O saque e o Natal
A catástrofe que atingiu esta semana a
Venezuela provocou entre 30 mil a 50 mil mortos, numa
indefinição de vítimas que agrava ainda mais a dimensão da
tragédia. Chuvas torrenciais abateram-se sobre o país num
dilúvio de água e lama, levando de enxurrada pessoas e bens de
povoações inteiras. Em poucas horas, dezenas de milhares de
pessoas desapareceram no lodo e na lama e calcula-se que mais de
500 mil, arrasados que foram o tecto e os haveres, estrebucham
neste momento na miséria do desalojamento. É um drama à escala
planetária que, como tal, deveria mobilizar de imediato os
imensos recursos da humanidade para acudir ao desastre, tanto
mais que o país vitimado está longe, muito longe, de ter
condições para o fazer.
Todavia, e apesar da quadra natalícia em que, quase
sarcasticamente, a tragédia ocorreu, a humanidade também
continua longe dos grandes gestos de solidariedade. Não pela
humanidade em si vasta, sem rosto e inesgotável no que no
melhor a define -, mas por quem nela manda e a conduz.
Ora, quem manda na humanidade e a conduz é uma elite
supostamente representativa dos interesses gerais e que faz dessa
qualidade o alfa e o ómega não apenas do seu poder mas,
sobretudo, da sua perpetuação nele. Fale-se de quem conduz os
destinos de cada país ou, a partir de alguns deles, os destinos
do próprio mundo.
Atendo-nos ao drama vertente da Venezuela, duas elites estão
manifestamente envolvidas na tragédia e, sobremaneira, com tudo
o que a montante a propiciou: uma, a dos dirigentes que têm
conduzido os destinos da própria Venezuela nas últimas
décadas, outra a que, nos EUA e em conluio com a primeira, tem
explorado desenfreadamente o povo e os recursos deste país da
América Latina.
Têm sido estas duas elites que, substantivamente, se vêm
apropriando do petróleo (de que a Venezuela é o terceiro
produtor mundial) e do café, do cacau e da cana do açúcar, da
pecuária e da exploração florestal que abundam neste país
instalado entre a Amazónia e as Caraíbas, ao mesmo tempo que
lançaram na miséria a maioria esmagadora da população, com o
pormenor banal e costumeiro de que a parte de leão
da pilhagem vai para as grandes multinacionais e interesses dos
EUA, ficando o resto para os plutocratas autóctones.
É evidente que não foi esta voracidade rapace que fez desabar o
dilúvio sobre a Venezuela. Para bem da humanidade, as suas
elites governantes ainda não mandam no fundamental da Natureza.
Mas foi esta voracidade rapace que circunstanciou a extensão da
tragédia ao empurrar populações inteiras para desordenamentos
urbanísticos de toda a ordem, onde muitos aglomerados
populacionais foram proliferando ao sabor do improviso e
empurrados pela miséria, sem regras na construção nem
qualidade nos materiais, sem estudos morfológicos nem planos
directores, na indiferença ou ignorância para com os impactes
ambientais, os cursos de água ou a natureza dos terrenos.
Não é por acaso que tempestades ou furacões de igual
envergadura nunca provocaram tal devastação humana e material
no território dos EUA. Ali, a acumulação da riqueza é de tal
ordem que as elites se podem dar ao luxo de dispensar o
suficiente para a segurança geral, impondo estudos e regras à
construção habitacional.
Nessa acumulação de riqueza nos EUA consta uma fabulosa fatia
directamente extorquida à Venezuela, nas últimas décadas.
Imbuído de espírito de Natal, o Governo de Bill Clinton já
ordenou algum retorno do saque, enviando para a Venezuela umas
toneladas de cobertores e comida enlatada. Henrique
Custódio