Fuga de Peniche
Um episódio da história
da resistência ao fascismo



O Forte de Peniche acolheu, na sexta-feira passada, dezenas de comunistas e outros democratas que, a convite da Comissão Concelhia de Peniche do PCP, se associaram à comemoração do aniversário da fuga que, há 40 anos, dez dirigentes comunistas empreenderam, precisamente daquele Forte. Ali, puderam ouvir o relato dos acontecimentos feito por dois dos seus protagonistas: Jaime Serra, um dos evadidos, e António Dias Lourenço, um dos dirigentes do PCP que, no exterior, ajudou a preparar a fuga.


António Dias Lourenço, depois de situar politicamente a fuga, contou alguns dos pormenores que a enformaram - e muitos desconhecem -, na intervenção que a seguir se transcreve.
«Estamos nos dias de transição de um século e de um milénio do calendário dos tempos e chegámos ao fim de um século XX rico de efemérides e acontecimentos de dimensão histórica.
O simbolismo destas transições do calendário inflama e inspira o nosso imaginário.
O acontecimento que hoje aqui nos reúne inscreve-se na história da resistência ao fascismo no nosso País, no historial de luta de ¼ de século do PCP e também na história de Peniche e do povo trabalhador e solidário desta cidade.
A década que antecede a fuga de 3 de Janeiro de 1960 assinala-se como época de grandes lutas e movimentação democrática e de uma feroz ofensiva das forças repressivas do governo fascista de Salazar que atinge duramente a direcção e a organização clandestinas do PCP.
Nos cerca de 25 mil presos políticos caídos nas garras do aparelho policial fascista de 1926 a 1960 - que totalizaram neste último ano mais de 14.300 anos de prisão -, as baixas produzidas na direcção e organização clandestinas do PCP atingiram-nos duramente numérica e qualitativamente.
No rescaldo das eleições presidenciais, a que o general Norton de Matos concorreu, com a recusa de ir até à boca das urnas, dá-se em 25 de Março de 1949 a prisão de Álvaro Cunhal, o quadro mais destacado da direcção do PCP, de Militão Ribeiro e de Sofia Ferreira.
Nos fins de 1949 e primeiros meses de 1950, mais de uma dezena de membros do Comité Central do PCP são presos e dá-se o falecimento de Soeiro Pereira Gomes e de Bento de Jesus Caraça, membro destacado da organização dos intelectuais comunistas, do MUNAF e do MUD. Na Penitenciária de Lisboa, Militão Ribeiro faz greve de fome até à morte. Dos cerca de 87 assassinados pela polícia ou nas prisões fascistas, cinco dos que perderam a vida neste período são do Comité Central.


O plano concretiza-se

Recuperar o maior número possível de quadros de direcção aprisionados torna-se uma tarefa essencial da direcção do PCP.
Com a transferência de Álvaro Cunhal da Penitenciária para Peniche e o aliciamento de uma sentinela da GNR, o guarda José Alves, pelos camaradas que com ele se encontravam, o organismo de direcção prisional, em estreito contacto com a direcção do Partido no exterior, elabora o plano de evasão que iria restituir ao colectivo dirigente no exterior um razoável núcleo de destacados camaradas.
O Secretariado do CC na época, em liberdade e na clandestinidade, destacou três dos seus membros para levarem por diante o empreendimento: Joaquim Pires Jorge e Octávio Pato, já falecidos, e eu próprio.
Entre nós distribuímos as tarefas: Pires Jorge ficaria responsabilizado pelo alojamento dos camaradas evadidos, Octávio Pato pelo seu transporte desde Peniche, eu pelos contactos com o soldado da GNR e pelas ligações com a direcção da organização prisional interna.
Um rigoroso secretismo rodeou todo o nosso trabalho. Metemos ombros a tão responsável tarefa com uma determinação íntima: «esta evasão não pode falhar».
E não falhou. Entre as coisas que foi necessário fazer entrar secretamente na cadeia e fazer chegar aos camaradas presos incluía-se o clorofórmio com que foi adormecido o guarda prisional de serviço no pavilhão dos fugitivos e uma aparelho bocal de aço inoxidável, como os usados nas operações cirúrgicas, destinado a pôr na boca do guarda adormecido para que não se dobrasse a língua e não sufocasse por isso. Não queríamos que o guarda prisional perdesse a vida. E não perdeu.
E chegou o 3 de Janeiro. Os camaradas empenhados na operação a vários níveis não tomaram conhecimento do objectivo das tarefas de que o Partido os encarregava. Por exemplo, Rogério Paulo, o falecido camarada actor do Teatro Nacional, foi encarregado de fazer com o seu carro, de maneira visível para os camaradas do interior, manobras que não sabia a que se destinavam. Quando o soube, após a fuga, quis que lhe déssemos o relógio pelo qual vira com rigor a efectivação das suas manobras.
E deu-se a fuga com o êxito conhecido.
A evasão de dez presos e da sentinela da GNR (que fizemos sair do país com o compromisso de fazermos chegar até ele a sua esposa – uma valorosa mulher – e os seus dois filhos, ele com 12 e ela com 11 anos) representou uma grande vitória do PCP e uma grande coragem e espírito de decisão dos evadidos e uma estrondosa derrota do regime fascista e do seu poderoso aparelho policial.
Foi-lhes tão difícil engolir a derrota que até inventaram que os prisioneiros tinham sido recolhidos por um submarino russo ancorado na baía de Peniche!!!
Esta fuga – juntamente com outra grande fuga colectiva da cadeia de Caxias um ano depois, que libertou oito camaradas, transportados num carro blindado de Salazar e tripulado pelo camarada António Tereso com superior coragem e audácia – foram um grande factor de dinamização do movimento antifascista e do movimento operário, feminino e estudantil: as grandes greves e manifestações de 1962; o 31 de janeiro e o Dia Internacional das Mulheres no Porto; as grandes lutas estudantis contra o decreto 40900 de Abril/Maio de 62 e as greves operárias e camponesas do 1.º Maio que, no caso dos assalariados rurais, lhes possibilitou arrancar o regime das 8 horas de trabalho nos campos.
Foram lutas que envolveram cerca de um milhão de portugueses – homens, mulheres e jovens – de todo o país.
Do contexto político da época vos falará o camarada Jaime Serra, «record man» das evasões prisionais sob o fascismo e um dos evadidos com Álvaro Cunhal.
Aos camaradas e ao povo de Peniche gostaria de expressar a gratidão, que estou convencido interpretar em nome dos presos políticos antifascistas, pela solidariedade fraterna com que sempre ajudou as nossas lutas pelo melhoramento das condições prisionais e pela forma como acolhia e tratava as famílias dos prisioneiros quando aqui vinham visitá-los.»

