Transição de Macau
O fim do império português



Com a substituição da bandeira portuguesa pela chinesa, Macau foi entregue à China e Portugal viu o seu império terminar. À meia noite de segunda-feira, o território passou a constituir uma Região Administrativa Espacial, 442 anos depois de ter sido concedido à coroa portuguesa o seu contrato de arrendamento em troca da luta contra os piratas. A despedida foi emocionada, mas o que fica da cultura e da presença portuguesa? A socióloga Conceição Gomes defende que não será muito.

A emoção pautou as cerimónias de transição, que incluíram a condecoração de 29 personalidades ligadas a Macau e um banquete oficial com quase 2500 convidados. O Governador Rocha Vieira cede o seu lugar a Edmund Ho à frente do território, cuja governação se baseará nos próximos 50 anos na Declaração Conjunta assinada pelos governos de Portugal e da China.
Até 2049, os poderes executivo, legislativo e judicial permanecem independentes (incluindo o julgamento em última instância) e continua a existir autonomia económica e um território aduaneiro separado. O chinês torna-se a língua oficial, embora os acordos garantam a sua igualdade com o português.
Na tarde de segunda-feira, 500 soldados chineses entraram em Macau através da fronteira das Portas do Cerco, percorrendo algumas zonas mais populosas da cidade. A futura guarnição do território terá o dobro dos efectivos. Para o Presidente Jian Zemin, a entrada das tropas chinesas «é um importante símbolo de que a China reassumiu o exercício da soberania» sobre Macau.

Sampaio: nova etapa numa amizade antiga

Jorge Sampaio, no seu discurso na cerimónia oficial da transferência de poderes de Macau, reafirmou o seu «empenhou solidário no futuro território» e considerou que o acordo entre Portugal e a China representa «uma forma sensata e pacífica» de os dois países «prosseguirem uma nova etapa no seu relacionamento velho de séculos, mudando o que era exigido pelas novas realidades e mantendo o que faz de Macau uma realidade singular.»
Sublinhando «o compromisso firme de que os habitantes do território continuarão a gozar dos direitos, liberdades e garantias que são património da sua maneira de viver e fizeram a singularidade e a prosperidade desta terra», o Presidente da República referiu que Macau «passará para o próximo século, sob a bandeira da República Popular de China, em estatuto de respeitosa convivência entre modelos sociais, que a fórmula "um país dois sistemas" veio expressar sem reticências».
«É com esta cidadania universal de valores e de direitos que Macau se manterá no encontro entre a Europa e a Ásia. Com isso, continuará Macau a vocação secular de mediador na encruzilhada de gentes, civilizações e interesses, e, por essa via, a reforçar a sua identidade própria», sublinhou Sampaio.

Zemin: um país, dois sistemas

«Conforme a tendência histórica, as partes chinesa e portuguesa conseguiram realizar, através dos esforços conjuntos, a transição estável e a transferência bem sucedida de Macau», afirmou por seu lado o Presidente chinês, Jian Zemin, garantindo que «os residentes de Macau são, todos, donos desta terra e gozarão, em pé de igualdade, dos direitos e das liberdades assegurados pela lei, independentemente da sua raça e convicção».
«Guiado pela grande concepção de "um país, dois sistemas" formulada por Deng Xiaoping, o Governo chinês resolveu, com êxito, a questão de Hong Kong e Macau. Isso constitui, para o povo chinês, um enorme avanço na sua grande causa da reunificação da pátria. A prática de "um país, dois sistemas", em Hong Kong e Macau, desempenha e desempenhará um papel exemplar de grande relevância para a solução definitiva da questão de Taiwan. O Governo e o povo chineses têm a confiança e a capacidade para resolver, quanto antes, a questão de Taiwan e concretizar a reunificação completa da China», considerou o Presidente chinês.

