Cuidado
com o Poder
e Boas Festas
Por Modesto Navarro
É triste dizê-lo, mas, «no tempo da outra senhora», o acesso aos órgãos de comunicação social era menos «cientificamente» controlado, em muitos aspectos, do que é hoje. Agora, os espaços pequenos e grandes são concedidos ou negados em função de interesses muito definidos, políticos, económicos, sociais e culturais, e os filtros e controlos são ferreamente exercidos.
Naquele tempo, a
censura cortava, proibia e a PIDE apreendia, mas havia jogos de
fuga e de ataque que, às vezes, resultavam. Nesta situação
«altamente democrática», de posse ditatorial dos meios de
comunicação social, só tem acesso a espaços quem os conselhos
de administração e os directores entendem, numa selecção
cujos critérios são objectiva e subjectivamente definidos, até
em função do que é necessário estimular aqui e ali, para
confundir, para separar e para infiltrar problemas e dissenções
onde muito bem lhes interessa.
Portanto, usar a escrita ou a palavra pode ser, e é, uma das
formas variadas de poder. Daí que valha a pena ter sempre
presente o que nos vai acontecendo, seja no exercício de outros
poderes, na Assembleia da República, na vida política
partidária, no poder local, nos sindicatos ou nas mais diversas
entidades colectivas, seja nessa coisa tão natural e bela que é
(devia ser), escrever e falar onde nos abrem (tão poucas vezes e
a tão poucos
) as portas.
Quando rebentou o 25
de Abril, foi necessário, obviamente, substituir os presidentes
das Câmaras Municipais e das Juntas de Freguesia em todo o
país. Em processos tanto quanto possível participados, em cada
vila do distrito de Bragança, as forças democráticas que
então havia nomearam ou elegeram Comissões Administrativas para
as Câmaras que foram estudadas e negociadas com o então
ministro da Administração Interna, Magalhães Mota. João
Vicente e eu próprio, como membros da direcção do Movimento
Democrático Português em representação do distrito, fizemos
esse trabalho em Lisboa. Logo a seguir, quando fui a Vila Flor,
várias pessoas bateram à porta de casa dos meus pais com
ofertas (azeite, cabritos e outros mimos assim
) e pedidos
de emprego, e inícios de processos de tráfico de
influências
Foram corridos a toque de caixa, perante o que era a brutal ou
insidiosa repetição de usos, hábitos e abusos do fascismo.
Tratava-se de rodear, de incensar, de levar a apodrecer
rapidamente o que devia ser participado por todos e
constantemente remetido à responsabilidade popular.
Agora, as situações são mais complexas e finas. Se um ou outro
de nós tentar publicar um artigo, por exemplo no Diário de
Notícias ou no Público, recebe uma negativa mais ou
menos inviezada ou directa. A mim, no Público,
disseram-me redondamente que não, a certa altura, e, no entanto,
devo ter publicado já centenas de artigos em jornais e revistas
antes e depois do 25 de Abril. No Diário de Notícias, a
resposta da direcção foi que podia escrever para o suplemento
cultural
Cada um de nós terá a sua experiência. Mas,
como convirá pela noção individual e colectiva de como estas
coisas se jogam, valerá a pena analisar sempre porquê, a certa
altura, nos dão espaço e, noutras alturas, nos fecham as
portas.
Connosco, comunistas e outros democratas que não cedem, que não
namoram nem recuam, as coisas são o que são, ou devem ser, nuas
e cruas. Por isso, valerá sempre a pena pensar, e pensar bem,
que, ao estarmos em situações de representação do Partido,
seja onde for, não estamos sós. Estão connosco os milhares e
milhares de militantes, os milhares e milhares de simpatizantes,
os que sofrem e trabalham, os que são silenciados e humilhados e
explorados. Daí que a palavra, ao ser usada, tem de representar
a todos, no seu conjunto, e ter sobretudo em conta os sonhos, as
aspirações, os sofrimentos e as ambições de mudança e
transformação do mundo que nos caracterizam e marcam.
