Alemanha
Capital compra
democracia-cristã

Por Rui Paz


«De acordo com as indicações do senhor Klep (tesoureiro da CDU de Kohl) tomei o avião de Frankfurt para Zurique... Ali chegado apresentou-me um cavalheiro desconhecido e disse-lhe para não se preocupar que eu era de confiança... Chegado a casa, abri a mala e verifiquei que continha um milhão de marcos em notas de mil». Eis um curto resumo das declarações prestadas pelo conselheiro fiscal da democracia-cristã, Weyrauch, ao Ministério Público em Frankfurt.

Mais alguns milhões de marcos, de origem ilegal e criminosa, depositados em vinte contas secretas da democracia-cristã e acessíveis apenas a um círculo muito restrito de dirigentes, entre os quais o antigo chanceler e actual presidente honorário do partido, Helmut Kohl, foram entretanto descobertos. O pouco que a justiça alemã até agora conseguiu apurar é suficiente para se fazer uma ideia dos interesses tenebrosos que durante dezasseis anos governaram a Alemanha e ditaram a política europeia do arquitecto de Maastricht. É que não se trata só do milhão de marcos pelo fornecimento de dezenas de cristianíssimos tanques da firma Thyssen à Arábia Saudita. Tudo indica que a chamada «unificação» alemã constituiu também uma autêntica mina de ouro e um excelente negócio para os governantes democrata-cristãos e o seu partido. O juiz suíço Bernard Bertossa, encarregado de investigar em Genebra o suborno no valor de mais de uma centena de milhões de marcos relacionado com a aquisição da refinaria Leuna, da ex-RDA, pela Elf Aquitaine da França e a venda de terrenos situados na antiga República Democrática, acaba de declarar na ARD que «estamos perante e as mesmas pessoas e firmas fictícias do escândalo dos tanques. Pode-se afirmar que se trata do mesmo caso».

O modelo da Mafia

O semanário «Die Woche», num artigo da primeira página intitulado «A Mafia dos Esponsores», salienta a semelhança existente entre «o sistema ilegal de financiamento da CDU» alemã e «o modelo da mafia italiana». O «Spiegel» pergunta se «a nossa pátria (expressão muito utilizada por Kohl para cativar os alemães da antiga RDA) não foi durante dezasseis anos uma república das bananas mascarada de cristianismo» e dirigida por «um padrinho de Oggerscheim» (aldeia natal do ex-chanceler).
Preocupados em mostrar aos militantes que no fundamental as contas do partido estavam em ordem, os dirigentes da CDU recorreram aos serviços da sociedade contabilística Ernst & Joung, cuja filial de Colónia é dirigida por Erwin Pougin. Esqueceram-se porém que Pougin foi o homem encarregado pelo Vaticano de «pôr as contas em ordem», após o assassínio em Londres do banqueiro Roberto Calvi quando este se preparava para demonstrar que a falência do banco Ambrosiano tinha sido provocada pelos milhões ilegalmente enviados para Lech Walesa e o sindicato «Solidariedade» na Polónia. Em 1986, poucos meses depois de Pougin iniciar o serviço, o chefe da mafia Sindona, que se dispusera a revelar à justiça italiana idênticos segredos, é envenenado na prisão ao beber uma taça de café contendo zyancali. Mas, pior ainda, os relatórios de contas da CDU foram até 1997 também assinados por Pougin. Neste contexto, o desfile de João Paulo II de mãos dadas com Helmut Kohl na porta de Brandenburgo, em Berlim, adquire assim uma dimensão e significado muito mais profundos.
Alguns observadores interpretam a revelação de segredos tão tenebrosos sobre os cofres da democracia-cristã poucos dias antes do congresso do SPD, por um ex-agente dos serviços secretos (BND), Schreiber (o tal da mala de Zurique com um milhão de marcos), a viver hoje no continente norte-americano, como um presente destinado a retribuir a «fidelidade» aos interesses dos Estados Unidos e da NATO, demonstrada pelo Partido Socialista Europeu durante a guerra contra a Jugoslávia e que lhe custara a perda da maioria no Parlamento de Estrasburgo. Mas isso não altera em nada o facto de o Estado alemão constituir o exemplo mais perfeito de uma gigantesca fusão entre o poder político e económico, os partidos confessionais e as igrejas. O capital sustenta financeiramente a democracia-cristã. Esta obriga por lei todos os crentes a contribuírem mensalmente para a Igreja. O patronato desconta directamente dos salários dos trabalhadores o imposto religioso que é enviado aos bispos através do Ministério das Finanças e que só à Igreja católica rende cerca de dezasseis mil milhões de marcos anuais. Quem for baptizado e se recusar a pagar é expulso da igreja pelos tribunais estatais. Os bispos agradecem, pregam a guerra contra o comunismo, asseguram aos fiéis que a economia de mercado e o capitalismo são a «democracia» mais perfeita.

