Marcha Mundial
das Mulheres
2000
boas razões para marchar
Por Anabela Fino
«Queremos iniciar o próximo milénio com a certeza de que podemos mudar o mundo, pacificá-lo e humanizá-lo. Marcharemos de forma pacífica para que o ser humano esteja no centro das nossas preocupações, para mundializar a nossa solidariedade.»
Este é, em síntese, o objectivo da Marcha Mundial das Mulheres que culminará a 17 de Outubro numa concentração mundial em Nova Iorque, frente às Nações Unidas. Um objectivo desassombrado de quem tem pelo menos «2000 boas razões para marchar», no dizer do lema mundial escolhido para o evento, o que é uma forma de afirmar que as mulheres estão em luta para que os seus direitos fundamentais sejam definitivamente reconhecidos como inseparáveis dos direitos humanos universais.
Mudar o mundo é uma
tarefa de envergadura, mas existem não só forças bastantes
para o fazer como se trata de uma necessidade cada vez mais
imperiosa. Dos 6000 milhões de pessoas que hoje constituem a
população mundial, 4000 milhões - dois terços da humanidade -
vivem abaixo do limiar da pobreza relativa, das quais a grande
maioria são mulheres e crianças; 70 por cento dos 1300 milhões
que vivem na pobreza absoluta são mulheres. Esta realidade não
traduz qualquer fatalidade ou uma eventual incapacidade humana em
provir às suas necessidades; traduz, isso sim, a desumanidade de
um sistema que permite que os ricos sejam cada vez menos e mais
ricos, e os pobres cada vez mais e mais pobres.
Os dados respeitantes aos últimos trinta anos demonstram que as
desigualdades entre os países se têm vindo a acentuar de forma
brutal:
Poder-se-ia pensar
que este não é um problema particular das mulheres, mas não é
verdade. De facto, as mulheres representam metade da população
mundial e efectuam 2/3 das horas de trabalho, mas ganham apenas
1/10 do rendimento mundial e possuem menos de 1/100 da riqueza
mundial. Se a esta realidade de exploração e discriminação se
acrescentar todas as formas de violência que tradicional e
universalmente se abatem sobre a mulher (violência conjugal,
agressões sexuais, mutilações sexuais, violações
sistemáticas em tempo de guerra), estão reunidas razões mais
do que necessárias e suficientes para que as mulheres de todo o
mundo conjuguem os seus esforços na luta comum por um mundo mais
justo.
Por mais que se manipulem os dados, é incontestável que o
fenómeno da pobreza é uma construção política, económica,
cultural e social, pelo que compete a cada um nós acabar com
ele. Daqui resulta a necessidade de atacar as causas estruturais
deste fenómeno, que na sua história mais recente deriva das
políticas geradas pelo capitalismo neoliberal, produto reciclado
do capitalismo por força da mundialização dos mercados, como
afirma o documento de proclamação da Marcha Mundial das
Mulheres.
De
Pequim a Nova Iorque
A ideia de uma
iniciativa mundial contra a pobreza surgiu na Conferência de
Pequim (1995) sobre a situação mundial das mulheres. A partir
da experiência colhida na sua «Marcha do Pão e das Rosas», no
mesmo ano, a Federação das Mulheres do Québec meteu mãos à
obra para dar vida ao projecto da Marcha Mundial das Mulheres
contra a pobreza e a violência. O primeiro encontro
internacional, realizado em Outubro de 1998, mostrou a
viabilidade do empreendimento: contou com a presença de 140
delegadas de 65 países de todos os continentes. Portugal não
faltou à chamada, através de uma delegação do UMAR (Movimento
para a Emancipação Social das Mulheres Portuguesas). Neste
evento foi criado um Comité de Ligação Internacional composto
por 40 mulheres de diferentes regiões do mundo. A Marcha
começava a dar os primeiros passos.
Em Paris, em Abril do ano passado, realiza-se novo encontro.
Portugal, já representado pelo MDM (Movimento Democrático de
Mulheres) e pelo UMAR, passa a integrar o grupo de oito países
que formam o comité de Ligação Europeu ao Comité
Internacional e ainda o Secretariado Europeu de Coordenação da
Marcha. As duas organizações portuguesas assumem-se como as
principais dinamizadoras da iniciativa a nível nacional, que
entretanto recolhe o apoio de muitas outras (Mulheres da CGTP, do
PSR, Ninho, Mulheres Agricultoras /CNA, Ilga Portugal,
Associação de Mulheres Contra a Violência, Associação de
Mulheres Cabo-Verdianas, Organização de Mulheres Comunistas,
SEIS).
O arranque
oficial das acções da Marcha está agendado para 8 de Março,
dia Internacional da Mulher, devendo ter lugar entre Março e
Setembro diferentes iniciativas regionais e das organizações
envolvidas.
Sob o lema «2000 boas razões para marchar», a
organização da Marcha Mundial, que conta com o apoio da UNESCO,
propõe-se, entre outras coisas, promover um abaixo assinado (a
quota proposta a cada país é de conseguir assinaturas de um por
cento da população nacional) exigindo às Nações Unidas e aos
seus Estados membros que tomem medidas para eliminar a pobreza e
assegurar uma justa distribuição das riquezas do planeta, para
eliminar a violência contra as mulheres e para assegurar a
igualdade entre os sexos.
