A empresa global
geradora por excelência da precariedade

Por Eugénio Rosa


É importante não esquecer que o objectivo fundamental no capitalismo continua a ser a maximização do lucro, seja a curto, a médio ou a longo prazo, e também o domínio económico. E este objectivo continua a ser o motor do seu desenvolvimento actual, evidentemente em novas condições determinadas pelas profundas transformações já verificadas e que se continuam a verificar no contexto em que as empresas actuam.

Na análise que iremos fazer vamos partir da empresa, do elo mais concreto da economia de cada país ou mundial, para tornar compreensível a forma como se está a gerar o agravamento da precariedade no trabalho, da exclusão social, e das desigualdades no mundo de hoje.
E para isso vamos começar por distinguir, para além das empresas que produzem apenas para o mercado interno, as empresas internacionalizadas, as empresas multinacionais, e as empresas globais, pois elas representam, a nosso ver, fases diferentes do desenvolvimento das empresas no actual fase do capitalismo, para mostrar como fundamentalmente a actuação desta última - a empresa global - está a gerar a precariedade, a exclusão social, e desigualdades crescentes quer em cada país, quer entre países diferentes, nomeadamente entre o Norte e o Sul.
É importante não esquecer que o objectivo fundamental no capitalismo continua a ser a maximização do lucro, seja a curto, a médio ou a longo prazo, e também o domínio económico. E este objectivo continua a ser o motor do seu desenvolvimento actual, evidentemente em novas condições determinadas pelas profundas transformações já verificadas e que se continuam a verificar no contexto em que essas empresas actuam.

Empresas internacionalizadas, empresas
multinacionais e empresas globais

Quando a Jerónimo Martins e a Sonae, duas empresas portuguesas, abriram hipermercados, a primeira na Polónia e a segunda no Brasil, está-se perante um internacionalização das empresas portuguesas, mas não de uma globalização. E continuaria a ser uma internacionalização, se no lugar de abrir um hipermercado apenas num país, abrissem em meia dúzia de países. E porquê ? Porque estas empresas apenas foram para esses países fazer o que já faziam em Portugal, normalmente da mesma forma e trabalhando para o mercado local.
Diferentemente, uma empresa global, que é o estado mais avançado da empresa no capitalismo, representa não só um salto quantitativo (actuar em múltiplos países) mas também um salto qualitativo (actuar de uma forma totalmente nova e diferente). E um bom exemplo, é a NIKE que todos conhecem. Esta empresa praticamente já não possui fabricas próprias. Subcontrata a produção nos países onde os preços são mais baixos. Hoje pode ser na Coreia e na Indonésia, amanhã na Malásia.
A empresa multinacional será um estado intermédio entre as duas. Tem fábricas próprias, portanto investe em capital fixo, em determinados países a partir das quais abastece não um mas vários mercados. O caso da AUTOEUROPA é um bom exemplo.
Em resumo, enquanto que a empresa internacionalizada e a multinacional realizam investimentos fixos, sendo a mudança de um país para outro mais difícil, pois têm sempre de desinvestir e de enfrentar a oposição social e mesmo dos governos a tal comportamento, a empresa global já não tem essas restrições, pois ou não investe nada ou investe muito pouco, sendo global e flexível não só em termos de mercado mas também no campo da produção; aproveitando (parasitariamente?) investimentos já feitos ou obriga outros a suportar a totalidade ou a maior parte desses custos fixos, bem como dos custos de subaproveitamento e obsolescência.
Por outro lado, a fragmentação da produção é substituída cada vez mais pela fragmentação da cadeia de valor, como base da sua estratégia global, porque é a partir desta que se apropria da maior parte do valor criado.

Controlar o que interessa

Utilizando a cadeia de valor proposta por Michael Porter, embora simplificando-a para a tornar mais compreensível, já que facilita a análise e a compreensão, poderemos dividir as actividades desenvolvidas por uma empresa da seguinte forma: - (1) Geração, concepção e desenvolvimento do produto ou serviço; (2) Produção; (3) Marketing e venda; (4) Distribuição; (5) Serviço pós-venda.
E o que fazem as empresas globais? - Não realizam todas as fases do processo, mas apenas concentram nas suas mãos os elos nobres da cadeia que lhes permite controlar a cadeia e apropriar-se da maior parte do valor criado, e que são normalmente a concepção, o marketing e a venda aos distribuidores. E subcontratam os elos da cadeia que não permitem o seu controlo e que facilmente podem ser realizados em qualquer parte do mundo, pois a tecnologia utilizada na sua produção ou distribuição está cada vez mais divulgada e banalizada. È o que sucede com a NIKE ou com a MARTEL, um gigante de brinquedos, que têm empresas subcontratadas a produzir para si na Indonésia, na Malásia, no México, na Polónia , etc., ou seja, nos países onde os custos de produção são mais baixos. Mesmo em Portugal, no sector dos têxteis, existem já várias empresas que produzem com base em modelos fornecidos por empresas estrangeiras, as quais depois põem a sua marca e os vendem sem que os consumidores fiquem a saber que foram produzidos em empresas portuguesas.
Portanto, a empresa global investe cada vez menos em capitais fixos. Os outros que o façam por ela, correndo os consequentes riscos de subutilização ou de desactualização rápida ou obsolescência

