«Não nos pagam, mas há dinheiro...»
Falência da Kallen
gera dúvidas e protestos



Muito perto da Ota, o terreno e os edifícios da fábrica de confecções poderão render muito dinheiro à VET France Disfra. Quem fica a perder são 120 trabalhadores, que no final de Janeiro acumularão o maior volume de créditos arrolados num processo de falência que os membros da comissão sindical consideram sui generis.

O caso da Kallen foi relatado ao «Avante!» numa conversa em que participaram Nazaré Rodrigues, costureira, com 25 anos de casa e outros tantos de actividade sindical, e que também integra a Concelhia de Alenquer e a DORL do PCP; Ana Eucário, prenseira há 4 anos e delegada sindical (que resistiu a uma tentativa de despedimento no final de dois anos e meio de contratos a prazo e conquistou, com o apoio do sindicato, o direito ao vínculo efectivo); Helena Rodrigues, controladora de qualidade, com 27 anos de trabalho na Kallen, e dirigente sindical; Maria João Gomes, costureira com 17 anos na empresa e delegada sindical; e Bento Luís, responsável da organização do Partido nas empresas do concelho.

Paz atribulada

Começaram por recordar que a Kallen instalou-se no Casal do Cartaxo, em Cheganças, no ano de 1972, por iniciativa de uma multinacional alemã. Fabricava então apenas calças dos modelos clássicos.
Após o 25 de Abril, os alemães vendem a fábrica a um industrial de Oliveira do Hospital. Carlos de Brito ensaiou a produção de casacos e fatos de senhora, mas ao fim de cinco anos desencadeou um processo de falência. Tinha comprado a empresa por 12 mil contos, mas já apresentava 8 meses de salários em atraso e 200 mil contos de dívidas.
A VET France, que era já cliente, compra a Kallen no início da década de 80. Acordou condições mais favoráveis para pagar a dívida aos trabalhadores, fez algumas modificações na empresa e passou a comercializar toda a produção da Kallen.
Através da VET France, a fábrica orienta a sua produção para a Bruno Saint-Hilaire, respondendo às exigências de alta qualidade da marca BSH. A VET decide começar a passar encomendas de outros clientes para outras empresas portuguesas, a feitio. Além da Gouveia, em Viseu, e da HF, em Odivelas, os representantes dos trabalhadores referem-nos ainda a Integal, em Carregal do Sal, que foi praticamente criada com trabalho que deixou de ser feito na Kallen e que assim se mantém.
Face aos alertas dos trabalhadores e dos delegados e dirigentes do Sindicato Têxtil do Sul, os responsáveis da empresa minimizavam os motivos de preocupação derivados da grande dependência de um único grande cliente, que dava trabalho para todo o ano e pagava os preços acordados nos prazos previstos.
Apesar de alegar sempre a existência de dificuldades, como motivo para manter salários muito baixos, a gerência não provocava conflitos e foi mesmo, no distrito de Lisboa, a primeira a aceitar a redução do tempo normal de trabalho para 40 horas semanais, com respeito pelas pausas, em 1987.
No final de 1989, um dos principais responsáveis da empresa em Portugal desaparece, ficando a saber-se que teria desfalcado a Kallen em cerca de 150 mil contos. Com este pretexto, a Kallen contrai um empréstimo de 180 mil contos junto de um banco suíço.
Nazaré Rodrigues diz que nunca se notou que tenha havido especial esforço para encontrar o gerente desaparecido e responsabilizado pelo desfalque, Oliveira Santos. Mais estranho ainda, foi a recente revelação de que, afinal, o empréstimo – que seria para fazer face ao desfalque – começou a ser negociado ainda por aquele responsável. Para culminar, o dinheiro do empréstimo nunca entrou em Portugal.
Nas contas de 1997, a que tiveram acesso, os representantes dos trabalhadores espantam-se com a existência de 250 mil contos de dívidas incobráveis. Acabam por ser informados de que o dinheiro que a VET France não pagou à Kallen serviu para custear indemnizações a trabalhadores de empresas encerradas em França.
A gerência francesa, entretanto, decide delegar a gestão corrente da Kallen em José António Soares, antigo electricista que passou a chefe de produção e assumiu a direcção da empresa, em nome dos franceses, que se deslocavam à fábrica meia-dúzia de dias por mês. Os representantes dos trabalhadores insistiram, junto dos franceses, em alertar para a degradação do ambiente de trabalho (no relacionamento de José António Soares com os trabalhadores e nas negociações do Acordo de Empresa com a comissão sindical) e também para as consequências negativas da falta de investimentos. Mas, apesar das reuniões com Michel Ruscassie, em que este até agradecia as críticas e sugestões dos delegados sindicais, nada se alterou. Já corria o ano de 1999.
Alertado em Fevereiro, o gerente francês reúne ainda com a comissão sindical em Julho, promete novo encontro em Setembro, mas acaba por só comparecer na empresa em Outubro. Só que, nesses dias, recordam as trabalhadoras, raramente pára na fábrica, tal como o seu mandatário Soares. Por essa altura, a Kallen deixa de receber encomendas para a BSH e passa a trabalhar com tecidos antiquados.


