmulos, impedindo a realização de greves de solidariedade, inclusive no mesmo sector de actividade.

Resgatar a mina

A divisa, como sempre, foi dividir para reinar, e em Abril de 1994 os conservadores «ofereceram» 9000 libras a cada mineiro de Tower Colliery que aceitasse o encerramento dos poços, «oferta» que com outras indemnizações adicionais atingiu a soma de 18 000 libras por trabalhador. Só havia uma condição: tinham dois dias para se decidir.
As dívidas acumuladas, as enormes carências sofridas pelas famílias, a vivência de situações dramáticas e o desespero tornaram a soma aliciante.
A organização sindical local dos mineiros dirigida por Tyrone O’Sullivan tenta mobilizar os camaradas contra essa oferta envenenada, mas somente 30 mineiros aderem. O encerramento da mina é assinado em 19 de Abril de 1994.
Não aceitando este desfecho como uma fatalidade, o grupo mais irredutível de mineiros reúne-se num pub local, e tem a ideia de comprar a «sua mina». Mas, para a concretizar, era preciso convencer os restantes camaradas a investir metade de todas as suas indemnizações.
De início aderem 180 mineiros, alguns dias depois serão já 239. Em apenas alguns dias conseguiram juntar uma soma apreciável na «caixa comunal».
Os passos seguintes consistiram em encomendar um estudo a especialistas, efectuar a compra da mina e iniciar a produção, que passou de 440 000 toneladas em 1995 para 600 000 em 1998.
Com exportações garantidas para a França, Bélgica e Irlanda, dos iniciais 239 assalariados passou-se para mais de 400, contrariando aqueles que diziam, em nome do progresso, que a indústria mineira estava condenada.
Para limitar os riscos de especulação e para limitar a influência do exterior, o «colectivo do resgate», como se designam a si próprios estes mineiros, decidiram que as acções só podem ser vendidas aos assalariados da mina.
Tyrone O’Sullivan refuta que esta SARL, constituída por trabalhadores-accionistas, seja a concretização do «capitalismo popular» thatcheriano, e contrapõe: «Nós demonstrámos apenas que os trabalhadores são melhores a gerir a sua mina do que a empresa nacional do passado e do que os capitalistas de hoje. A nossa experiência devia fazer escola.»
Nestes últimos anos a mina de Tower Colliery investiu no melhoramento das condições de trabalho, que são superiores a qualquer das minas privatizadas da região, e participa em inúmeras actividades municipais e regionais, desde a banda de música da terra à equipa de râguebi, da escola equestre para deficientes aos orfanatos.
Os desafios, no entanto, são enormes, e a possibilidade de o projecto, isolado na sociedade britânica, se desvirtuar, espreita constantemente nas consciências de cada um dos seus participantes. Por essa razão talvez, mesmo em autogestão, estes mineiros não abdicam da sua organização sindical e, conhecedores da sua história, sabem que os mineiros nunca alcançaram melhores condições de trabalho e de vida sem luta e sem organização capaz de a dirigir.
De momento Tyrone O’Sullivan considera-se um «caminhante sobre a lua» e projecta já o investimento necessário ao aumento da extensão da mina, sem deixar de ir dizendo, reflectindo, com a bonomia que lhe é característica: «Os que estão em cima têm sempre tendência a açambarcar poderes e privilégios. É o que mostram todas as revoluções. Os de baixo devem portanto exercer um controle sobre os dirigentes». Obriga-se por isso a descer aos poços uma ou duas vezes por semana, como parte da sua tarefa de direcção da mina, para se juntar aos que «estão em baixo», e afirma convicto: «Nada substitui a camaradagem dos homens no trabalho, é aí que nós discutimos melhor, de igual para igual. Alguns nunca me viriam falar ao escritório, apesar de a porta estar sempre aberta. É muito melhor que eu vá junto deles…»
Os outros trabalhadores britânicos continuam a lutar por uma verdadeira alternativa que viabilize e incentive a sua «caminhada sobre a lua».
Por mim, desejo com sinceridade os melhores êxitos à comunidade de Tower Colliery e aos seus mineiros.


«Avante!» Nº 1359 - 16.Dezembro.1999