A nova concorrência

É evidente que a empresa global não é ainda a dominante, coexiste com outro tipo de empresas (a empresa internacionalizada, a empresa multinacional que tem fábricas suas nos países onde os custos são mais baixos e daí abastece vários mercados, etc.), coexiste com empresas nacionais, que constituem a maioria das empresas de cada país, nomeadamente PMEs, com as quais muitas vezes estabelece acordos de desigualdade e domínio (em Portugal, são exemplos bem visíveis as cadeias da MacDonalds, a actuação da CocaCola, etc., etc.).
No entanto, as empresas globais conjuntamente coma as empresas multinacionais estão cada vez mais a liderar o processo de mundialização, de liberalização total, primeiro de capitais, já conseguida, e agora do comércio.
Como consequência e associado a todo este processo, surge aquilo que já começou a ser chamado a nova concorrência, uma concorrência cada vez mais global, de produtos e serviços com origem em países cada vez mais diversos, sendo a competitividade, face a esta concorrência global, o critério de sobrevivência das empresas. E esta competitividade, nesta fase actual do capitalismo, está cada vez mais associada à flexibilidade das empresas, à criação de redes de empresas ligadas por subcontratações muitas vezes desiguais, ao franchising, a parcerias estratégias , etc., etc..
Mas a flexibilidade das estruturas das empresas e desregulamentação agrava a precariedade, a exclusão e as desigualdades. E como e porquê ?

A precariedade na lógica do sistema

As empresas globais provocam a generalização da precariedade a toda uma empresa, pois o que fica em perigo não é o posto de trabalho deste ou daquele trabalhador, mas de todos os trabalhadores da empresa, com consequência do subcontrato que assinam com empresas nacionais para os elos menos nobres da cadeia de valor, subcontratos desiguais, em que impõem preços muito baixos, pelo menos após terem consolidado a dependência da empresa nacional, transferindo para as empresas locais o ónus da exploração agravada dos trabalhadores (trabalho infantil, salários de miséria, negação de direitos elementares, etc., - serve de exemplo as manifestações contra a NIKE nos países da Ásia). E como podem facilmente rescindir o contrato num país transferindo-se para outro, onde as condições lhe sejam mais favoráveis, são criadoras por excelência da precariedade e exploração. As restantes empresas, dentro da lógica do sistema, e com o argumento de que só assim conseguem ser competitivas procuram também impor a precariedade.
Este círculo infernal da precariedade acaba por envolver todas as empresas, sejam nacionais ou estrangeiras, grandes ou pequenas. E isto porque a precariedade do trabalho, imposta através dos contratos a prazo, do trabalho a tempo parcial, do recurso a trabalhadores independentes e ao outsourcing, etc.., tornam-se os instrumentos por excelência utilizados pelas empresas para aumentar a competitividade, transferindo para os trabalhadores os custos do actual funcionamento do sistema, enfim, para manter ou mesmo aumentar as taxas de lucro, na fase actual do capitalismo global e liberal, e as empresas que não se submetem a esta lógica correm o risco de serem esmagadas pelas empresas que têm possibilidades de o fazer, ou porque já actuam como empresas globais, ou porque através da deslocalização das suas próprias fábricas para os países de mão de obra mais barata o conseguem, ou porque são empresas de países onde os custos totais de produção são mais baixos. Tudo isto é facilitado, e tornado possível, pela liberalização crescente do comércios, pelo rápido desenvolvimento das novas tecnologias de transporte e de informação, o que lhes permite colocar os seus produtos ou serviços nos diferentes países a um preço onde a relação qualidade/preço é melhor do que a dos produtos ou serviços nacionais.
Desta forma, a liberalização total dos movimentos de capitais já existente, que permite a obtenção de gigantescos lucros especulativos; a liberalização cada vez maior do comércio, pelo menos nos sectores que interessa aos países desenvolvidos e às empresas multinacionais e globais; a nova concorrência; a desregulamentação crescente; a redução/corrosão dos poderes dos Estados nacionais, o que anula ou, pelo menos, reduz drasticamente a sua capacidade para intervir como contrapoder ao poder dos mercados; tudo isto, está a determinar o aprofundamento das desigualdades e o aumento da precariedade e da exclusão social, não só nos chamados países da periferia, ou do Sul, com movimentos financeiros especulativos que abalam e destroem periodicamente sectores importantes das suas economias, mas também nos próprios países desenvolvidos, também chamados países do Norte. Esta é uma questão que nos propomos tratar num próximo artigo.


«Avante!» Nº 1360 - 23.Dezembro.1999