Entrevista com João Vieira
Multinacionais ameaçam os povos de todo o mundo
O alarme soou em Seattle


João Vieira foi um dos poucos portugueses que participou nas manifestações em Seattle contra a Organização Mundial do Comércio. Juntamente com Ana Gonçalves, da Associação e Agricultores do Porto, João Vieira representou naquela cidade americana a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que há muito vem alertando para os perigos da liberalização do comércio dos produtos agrícolas.


— Os acontecimentos de 29 de Novembro a 3 de Dezembro em Seattle impressionaram quer pela dimensão das manifestações com gente de todo o mundo quer pelas imagens de violência e repressão policial que infelizmente lhe estiveram associadas. Foste alvo de repressão ou de violência?

Não. A grande manifestação de 30 de Novembro, que impressionou o mundo ao reunir mais de 60 mil pessoas e mil organizações não governamentais de vários países, decorreu de forma pacífica. Esta manifestação partiu de num campo de futebol, onde se concentraram milhares de americanos e canadianos e as delegações estrangeiras, e foi organizada e encabeçada pela confederação dos sindicatos americanos AFL-CIO.
Os actos de violência aconteceram já depois do grosso dos manifestantes ter destroçado e foram provocados por grupos isolados que agiram dia e noite por sua própria iniciativa. Refira-se que as manifestações sucederam-se durante toda a semana promovidas pelas mais diversas entidades e grupos.
Na quarta-feira, dia 1 de Dezembro, ainda participei numa outra manifestação, juntamente com as delegações das organizações de agricultores, que foi convocada e encabeçada pela Igreja Metodista Americana. Desta vez a concentração fez-se num templo – uma enorme anfiteatro, sem imagens religiosas, com capacidade para milhares de pessoas.

— A violência foi gerada por grupos infiltrados com fins provocatórios?

Não posso afirmar isso ao certo, mas é um facto que nestas coisas há sempre quem se integre para partir vidros e causar distúrbios, o que acaba por desvalorizar os objectivos dos manifestantes. A verdade é que no dia seguinte à grande manifestação todas as montras do centro de Seattle estavam cobertas com painéis de madeira, situação que se manteve toda a semana.

— A televisão mostrou imagens de manifestantes que estavam sentados e não propriamente a partir montras, a serem arrastados para dentro de carrinhas.

Isso aconteceu com manifestantes que durante toda a semana não arredaram pé do hotel onde estavam alojados os ministros. A polícia interveio na sequência de distúrbios e destruições, mas também pagaram alguns justos por pecadores.

— As organizações promotoras condenaram os actos de violência e repressão policial?

Todas as organizações presentes condenaram os espancamentos da polícia e as 600 prisões efectuadas. Entre os detidos havia muitos que tiveram um comportamento curioso: não traziam qualquer identificação, todos davam o nome de John WTO (as iniciais de Worl Trade Organization – Organização Mundial do Comércio). Isto indica que estavam muito bem organizados.

— Por quem?

Segundo creio saber, trata-se de uma organização denominada Acção Global dos Povos, que tem grande peso na Índia e costuma evidenciar-se neste tipo de momentos. À primeira vista o seu objectivo central é a luta contra as multinacionais e contra o seu órgão principal – a Organização Mundial do Comércio. Mas nós discordamos da sua forma de agir, que frequentemente degenera em actos de violência que desvalorizam os objectivos do protesto.
Já assim foi em Genebra, há dois anos, quando atacaram as montras dos principais bancos, notícia que no dia seguinte ocupou as primeiras páginas dos principais jornais. A nosso ver isso é negativo porque o objectivo da manifestação é demostrar que a violência vem da OMC.

— A CNA esteve em Seattle a convite de alguma organização americana?

A delegação da CNA foi convidada por uma organização de agricultura familiar americana, como membros da Coordenadora Agrícola Europeia, em Bruxelas, e da Via Campesina, que é uma organização internacional que coordena todo este movimento, com grande peso na Ásia e na América Latina, onde os camponeses continuam a representar entre 80 a 90 por cento da população.

— Os partidos políticos ficaram de um modo geral arredados dos acontecimentos de Seattle. Esta é uma luta apenas das organizações não governamentais, sindicatos e associações profissionais?

Acho que não. Mas nesta fase é um facto que são as organizações de massas e populares (sindicatos, associações de agricultores e sobretudo organizações não governamentais) que estão a agarrar esta questão.

