O silêncio e as palavras
As revelações de João Cravinho sobre as
causas que levaram ao seu afastamento da pasta das Obras
Públicas constituíram, como não podia deixar de ser, a grande
notícia do passado fim de semana. Não era caso para menos e
até o seria, certamente, para mais. Com efeito, o ex-ministro
produziu declarações bombásticas que, a corresponderem à
verdade e nada leva a pensar que não correspondam, bem
pelo contrário deveriam ser devidamente clarificadas.
Senão vejamos: afirmou João Cravinho que, enquanto ministro,
foi «derrotado» por «"lobbies" e grupos de
interesses poderosíssimos», na sequência de um combate que
travou contra os ditos "lobbies", cujos estão, segundo
a informação prestada, sólidamente «instalados na sociedade
portuguesa». «E porquê esta derrota?» - pergunta, a dada
altura, o derrotado, respondendo triunfante: porque «não
governei para os interesses, como é claro». Mais: garante-nos o
ex-ministro de António Guterres que, travando tal combate,
evitou que «todos os anos» qualquer coisa como «30, 40
milhões de contos» fossem, «digamos assim, para os bolsos de
quem não deveriam ir». Ora, concluiu João Cravinho num tom
algo fatalista, «quando se fazem coisas destas, é evidente que
se paga». E pagou: foi, evidentemente, demitido do cargo e
substituído pelo seu colega Jorge Coelho.
Deixando para outra altura as observações que o transparente
relato de João Cravinho merece no que respeita ao estado de
saúde da democracia em que vivemos e assinalando apenas a
persistência de um pesado silêncio em torno do que ocorreu na
JAE com os governos do PSD e do PS - fixemo-nos, por agora, no
facto de estarmos perante um conjunto de revelações de
enormíssima gravidade e que exigem urgente e total
clarificação.
Na verdade, João Cravinho, falando como falou, agitou águas, revolveu lodos e lamas, destapou chagas porventura destinadas à mais cerrada privacidade, enfim foi longe na denúncia do que era mister denunciar. Louvem-se-lhe, por isso, as palavras. Só que, como é sabido, as palavras, depois de ditas... estão ditas, passando a ocupar inexoravelmente um espaço que antes pertencia ao silêncio... e gerando exigências que, honestamente, não é possível ignorar. Assim, indo até onde foi, o ex-ministro obrigou-se a ir mais longe, a ir até ao fim. Porque o que disse suscita a qualquer cidadão minimamente atento uma série infindável de questões que não podem ficar sem resposta. Com efeito, não é possível dizer-se que existem "lobbies" todo-poderosos habituados a, «digamos assim», arrecadar todos os anos 30 a 40 milhões de contos à custa do erário público e da cumplicidade do Governo e não dizer o que são, quem os apoia e quem compõe esses "lobbies"; não é possível dizer-se que um membro do Governo no caso concreto um Ministro trava durante vários anos uma guerra, infelizmente surda, contra esses "lobbies" impedindo-os de, «digamos assim», meterem ao bolso os tais milhões e não dizer mais nada; não é possível dizer-se que a vitória alcançada sobre os referidos "lobbies" (não lhes permitindo, «digamos assim», sacar os habituais milhões) teve como desfecho a demissão forçada do Ministro por imposição dos "lobbies" e quedar-se na constatação da ocorrência; ou seja: não é possível fazer a denúncia pública de operações fraudulentas de semelhante dimensão e gravidade e ficar-se por aí, fugindo à enunciação dos protagonistas dessas operações a montante e a jusante, bem entendido.
Importa ainda sublinhar que as
desassombradas revelações do ex-ministro João Cravinho nos
incitam e desafiam, intencionalmente ou não, à busca de outras
e mais complexas conclusões. De tal forma que, tendo o acima
referido «cidadão minimamente atento» concluído o que vimos
ter concluído, não poderá deixar de dar continuidade à sua
reflexão e perguntar-se, atónito: se os "lobbies"
têm força suficiente para enfrentar e afastar um ministro que
os impedia de, «digamos assim», se apropriarem indevidamente de
dezenas de milhões de contos por ano, não a terão igualmente
para o substituir por outro que lhes permita, «digamos assim»,
voltar a arrecadar os tais milhões? A pertinência da pergunta
é obviamente incontestável e não legitima ninguém a
atribuir-lhe quaisquer intenções sub-reptícias. Quanto à
resposta, ninguém melhor do que o ex-ministro João Cravinho
está em condições de a dar.
Seja como for, uma coisa parece não oferecer dúvidas: a
política de direita praticada vários anos por sucessivos
governos do PSD e continuada, no essencial, pelo PS, com o seu
iniludível conteúdo de classe e tendo como uma das suas
vertentes básicas a defesa dos interesses dos grupos económicos
que, «digamos assim», se movimentam à velocidade de dezenas de
milhões de contos/ano constitui uma permanente sementeira
de situações semelhantes à que João Cravinho trouxe a
público.
Face a tudo isto, os posteriores
«esclarecimentos» do ex-ministro sobre o que queria dizer
quando disse o que disse, soam a arrependimento de
circunstância. «Esclarecendo» que as suas declarações não
se referiam a nada do que se referiram e que deveriam ser
interpretadas no contexto das perguntas que os jornalistas lhe
fizeram, João Cravinho deu o dito por não dito e transformou um
acto de louvável coragem num penoso acto de contrição. É
certo que o prestimoso líder do Grupo Parlamentar do PS deu um
contributo precioso para a «clarificação» da situação ao
lembrar que «a única pessoa em condição de interpretar as
declarações é o próprio»... Mas os «esclarecimentos» do
ex-ministro deixam-nos agora perante uma série de incógnitas:
afinal há ou não há "lobbies" que «todos os anos»,
«digamos assim», metem nos bolsos «30, 40 milhões de
contos»?; afinal houve ou não houve luta contra os ditos
"lobbies", saldando-se a peleja pela derrota do
ex-ministro João Cravinho, traduzida na sua saída do Governo?
Como acima se disse, as palavras, depois de ditas... estão
ditas. Inexoravelmente. Pretender apagá-las e substituí-las
pelo silêncio que as precedeu é um exercício inútil e com
consequências para quem a ele recorre. Como disse se é
que disse... o próprio João Cravinho, «quando se fazem
coisas destas, é evidente que se paga».
Foi certamente pensando em situações como esta que, há cerca
de dois mil e quatrocentos anos, Eurípedes poeta trágico
ateniense - advertiu: «se estás na posse de palavras mais
fortes do que o silêncio, fala; senão, mantém-te calado».