Na primeira
infância do socialismo que acabaram por significar, em sentido
histórico e prático, os ex-países socialistas (desde 1917 até
há poucos anos), foram cometidos erros brutais, coisas
criminosas até, sobretudo pelas repercussões negativas e
altamente prejudiciais que tiveram e vão continuar a ter na luta
da classe operária e de todos os trabalhadores do mundo pela
conquista de direitos e pela manutenção dos que foram
alcançados nesses anos de maior ou menor equilíbrio mundial e
de libertação dos povos. Mas, nesses processos tão decisivos,
não foram realizadas obras e transformações que marcaram e
marcam indelevelmente a história de avanços fulcrais da
humanidade? E quem governou e quem traiu, por exemplo na União
Soviética, nos últimos anos (veja-se a brutal contradição e
lição), não eram filhos de operários e de outros
trabalhadores que tinham ascendido ao saber e aos poderes
superiores por obra e graça dos processos revolucionários?
Então, valerá a pena ter em conta estas questões complexas e
ricas, quando falamos das experiências tão diversas de
implantação e avanços do socialismo e dos recuos e das
traições acontecidas. Quando estamos próximo de poderes ou
observamos o que se passa em situações até de pequenos
exercícios de responsabilidade, aqui entre nós, vemos como se
comportam outros, às vezes a maioria, à volta desses
responsáveis
Bajulam, rodeiam, pedem e exigem
autoritarismo, se quem ocupa esses lugares não usa o poder
discricionariamente e tenta devolvê-lo às responsabilidades de
quem trabalha consigo. Não nos enganemos. Estamos na infância
do uso do poder e já à nossa volta se configuram situações
delicadas, de hábitos criados à volta, de namoros e de
deslumbramentos mais ou menos evidentes.
Tenhamos cuidado. Ser responsável, seja no Partido, seja a que
nível for, na Assembleia da República, numa Câmara Municipal,
numa Junta de Freguesia, numa Assembleia Municipal ou de
Freguesia, num Sindicato ou numa Federação, União ou
Confederação, numa Associação ou Colectividade, tem
exactamente os perigos e as responsabilidades que tem e que já
conhecemos, por experiências dos outros, em todos os lados do
mundo, e pelas nossas, aqui e agora, ontem e hoje. Por isso, não
há ingenuidade, fascínio ou esplendor que valha ou desculpe,
quando os outros tentam utilizar-nos, quer silenciando-nos
sistematicamente, quer amplificando extraordinariamente a nossa
voz. Tenhamos cuidado e sejamos responsáveis perante as dezenas
de milhar de pessoas que anseiam, que sonharam, que acreditaram e
que continuam a querer fazer e descobrir outras vias para a
utopia e para o sonho de estarmos vivos, coesos e fortes perante
o infortúnio como perante as vitórias que vão acontecendo.
Aquele ditado brasileiro «Quem nunca comeu melado, quando come
se lambuza» não deve aplicar-se aos comunistas.
Andava a encher e
andava para despejar isto. Recentemente, numa iniciativa da OR de
Lisboa sobre as ditas «novas leis» para o poder local, o
camarada Lino Paulo colocou uma questão interessante, que já me
andava também a pesar. Porquê deixámos de realizar aquelas
conferências e aquelas iniciativas nacionais e regionais que
eram (às vezes excessivamente
) preparadas e voltadas para
a reflexão colectiva, na base de contributos individuais ou de
conjuntos de camaradas? Aí está um caminho bonito e
impulsionador, para a reflexão colectiva e individual, perante
novos e velhos problemas que nos tocam. Sim, porque quando
estamos lá, poderemos não abrir a boca, mas sentimos que outros
camaradas nos trazem o que baila mais ou menos claramente nas
nossas cabeças e o que resulta das muitas práticas e vontades.
Façamos isso, antes de «botarmos» a boca no trombone
amplificado e traiçoeiro que às vezes nos oferecem. Antes de
partirmos para fora com posições e propostas e dúvidas e
banalidades que só não são isso porque a alguém interessa que
não sejam, saibamos unir ainda mais o que vale a pena, ou seja,
essa força enorme que é estarmos juntos, mesmo quando às vezes
pensamos que estamos sós e isolados.
É isso que devemos aos que lutaram, aos que morreram e aos que
estão sempre vivos ao nosso lado, nesta caminhada tão linda que
é termos razão antes de tempo e já estarmos ansiosos por novas
descobertas, libertações individuais e colectivas e
transformações imparáveis do mundo.
Feliz Ano Novo, Camaradas.