— Desde a guerra do Vietname que os EUA não conheciam movimentações sociais desta envergadura. Achas que está a nascer uma nova consciência social nos Estados Unidos que leva sindicatos e as mais diversas organizações a tomarem posições mais avançadas?

Essa nova consciência social já existe, a própria manifestação testemunha-o. Por outro lado, organizações americanas de agricultores e de vários quadrantes agradeceram a presença das delegações estrangeiras, em particular da Europa, pelo apoio e o estímulo que lhes deram na realização desta grande manifestação, cuja necessidade há muito sentiam. Penso que alguma coisa está a mexer na sociedade americana para que as pessoas sintam a necessidade de se manifestar.


A grande lição de Seattle

— É ponto assente que em Seattle marcaram presença todo o tipo de organizações e grupos levantando as mais diversas bandeiras. Contudo, tomando só o caso das organizações de agricultores, interrogo-me se todas lá estariam em defesa dos mesmos interesses. Ou seja, é difícil conceber que os interesses dos agricultores norte-americanos coincidam com os dos camponeses sul-americanos, africanos ou indianos.

Essa é a grande lição de Seattle. Ali os povos fizeram história ao caminharem para uma convergência na luta contra a desregulamentação das trocas comerciais.
Falei com um português já nascido nos EUA que reside na Califórnia onde tem uma exploração com 900 vacas leiteiras. Para que se perceba, em Portugal, 200 vacas já é uma grande exploração. No entanto, hoje nos Estados Unidos aquela é uma exploração familiar comparável a uma no nosso país com 50 vacas. Apesar das diferenças evidentes de dimensão e produtividade, ambos os agricultores enfrentam hoje grandes dificuldades.

— Donde vêm as dificuldades desse agricultor americano?

Hoje os problemas da agricultura resultam da política das multinacionais, de descida sistemática dos preços em todo o mundo, em benefício da agro-indústria e da grande distribuição. Isto afecta todos produtores, qualquer que seja o sector, dimensão ou nível de desenvolvimento.
Posso relatar outro caso de uma agricultora canadiana que tem 500 hectares de cereais. Segundo me afirmou o rendimento da propriedade mal dá para sustentar a família. Por isso esteve em Seattle, tal como muitos outros agricultores, grande e pequenos, a lutar contra um adversário comum – a liberalização do comércio, que começa a atingir mesmo camadas que eram consideradas privilegiadas. Constou-me que em Seattle até estavam latifundiários brasileiros...

— A baixa de preços tem sido assim tão acentuada?

Temos que ver uma coisa. A competitividade, ratoeira na qual caíram os agricultores norte-americanos, implica dimensão da propriedade; ultramecanização; ultraprodutividade; construção de instalações; automatização dos processos. Numa palavra, exige grandes investimentos que foram calculados com base em determinados preços à produção. Contudo, as multinacionais puxaram-lhes o tapete debaixo dos pés, diminuindo-lhes os preços. Por isso entraram em crise não conseguindo rentabilizar os investimentos efectuados. Ouvimos agricultores dizerem que não conheciam uma crise assim desde os anos 30.
Cheguei a perguntar ao tal português da Califórnia: mas se tu com 900 vacas estás a dizer que tens dificuldades, então quem é que na América consegue sobreviver? Aqueles que têm sete mil vacas, respondeu-me. O problema é quem, se calhar, daqui a 20 anos as sete mil vacas já não chegam.
Isto leva-nos ao cerne da questão: será verdade que o caminho para o agricultor português para vencer no mercado actual é tornar-se competitivo, como tão insistentemente se diz? Qual será o limite dessa competitividade?

— A pequena dimensão e baixo nível de desenvolvimento da agricultura portuguesa faz pensar que já está fora deste jogo.

Passamos de facto por grandes dificuldades que têm aumentado desde Marraqueche em 1994, onde foi criada a Organização Mundial do Comércio, em substituição do GATT. É aí que as multinacionais conseguem integrar a agricultura no comércio mundial. Penso que em Portugal se discute pouco o assunto e até dá ideia que não se fala para não «incomodar». Mas se os americanos, com a sua dimensão, protestam contra a OMC, então muito mais razões têm os agricultores portugueses para o fazer.
Nós apanhámos tudo quase ao mesmo tempo. Primeiro foram as restrições impostas pela União Europeia e agora já estamos na fase da mundialização. As pessoas têm dificuldade em reagir porque pensam que Organização Mundial do Comércio não lhes diz respeito. Agricultura não é comércio.