Até final do ano passado tinham aderido à iniciativa perto de
3000 organizações de 139 países, das quais 59 por cento são
organizações não governamentais, 12 por cento mistas, 10 por
cento de solidariedade internacional, nove por cento religiosas,
nove por cento sindicais e quatro por cento coligações.
_____
- O mundo em que vivemos
A análise que as
organizadoras das Marcha Mundial fazem do mundo em que vivemos é
tão lúcida quanto assustadora.
O mundo em que vivemos, dizem, é um mundo em que triunfam as
desigualdades, um mundo de paradoxos.
A par de um desenvolvimento técnico e científico espectacular,
do aumento recorde da produtividade industrial e agrícola, da
verdadeira revolução dos meios de comunicação, há cada vez
mais gente sem trabalho e sem acesso às condições mínimas
para uma vida digna.
Ser cada vez mais pobre em países cada vez mais ricos é hoje a
perspectiva de vida para milhões de seres humanos, não por
falta de recursos nem de riqueza, mas pela falta de uma justa
divisão e gestão desses mesmos recursos e riquezas.
Vivemos igualmente num mundo em crise de identidade, de valores,
de projectos, de solidariedade social, em que as relações
humanas são preteridas em favor do economicismo; em que se
perdem referências e proliferam os fundamentalismos; em que
grassam as intolerâncias e se sucedem as guerras agora ditas de
«baixa intensidade; em que se esgotam recursos e se devasta o
meio ambiente; em que a corrupção a todos os níveis passou de
excepção a regra; em que cada vez mais os Estados deixam de
assumir as suas responsabilidades para com os seus cidadãos.
Vivemos num mundo, enfim, «em que a democracia está em perigo
porque o futuro do mundo está nas mãos dos novos "senhores
da guerra" que agem sem lei nem apoio social, sem dar
satisfação a ninguém, fora de todo o controlo democrático,
sem responsabilidade de cidadania».
Principais vítimas deste sistema, as mulheres estão dispostas a
lutar por um mundo novo.
«A Marcha Mundial
das Mulheres no Ano 2000 quer romper em todo o planeta e de forma
definitiva com o capitalismo neoliberal. Não se trata
simplesmente de alterar as regras do jogo mantendo intacto o
sistema.» É com esta frontalidade que o documento que proclama
a Marcha Mundial enuncia os seus objectivos.
Num caminho que só pode ser de luta, as mulheres querem pôr
termo definitivamente e em todo o planeta ao patriarcado e a
todos as formas de violência de que são vítimas; exigem o
pleno respeito pela integridade do seu corpo; reivindicam que o
conjunto dos direitos da pessoa sejam interdependentes, para que
a igualdade, a paz e a solidariedade sejam os valores dominantes.
Pelo mundo em que querem viver as mulheres vão marchar a 17 de
Outubro exigindo medidas concretas para eliminar a pobreza, entre
as quais se destaca:
- aplicação da taxa Tobin (imposto de 0,1 a 0,5 por cento sobre cada transacção especulativa), que deve revertar para políticas sociais;
- anulação da dívida dos países do Terceiro Mundo (por cada dólar de «ajuda pública ao desenvolvimento os países endividados pagam três dólares para pagamento da dívida externa);
- aplicação da fórmula 20/20 nas ajudas internacionais (a «Iniciativa 20/20, proposta em 1994 pelo director executivo da UNICEF, James Grant, estabelece que 20 por cento das verbas atribuídas pelos países doadores devem ser destinadas ao desenvolvimento social e que 20 por cento das despesas do Estado que as recebeu devem ser consignadas a programas sociais. Nos últimos anos registou-se uma queda acentuada nesta iniciativa: entre 1992 e 1997, diminuiu 21 por cento; nos países industrializados a redução da assistência é particularmente grave, dado que a queda foi quase de 30 por cento, apesar de no mesmo período o produto nacional bruto desses países ter aumentado cerca de 30 por cento);
- uma representatividade equitativa entre países ricos e pobres, e uma representatividade paritária entre mulheres e homens;
- levantamento de todos os embargos e bloqueios.
Vale a pena marchar por estes objectivos. O mundo que as mulheres querem é um mundo melhor.
Retrato português * (...) O Relatório que Portugal certamente
apresentará até à próxima Assembleia Geral das
Nações Unidas, a realizar em Junho do corrente ano para
fazer a avaliação da concretização nos primeiros 5
anos das medidas constantes da Plataforma de Acção de
Beijing, não poderá deixar de reflectir alguns dos
problemas com que se debatem as mulheres portuguesas.
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O presidente da conhecida empresa
Nike tem uma fortuna de 4500 milhões de dólares e
recebe um salário de um milhão de dólares. Uma
operária indonésia, empregada da Nike numa das suas
empresas de subcontratação repartidas pelo mundo (com
um total de 75 000 trabalhadores, dos quais 70 por cento
são mulheres entre os 17 e os 21 anos), ganha o
equivalente a 360 dólares por ano. |
A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) estima em 40 000 milhões de dólares por ano a soma necessária para eliminar a pobreza extrema e permitir um acesso universal à água potável e aos serviços essenciais, especialmente à saúde e à educação. Um pequeno imposto de 0,1 por cento aplicado a mil milhões de dólares diários geraria 72 000 milhões de dólares de rendimentos anuais, o dobro do necessário para eliminar a pobreza extrema. Com um imposto de um por cento os rendimentos ascenderiam a 720 000 milhões de dólares por ano, uma soma que permitiria tecnicamente acabar com a pobreza no mundo. |