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João Amaral no Parlamento:
Aprofundar as raízes da amizade

O deputado comunista João Amaral, falando na Assembleia da República na semana passada sobre a transferência de soberania do território de Macau, sublinhou que «não estamos a celebrar o fim de uma era», mas sim a «assinalar solenemente a continuação de uma amizade de raízes fundas».
João Amaral afirmou que as decisões adoptadas tiveram por base o consensos nacional: «a opção pela autonomia orgânica e funcional, pela localização, pelo desenvolvimento de infraestruturas que faltavam, pelo levantamento de uma arquitectura jurídica e judicial então incipiente, pela promoção da língua portuguesa, então em baixíssimo grau de presença, pela preservação do património macaense, quer chinês, quer de origem portuguesa.»
«Olhamos para o passado sem saudades do Império. Deixamos esse encargo a outros. Os Impérios são o domínio de povos por outros povos. Todos os Impérios se fazem em nome do "Bem" e do "Progresso", todos deixam atrás de si um terrível lastro», afirmou João Amaral.
«Macau não foi a característica colónia do Império, foi o porto do encontro. Serviu a China como porta para as relações externas. Serviu os portugueses como plataforma para o comércio do Extremo Oriente até ao Japão», considerou o deputado comunista.
«É justo que aqui se distinga Portugal. No seu começo, no século XVI, Macau não nasceu na ponta da baioneta. Nasceu na vertigem do comércio, e o comércio é uma das maiores realizações humanas. Cresceu no conhecimento, nas transferências de produtos e de tecnologias. Viveu o século XX como porto de abrigo. Foi assim porto de comércio, porto do encontro de culturas, porto de transferências, porto de abrigo. O sítio chinês da história de Portugal. O porto português da história da China», defendeu.
João Amaral sublinhou a confiança em relação ao futuro sentida por todos e afirmou que esta radica em factos concretos, nomeadamente na via negocial seguida (defendida pelo PCP desde o seu VI Congresso, em 1965), na Declaração Conjunta, nos mecanismos jurídicos, económicos e sociais instituídos e na vontade de cooperação de todas as partes.

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A herança portuguesa

Muito se tem falado sobre a presença portuguesa em Macau. Os símbolos oficiais foram retirados mas a alma e a cultura perdura, repetem dirigentes e jornalistas. Mas, olhando para os dados, salta à vista que dos 430 mil habitantes 97 por cento são chineses. E muitos dizem que pouco ou nada se identificam com Portugal.

A socióloga Conceição Gomes, autora do livro «Macau: o Pequeníssimo Dragão» que escreveu conjuntamente com Boaventura Sousa Santos, defendeu recentemente numa entrevista à revista alemã «Transvia» que pouco vai ficar de Portugal no território.
E aponta razões: «A administração portuguesa depois do 25 de Abril podia ter feito mais. Devia ter tido há mais tempo a preocupação de dar atenção à população de Macau para criar condições que permitissem uma autonomia em relação à China, e que alguma influência da cultura portuguesa pudesse perdurar.»
«Qual é a garantia de manutenção do sistema jurídico? O Código Civil português foi publicado em chinês há três ou quatro meses. Nestas condições estou pessimista», afirmou Conceição Gomes, citada pela Lusa.
O seu livro, que partiu de um estudo socio-jurídico realizado em Macau por encomenda do antigo governador Carlos Melancia, revela que a maioria da população macaense recorre muito pouco aos tribunais para resolver os problemas. «É uma administração que funciona em português para 97 por cento da população chinesa, que não fala português», afirma, explicando que aceder à Justiça é um processo caro e complicado visto envolver intermediários de ambas as línguas.
Para agravar a situação, o Código Penal que vigorou em Macau até 1996 foi o Código Penal português do século passado, que em Portugal já não estava em vigor. «Andava-se a operar com leis estranhas àquela comunidade, e que também não faziam nenhum sentido num contexto ocidental e português», diz a socióloga.
As reportagens de jornalistas estrangeiros no território referem mesmo o desejo da passagem de Macau para a China, esperando que o novo governo ponha fim ao crime organizado, às tríades e à prostituição e citam habitantes de Macau que acusam Portugal de ter fechado os olhos aos problemas e de só se terem preocupado nos últimos 15 anos.


«Avante!» Nº 1360 - 23.Dezembro.1999