O genocídio continua
De há cerca de dez anos para cá, de três
em três meses, infalivelmente, o Conselho de Segurança da ONU
reúne para decidir sobre o Iraque. E como decide sempre de
acordo com as ordens do governo dos EUA (devidamente acolitado
pelo seu incondicional homólogo da Grã Bretanha), decide sempre
pela continuação do genocídio contra o povo iraquiano. Mais
uma vez isso aconteceu no fim da semana passada: por «proposta»
dos EUA e da Grã Bretanha, o CS aprovou uma resolução que
exige o regresso ao Iraque dos «inspectores internacionais» -
ou seja de inspectores que em nome da ONU fazem espionagem a
favor dos EUA. Em troca e se o Iraque se portar bem e «cooperar
completamente» com os espiões dos EUA, haverá uma suspensão
provisória das sanções. A resolução foi aprovada com onze
votos a favor e quatro abstenções: China, França, Rússia e
Malásia. Os três primeiros, enquanto membros permanentes do
Conselho de Segurança, tinham direito a vetar esta resolução
mas não utilizaram esse direito «para não criar um novo
conflito diplomático com os EUA». Qualquer desses países sabe,
obviamente, que a sua preocupação em evitar um «conflito
diplomático com os EUA» terá como consequência inevitável a
morte de milhares de iraquianos, nomeadamente de crianças
mas terão entendido que essas mortes são bem menos importantes
do que o «conflito diplomático»...
Assim foi criado um novo organismo de controlo (a Comissão de
Inspecção, Verificação e Acompanhamento das Nações Unidas)
que tem como objectivo dar continuidade à acção dos tais
«inspectores internacionais». Ao serviço dos EUA. Ao serviço
da morte.
O bloqueio imposto ao Iraque constitui um
caso sem precedentes quer no que respeita à amplitude das
sanções decretadas, quer pelo rigor «cirúrgico» com que elas
são aplicadas, quer ainda pelos seus efeitos devastadores sobre
a economia, o tecido social, o estado de saúde da população.
Quando o antigo secretário de Estado James Baker afirmava, com a
arrogância criminosa característica dos governantes da
«pátria dos direitos humanos», que «as nossas forças agirão
de forma a fazer regressar o Iraque à idade da pedra» não
estava a falar em sentido figurado. O irlandês Denis Halliday,
que no princípio deste ano se demitiu das suas funções de
coordenador da ONU para o Iraque (e assim se libertou do voto de
silêncio imposto aos funcionários internacionais) denunciou, na
altura, a situação: «Cheguei à conclusão de que a
manutenção das sanções da ONU constitui uma forma de
genocídio», diz ele. E referindo a destruição quase total de
«instituições de saúde, escolas, universidades, serviços de
transportes», acrescenta: «mas o pior é talvez a destruição
das capacidades de produção de electricidade, de reservas de
água potável e dos esgotos. Já não há água potável no
Iraque e isso mata muitas crianças todos os dias». E explica
mais em pormenor: «desde 1991, as sanções mataram 500 000
crianças. E continuam a matar cinco a seis mil crianças por
mês». Quanto aos chamados observadores internacionais, Halliday
acha que eles devem ser escolhidos na base da sua «lealdade à
ONU e não à CIA ou a outras agências de espionagem como era o
caso da Unscom».
Uma das sanções decretadas por ordem do
governo desse «berço da democracia» que são os EUA, tem a ver
com as drásticas limitações à exportação de petróleo pelo
Iraque. Antes do embargo o Iraque exportava cerca de quatro mil
milhões de dólares de petróleo; agora apenas lhe é permitido
exportar 150 milhões. Sendo esta a principal fonte de riqueza do
país, é fácil deduzir o significado desta sanção no que
respeita à importação de bens essenciais, nomeadamente
produtos alimentares e farmacêuticos. Assim, numa população
que ronda os 18 milhões, mais de quatro milhões de pessoas, das
quais cerca de 2 milhões e meio são crianças com menos de
cinco anos, padecem de graves problemas de saúde. Procurando
tornear esta limitação, o governo iraquiano recorreu, a dada
altura, aos fundos depositados em bancos estrangeiros para
aquisição de géneros de ordem estritamente humanitária (no
sentido real da palavra e não no sentido hipócrita que lhe é
atribuído pelo governo dos EUA). Durante algum tempo,
exceptuando a França e os EUA, todos os países ocidentais
aceitaram libertar esses fundos propriedade do governo
iraquiano, note-se... Mas foi sol de pouca dura: por ordem de
Clinton, via ONU, essas contas bancárias foram todas bloqueadas.
Quanto à importação de produtos farmacêuticos, ela é
severamente condicionada. Nenhum medicamento contendo nitrato
pode entrar no Iraque. Porque, dizem os EUA, o nitrato pode
servir para fabricar «armas de destruição massiva». O facto
de o nitrato ser um componente de produtos anestésicos e de, por
efeito dessa proibição, milhares de operações cirúrgicas
estarem a ser feitas sem anestesia é, para o governo de Clinton,
uma questão secundária...
Para além disso, os bombardeamentos
prosseguem com criminosa regularidade e, acrescente-se, na
maior parte dos casos no meio de um total silêncio por parte da
comunicação social dominante. Centenas de milhares de pessoas
foram mortas desde 1991 por efeito da tal «guerra cirúrgica»,
assim chamada por só atingir «alvos militares». Desde os
milhares de soldados iraquianos enterrados vivos pelo exército
dos EUA, até aos mísseis que, «não funcionando como se
esperava» (segundo a hipócrita formulação do General Anthony
Zinni, comandante das forças norte americanas no Golfo), atingem
bairros residenciais, passando pela utilização das célebres
bombas produzidas à base de urânio com consequências
dramáticas no curto, médio e longo prazo - o morticínio levado
à prática pelo imperialismo norte-americano no Iraque constitui
uma demonstração exemplar do conceito de direitos humanos made
in USA. No entanto, no Natal iremos ouvir o Presidente
Clinton falar desses direitos humanos, das ajudas humanitárias,
da democracia, da liberdade, do mandato divino de que o seu
governo é portador para assegurar a paz e a felicidade no Mundo
enfim de todas as balelas com as quais, habitualmente,
procura disfarçar a natureza criminosa do sistema que hoje
domina o Mundo, desta nova ordem mundial imperialista de cariz
totalitário e fascizante dominada, precisamente, pelo
imperialismo norte-americano.
Entretanto, no Iraque, o genocídio continua.