O chanceler dos Flick

No início dos anos oitenta, o homem mais rico da Alemanha, Friederich Flick, e outros potentados económicos decidiram substituir o chanceler do SPD, Helmut Schmidt, por Helmut Kohl. A conspiração, que ficou conhecida pelo escândalo Flick, contou com a participação activa do episcopado, que na altura enviou uma carta ao chanceler social-democrata fazendo suas as preocupações do Deutsche Bank e dos meios financeiros pelo facto de a dívida do Estado ter atingido então 660 mil milhões de marcos. Nos dezasseis anos que se seguiram, do governo Kohl, a dívida triplicou sem que os bispos dissessem uma única palavra, o que levou o dirigente do SPD, Hans Joachim Vogel, a comentar o silêncio hierárquico explicando que «a dívida é tão elevada que já não chegaria uma carta dos bispos mas seria necessário uma encíclica do Papa».
Von Brauchitsch - o manager do império Flick encarregado de financiar a ascensão de Kohl à chefia da democracia-cristã e de comprar as personalidades do partido liberal que viriam a retirar o apoio parlamentar ao governo de Schmidt, como por exemplo o ministro da Economia, Lambsdorff - explicou então que «o fortalecimento daquela tendência política» lhe pareceu «urgente e necessária para travar e combater as correntes contrárias ao patronato e à economia de mercado de vastos sectores dos sindicatos e do SPD». Günter Verheugen, ao tempo secretário-geral do FDP, confirmaria em 1983 à «Stern». «Ele (Lambsdorff)... oferecia resistência sempre que na preparação do orçamento de Estado estavam em jogo os interesses dos bancos e das companhias de seguros». «Muito dinheiro» foi entregue ao partido mas «apenas a membros da ala direita, adeptos da mudança de coligação».
O actual ministro do Interior do governo Schroeder, o jurista Otto Schily, presidente da comissão parlamentar que investigou o caso Flick, referindo-se ao homem que entre 1933 e 1945 também já apoiara o partido nazi e Hitler com cerca de oito milhões de marcos, fez no Bundestag a seguinte intervenção: «Foi um grande erro e afirmo mesmo que é uma vergonha para o nosso povo não se ter expropriado Friederich Flick logo após a Segunda Guerra. Não é uma aberração jurídica, não é uma gritante injustiça, que os assassinos de povos inteiros e os seus ajudantes, como Friederich Flick, Ferdinando Marcos ou Duvalier continuem em poder dos milhões e biliões que são o fruto dos seus crimes enquanto as vítimas continuam a vegetar? O facto de Friederich Flick já desde 1949 contribuir com dinheiro para a CSU (democracia-cristã da Baviera) mostra bem como desde muito cedo se processou a sua reabilitação por aquele partido».
Von Bruachitsch, desapontado pela falta de solidariedade manifestada perante o tribunal por algumas das figuras que havia subornado, escreveria mais tarde referindo-se ao ministro presidente do Bad-Würtenberg, Lother Spath: «durante muitos anos discutimos questões de orientação política e de pessoas para a direcção da democracia-cristã».
Ainda há poucos dias, Von Bruachitsch voltou a defender na ARD o apoio aos partidos pelo mundo do dinheiro salientando que «a Constituição concentrou nos partidos uma enorme responsabilidade, mas não lhes garantiu os meios financeiros necessários para a realizar». Fica-se a saber de voz tão autorizada aquilo que até hoje ainda não constava em nenhum manual de direito constitucional, isto é, que na Alemanha é o grande capital que garante o cumprimento das funções constitucionalmente atribuídas aos partidos.


Lista de pagamentos

A título de curiosidade, reproduzimos uma das listas de pagamentos feitos directamente pelo contabilista do grupo Flick a Helmut Kohl, publicada pelo Der Spiegel (22.10.1984) e contendo a seguinte indicação escrita à mão: «pagamentos não oficiais à CDU»:

1974 26.01 Ka wg. Kohl

50 000,-

1975 04.02 Ka wg. Kohl

50 000,-

  03.09 Ka wg. Kohl

100 000,-

  20.11 Ka wg. Kohl

50 000,-

1976 13.07 v.B. wg. Kohl

50 000,-

  17.11 v.B. wg. Kohl

30 000,-

1977 10.05 v.B. wg. Kohl

50 000,-

  04.12 v.B. wg. Kohl

30 000,-

1978 11.08 v.B. wg. Kohl

25 000,-

1979 19.01 v.B. wg. Kohl

30 000,-

1980 30.01 v.B. wg. Kohl

50 000,-



«Avante!» Nº 1359 - 16.Dezembro.1999