A greve vitoriosa
das enfermeiras da Irlanda

Por Pina Gonçalves


«…estamos em greve porque os políticos não querem ouvir as nossas reivindicações.»

Ao fim de 9 dias de greve, que foram descritos pelas enfermeiras como «os mais duros da sua vida», o governo irlandês aceitou satisfazer várias das reivindicações apresentadas por estas trabalhadoras. A greve foi suspensa em 27 de Outubro, após reunião em que se formalizou o acordo e se discutiram os detalhes da sua aplicação imediata.

A já considerada maior greve alguma vez realizada na Irlanda, iniciada pelos enfermeiros em 19 de Outubro de 1999, tem as suas raízes na política governamental para com este sector da área da saúde.
Em Fevereiro de 1997, o Sindicato dos Enfermeiros Irlandeses – Irish Nurses Organization, (INO), suspendeu uma greve quando o governo garantiu a criação de uma comissão para a enfermagem, tendo por objectivo a análise dos problemas da profissão, incluindo a estrutura da sua carreira profissional, condições de trabalho, formação e qualificação profissional, tendo ainda prometido disponibilizar 85 milhões de libras irlandesas para aumentos salariais.
Na Irlanda existem cerca de 28 000 enfermeiros no serviço público, na sua grande maioria mulheres. Este sector profissional é também «novo» no sindicalismo, uma vez que a INO só foi reconhecida como sindicato em Janeiro de 1990. As enfermeiras irlandesas também nunca tinham realizado uma greve.
Uma recomendação do tribunal de trabalho propôs a fixação do aumento salarial, das 20 023 libras irlandesas anuais propostas pelo governo, para 27 522. O sindicato reivindicava mais 7000 libras além deste último valor.
Actualmente uma enfermeira na Irlanda vence 17 747 £i anuais em média. Mas, o governo pretendeu que o rendimento das trabalhadoras fosse «resolvido» através do aumento do número de horas extraordinárias, obrigando-as a fazer turnos mais longos, a realizar mais trabalho nocturno e em dias de descanso normal.
O governo recusou-se ainda a comparecer às reuniões arbitrais no tribunal de trabalho e renegou os acordos estabelecidos com o sindicato em Fevereiro de 1997. Em suma, não cumpriu a sua palavra.

Cortes nos salários… aumentos para os cargos políticos

O governo de coligação entre o Fianna Fail e os Democratas Progressistas, receando o alargamento do movimento de luta dos trabalhadores da administração pública, optou por não satisfazer as reivindicações das enfermeiras, argumentando com o elevado custo financeiro das melhorias no sistema de saúde e dos salários reivindicados, e sem assomo de vergonha tentou ainda acusar o sindicato de não «honrar os compromissos». Neste quadro ilustrativo do conceito de palavra e de honra desse governo, a maioria parlamentar em que se apoia decidiu aumentar os rendimentos dos deputados das 34 000 £i anuais que detinham para 44 000 em Dezembro de 1997.
Este aumento foi justificado por, como disse um deputado da maioria, «…não ser justo que os deputados trabalhem seis dias por semana e trabalhem no duro por 34 000£i…».
Pelos vistos o mesmo critério não serve para os trabalhadores.

A maior greve de sempre na Irlanda

Na manhã de 19 de Outubro de 1999, os piquetes de greve começaram a comparecer e a organizar-se à porta de cerca de 1000 hospitais e outras instituições de saúde da República da Irlanda, dando início à primeira greve nacional na história das cerca de 30 000 enfermeiras irlandesas, contando com mais de 90% de adesão.
Esta greve efectua-se num quadro de anos de verdadeira «hemorragia» do pessoal de enfermagem na Irlanda, que fruto das políticas governamentais tem optado por outras actividades e tem inclusivamente emigrado, sobretudo para os EUA e Grã Bretanha.
Esta situação sucede-se, enquanto os governantes irlandeses se gabam dos recordes económicos do "Tigre Celta", durante a década de oitenta.
Os trabalhadores irlandeses começam agora a iniciar acções reivindicativas, acompanhadas de greve, exigindo a justa parte da riqueza produzida.
Lenore Mrkwicka, secretária geral adjunta da INO descreve assim o estado de espírito dos associados do sindicato: «…claro que estão muito preocupados. É novo território, mas temos comités de greve apertadamente organizados e nos locais.».
Tem também uma palavra para o público utente: «O público deve retirar daí, (da presença dos piquetes de greve), conforto, porque apesar de todas as dificuldades que as enfermeiras enfrentam nesta terrível terça feira negra, nós vamos assegurar que seja dada cobertura de emergência.»
De facto, os comités de greve do sindicato assumiram a responsabilidade pela determinação dos cuidados de urgência em cada um dos locais de trabalho.
A INO não tem fundo de greve para os seus 26 000 associados, e sobre isto Lenore Mrkwicka é clara ao dizer: «Eu penso que a determinação e resolução dos nossos associados é evidenciada ainda mais pelo facto de nós não termos fundo de greve, e no entanto eles estão determinados a permanecer lá, (nos locais de trabalho), até que se alcance uma conclusão satisfatória e ao mesmo tempo providenciarem cuidados de emergência gratuitamente, dando garantias de que os cuidados a prestar aos pacientes são centrais.».