— Quais são as reivindicações da CNA face à OMC?

A CNA quer que a agricultura seja retirada da OMC. A agricultura produz alimentos e estes não são uma mercadoria qualquer que possa ser negociada como se negoceia um televisor, um frigorífico ou um automóvel. Obedece a uma especificidade e terá de ser negociada em condições próprias. O grande problema é que as multinacionais consideram os produtos agrícolas como outros quaisquer.
Exigimos também que seja abolida a cláusula que dá acesso a cinco por cento dos mercados às exportações das multinacionais. Esta cláusula foi estabelecida em Marraqueche e obriga os Estados a abrir pelo menos cinco por cento dos seus mercados. Pode não parecer muito mas é o suficiente para desestabilizar o mercado interno a nível de preços.
Outra das reivindicações feitas em Seattle é que cada país deverá ter direito à sua soberania alimentar e não estar dependente daquilo que os outros lhe querem fornecer.

— Pensas que alguns países podem ficar à mercê das multinacionais?

Se as agriculturas nacionais forem arruinadas, as multinacionais ficam em posição para poder usar a arma alimentar contra os povos. Há muitos países do terceiro mundo que estão submetidos pela «boca» porque não produzem nada. A própria ajuda alimentar é nalguns casos uma forma de dominação.

— Com regras mais claras e consensuais a OMC poderia ter um papel positivo?

Há quem diga que é preciso democratizar a OMC, dar-lhe transparência, fala-se mesmo na criação de um tribunal para julgar a OMC. Mas quem serão os juizes que vão julgar as multinacionais?

A vitória dos manifestantes

— Ficou-nos a ideia de que a Conferência de Seattle terminou num fracasso. Foi uma vitória dos manifestantes e uma batalha ganha na luta com a OMC.

Foi certamente uma vitória dos manifestantes, mas sabemos que as multinacionais não vão desistir dos seus objectivos. Nem o governo americano nem os negociadores contavam com tal manifestação e ela foi factor determinante para o fracasso da Conferência, na medida em que influenciou e reforçou as posições de alguns países que queriam imprimir um outro rumo às negociações, por exemplo os negociadores africanos. Estes sentiram-se confortados com o que se estava a passar na rua e ganharam força para impor os seus argumentos. Por isso, a Conferência terminou na sexta-feira à noite sem acordo sobre coisíssima nenhuma.

— Nada foi acordado?

Nada. O discurso de Clinton é disso a prova, quando disse que era preciso «compreender os manifestantes».Teria ele tido aquele discurso sem a manifestação? É evidente que não. Como toda a gente, foi surpreendido e é por isso que Seattle foi um passo importante, um passo histórico, para a próxima ronda das conversações que começa já em Janeiro.
Estou convencido de que foi criada uma dinâmica que vai fazer bola de neve e vai despertar as pessoas para este problema da Organização Mundial do Comércio. Vão passar a interrogar-se sobre o que ela representa, quais são seus objectivos, e de que modo vai interferir na vida de todos os sectores de actividade produtiva. É apenas uma questão de tempo.

— Os agricultores representavam uma parte importante dos manifestantes?

Não. Nos EUA e no Canadá o número de agricultores é muito reduzido. Por isso penso que no futuro as manifestações de agricultores deverão fazer-se conjuntamente com outros sectores, até porque a alimentação e a agricultura passaram a ser uma questão de sociedade.

— O que é isso de a agricultura e da alimentação passarem a ser um questão de sociedade?

As multinacionais estão a impor um modelo de agricultura industrial altamente concentrado que elimina a agricultura familiar e tradicional que produz de acordo com a natureza.

— Mas talvez seja a única forma de podermos comer todos bife...

Não é verdade. Isso é o que dizem os defensores do modelo agro-industrial que fracassou em Seattle. Se aqueles que se industrializaram lá estavam a gritar significa que o modelo não tem futuro.

Os efeitos das agro-indústria

Mas quando dizes que se trata de uma questão de sociedade é também por que está em causa a saúde pública e o meio ambiente?