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Uma escola de luta


Na sua intervenção Jaime Serra, referindo-se à Fortaleza de Peniche, diz que ela é, «simultaneamente, um símbolo de opressão e um testemunho da luta pela Liberdade».
Um símbolo de opressão, «pelo uso que desta bela Fortaleza fizeram os fascistas de então, encarcerando ali e sujeitando-os aos maiores vexames, ao longo de décadas, muitos dos melhores filhos do nosso povo que se opunham à criminosa política da ditadura fascista». Um testemunho da luta pela liberdade «porque por ali passaram centenas, senão milhares de patriotas e democratas portugueses cujo único crime foi a dedicação sem limites à causa dos trabalhadores e do povo português, à causa da liberdade e da independência da Pátria, espezinhados ao longo de quase meio século pela ditadura salazarista e caetanista, ao serviço dos monopólios e do imperialismo estrangeiro.»
Para muitos antifascistas, a Fortaleza de Peniche foi ainda «uma verdadeira escola de formação revolucionária, de aperfeiçoamento cultural e de formação de carácter. Foi uma escola de luta.»
Como Jaime Serra lembrou quando da comemoração do 25.º aniversário da fuga, «desde simples cursos de alfabetização, a cursos colectivos de formação política, de economia, etc., até ao funcionamento duma organização de solidariedade colectiva à escala da Fortaleza», ali tudo contribuiu, «não só para dirigir colectivamente as lutas prisionais e para manter a confiança no futuro da luta antifascista, como para a formação de quadros para continuar no exterior, nas duras condições da clandestinidade, a luta contra a ditadura.»
De tal modo assim era, afirma, que «quando se pensava ou trabalhava na organização duma fuga, estava implícito que tal fuga se faria para continuar a luta pela libertação do povo português e não para qualquer um alcançar a liberdade para si próprio». Só assim se compreende o facto de que «vários camaradas, ao longo de anos, foram presos, evadiram-se, voltaram a ser presos e voltaram a evadir-se, sempre com o objectivo de prosseguirem a luta pela libertação do povo português.»
Segundo Jaime Serra, «em certo sentido, pode dizer-se que Peniche foi para dezenas e dezenas de camaradas, uma verdadeira universidade revolucionária.»


Manter e defender
as características do PCP

A verdade, porém, é que o ambiente e os regulamentos prisionais não facilitavam de algum modo esse trabalho político e cultural. «Muito pelo contrário. Pode afirmar-se que tal trabalho foi realizado a despeito dos regulamentos e práticas repressivas instaurados pelos carcereiros para o impedir.»
Hoje, a 40 anos de distância, a célebre fuga de 3 de Janeiro de 1960, que restituiu á liberdade e à luta um punhado de destacados dirigentes do PCP, «para além do mais, prova que já então o Partido Comunista Português era a única força política organizada a lutar contra o regime fascista e que por essa razão, a população prisional dessa época, a cumprir pena, era essencialmente composta por militantes comunistas. Prova ainda a forte implantação do PCP no tecido social dessa época e a grande capacidade de organização do PCP, posta à prova nos múltiplos pormenores de execução desta fuga.»
De facto, «pelo rigor da sua organização e da sua execução, pelo êxito alcançado e pela sua espectaculosidade» a fuga de Peniche teve então uma grande repercussão nacional e internacional e «lançou na maior confusão o aparelho repressivo da PIDE», constituindo «uma grande derrota para o governo fascista de Salazar».
Para os trabalhadores e o povo português, «tal acontecimento foi em geral considerado um grande êxito da luta antifascista e uma grande vitória do PCP».
Assim, considera Jaime Serra que, nas novas condições políticas, «é um dever manter e defender as características do Partido revolucionário da classe operário e de todos os trabalhadores que somos e queremos continuar a ser.»


«Avante!» Nº 1363 - 13.Janeiro.2000