Crescimento económico, igual a desenvolvimento e justiça social?

Os governantes irlandeses gabam-se sempre que podem do crescimento económico verificado no seu país e por serem os melhores a cumprir as regras ditadas pelo tratado de Maastricht. Cá na nossa terra compete-se com eles a ver quem é o melhor aluno.
A outra face, a face que tentam ocultar, é a política privatizadora, retirar o direito à saúde aos mais desfavorecidos, e o resultado tem sido o encerramento de alas em hospitais públicos, e a saída dos profissionais de saúde do próprio país. Conclusão, os êxitos económicos apregoados não têm beneficiado o povo e os trabalhadores. Outros haverá, concerteza, a poderem dizer que estão a beneficiar de tal política.
O pessoal de enfermagem na Irlanda, predominantemente feminino - razão porque me tenho referido a esses trabalhadores também no feminino -, durante décadas só foi olhado como merecedor de tarefas consideradas menores, num país onde o sector tem vindo a ser controlado tanto pelo Estado como pela Igreja. Ao invés, a educação, formação profissional, reconhecimento social e, claro está, a prática lucrativa da medicina, ficaram reservadas para os homens da «elite» do sector.
Estas mulheres têm trabalhado arduamente para ultrapassar esta herança e conseguirem ser reconhecidas como as profissionais qualificadas, competentes e dedicadas que são.
As enfermeiras estão revoltadas na Irlanda. De facto têm razões para isso. É que não foram os governantes que passaram e passam pela angústia de ter que recusar doentes ou pelo drama de os ver sofrer e até a morrer por causa da sua política desumana. São as enfermeiras que estão na primeira linha, com os seus doentes.
Esta luta é por isso uma greve de revolta contra uma política de saúde injusta, muito para além das questões salariais. Por essa razão tem merecido o apoio crescente do povo irlandês.

Governo cede após nove dias de greve

Ao fim de 9 dias de greve, que foram descritos pelas enfermeiras como «os mais duros da sua vida», o governo irlandês aceitou satisfazer várias das reivindicações apresentadas por estas trabalhadoras. A greve foi suspensa em 27 de Outubro, após reunião em que se formalizou o acordo e se discutiram os detalhes da sua aplicação imediata.
As 1250£, em média, para revalorização dos salários, com retroactivos desde 1 de Agosto de 1998, os 2 por cento de aumento salarial com retroactivos desde Julho deste ano, as mais de 2350 promoções acordadas, o aumento do quadro de enfermeiras, o pagamento de 5 por cento de suplemento salarial por antiguidade, o direito a mais três ou quatro dias de férias de acordo com o tipo de função exercida e a categoria profissional, só foram alcançados pela determinação e combatividade demonstradas pelas enfermeiras nesta luta. Mas, como disse Liam Doran, Secretário Geral da INO, numa carta que dirigiu a todos os associados, saudando-as(os) pela sua combatividade e explicando o acordo: «No fim de contas, e isto deve ser compreendido, é apenas o fim do começo.»
Estas trabalhadoras escreveram uma das mais belas páginas da sua história e no entanto, que me tenha apercebido, não houve qualquer notícia divulgada na nossa comunicação social sobre esta luta. Ficam registados, mais uma vez, os critérios jornalísticos da nossa comunicação social.


«Avante!» Nº 1360 - 23.Dezembro.1999