Exactamente. Temos hoje provas nesse sentido. Os frangos com dioxinas, os ovos com salmonelas, a carne com BSE, os porcos com antibióticos, as sementes geneticamente transformadas, etc. Tudo isto não é produção de uma agricultura familiar, mas sim o resultado do modelo agro-industrial promovido pelas multinacionais, que estão encharcar o mercado de outros países com produtos abaixo do preço de custo com os quais ninguém pode competir. Para alimentar a humanidade não são precisos esses exageros. Pelo contrário, esses exageros vão arruinar as agriculturas menos desenvolvidas e isso irá provocar a fome pelo menos numa parte do mundo.

— A pequena agricultura também recorre a produtos químicos...

Tenho 60 anos e nasci na agricultura. Lembro-me do tempo em que não se utilizava uma grama de pesticida e os frutos amadureciam sem criar bicho. Hoje, não se pode cultivar sem tratar, o que representa um grande negócio para a indústria dos agroquímicos.

— Isso também de deve à necessidade de produzir mais?

Sim. Dantes, as pessoas contentavam-se com o que a natureza dava e podia-se beber água em qualquer sítio. Agora é preciso produzir tanto por hectare, por metro quadrado, por árvore – daí o recurso aos adubos, pesticidas e herbicidas. Para além disso, praticamente desapareceram as frutas autóctones, que eram espécies adaptadas ao nosso país e resistiam a certas pragas e doenças sem necessidade de tratamentos. Por imposições várias, foram substituídas por variedades de outros países, que trouxeram novas doenças, e híbridas criadas em laboratório, que são muito frágeis. Por isso não se consegue ter nada sem tratar.

— A agricultura tem de voltar aos métodos antigos?

Não defendemos o regresso ao burrinho e à carroça. Queremos uma agricultura sustentada, técnica e cientificamente desenvolvida, mas sem sementes geneticamente modificadas, sem mixórdias nas rações dos animais. É inadmissível e distorce a própria concorrência que nalguns países da União Europeia se aproveitem os restos das estações de tratamento de esgotos para fabricar farinhas animais. Mas é assim que conseguem preços extremamente baixos, com os quais ninguém pode competir usando métodos racionais e equilibrados.

— O processo de globalização é reversível?

Bem, isso não anda para trás, penso eu. No entanto, a agricultura tem de ter neste contexto um tratamento particular porque é um sector específico, cuja única vocação é produzir alimentos de qualidade e em quantidade suficiente para alimentar a humanidade. O que se está a pretender é que seja um comércio como outro qualquer.

— A União Europeia e os Estados Unidos têm mostrado grandes divergências quanto ao comércio mundial, com acusações de parte a parte. Por exemplo, os EUA afirmam que os agricultores europeus são muito subsidiados...

...Mas a agricultura americana é tanto ou mais subsidiada que a europeia. Simplesmente os subsídios são encapotados, sob a forma de seguros de produção. Se o agricultor não atingir uma determinada produção é compensado pelo seguro.
Quanto às divergências e contradições, penso que se resumem à luta pela partilha dos mercados. No essencial, os interesses da União Europeia e dos Estados Unidos são idênticos. Basta dizer que a França é o segundo exportador mundial de produtos agrícolas. Foram eles que criaram a OMC. Na Europa, começou-se a abrir este caminho desde 1992, com as reformas da PAC que reduziram os preços à custa dos rendimentos dos agricultores.
O objectivo comum é dominar os mercados para que as multinacionais coloquem livremente os excedentes agrícolas do mundo ocidental. Neste processo, a grande distribuição também está interessada porque pode adquirir produtos ainda mais baratos e aumentar as suas margens de lucro.

— Mesmo com produtos de baixa qualidade.

A qualidade para eles não interessa e o consumidor está cada vez mais desligado da terra e desconhece o que come. As pessoas já estão a perder o paladar. Por isso penso que a luta dos agricultores devia ser ligada à luta dos consumidores, porque ambos têm interesses comuns. Infelizmente o sistema já conseguiu inculcar a ideia de que o que se come não é importante. O importante é comer barato para poder sobrar algum dinheiro para comprar automóveis e televisões.

— Que tipo de acções a CNA vai desenvolver proximamente?

Vamos prosseguir a nossa acção de esclarecimento para os perigos que pairam sobre a agricultura tradicional e continuar a luta contra a liberalização dos produtos agrícolas. Na próxima reunião ministerial da OMC, em Janeiro, lá estaremos com a nossa bandeira.


«Avante!» Nº 1360 - 23.Dezembro.1999