Uma carta
armadilhada

Questionado insistentemente, José António Soares esclarece que o cliente optou por encomendar o trabalho na Roménia, mas descansou os representantes dos trabalhadores, afirmando que a empresa procurava novos clientes e havia condições para pagar todos os compromissos até final do ano. O gerente francês, contactado no mesmo dia 26 de Novembro, acabou por dizer no dia 30 à comissão sindical que fosse levantar aos correios uma carta registada.
Esta continha a informação de que a empresa decidira avançar com um processo de despedimento colectivo, alegando a perda do cliente principal, a quem a Kallen vendera, em 1998, calças no valor de mais de 200 mil contos (numa facturação total de 216 mil). Para resolver as questões ligadas ao despedimento, ficava mandatado um escritório de advogados; mas, para os trabalhadores poderem reclamar os seus créditos, dava entrada no tribunal um pedido de falência.
A contestação jurídica do despedimento foi entregue pelos trabalhadores ao Sindicato Têxtil do Sul. Em reunião no IDICT, o advogado da empresa acabou por reconhecer a ilicitude do processo e desistir do despedimento colectivo. Já estavam, no entanto, atrasados os pagamentos do subsídio de Natal.
Vem-se a saber, por esta altura, que a Kallen abateu, em Novembro – pouco antes de oficializar o pedido de falência – mais de 40 mil contos na dívida de 1989, que entretanto já passara para outro banco suíço.
No início de Dezembro, os advogados informam por fax que José António Soares está impedido de movimentar as contas bancárias da empresa. Para os trabalhadores, isto mostra que contas, embora impeça o pagamento dos salários de Novembro.
Desde essa manhã de 3 de Dezembro, Soares abandonou a Kallen. Desde então, os trabalhadores ficaram entregues a si próprios e mantiveram a laboração. No dia 3 de Janeiro, quando se acabou o combustível para a caldeira que alimenta os ferros de engomar, a prensagem... e o aquecimento da fábrica, a produção parou, mas continuam a cumprir o horário.
Também as empresas sub-contratadas pela Kallen continuam a trabalhar para a VET France. O mesmo camião que carregava em Cheganças, recolhe a produção para entregar em França.
Os trabalhadores mantêm-se unidos e alerta. Querem encontrar-se com «o sr. Michel», mas os advogados dizem que precisam fazer primeiro «o trabalho de casa». Exigiram que, até ontem, fosse feito o pagamento dos salários e assegurada a direcção da empresa e o seu normal funcionamento. Hoje, em plenário, vão analisar as respostas. Alertam, desde já, que no final de Janeiro os seus créditos vão superar os 200 mil contos, ultrapassando assim os 148 mil reclamados pelo banco suíço.
Mesmo sem fazerem estas contas, já se tinham apercebido que, se pode haver alguém que lucra com este estranho caso, os trabalhadores – mulheres que, na esmagadora maioria, recebem ordenados de 67500 escudos – estão desde há muito a perder. Mas não estão dispostos a aceitar a injustiça como fatalidade.


«Avante!» Nº 1363 - 13.Janeiro.2000