Elián
O menino náufrago sequestrado,
herói de uma ilíada cubana

Por Miguel Urbano Rodrigues


Nas vésperas do ano 2000 uma situação inimaginável mudou a vida em Cuba: o sequestro pelos EUA de um menino náufrago.
O desfecho do crime e da saga ainda permanece em aberto. Mas os episódios que fizeram do sequestro acontecimento mundial moldam uma estória que parece extraída das páginas da Ilíada.

O povo cubano mobilizou-se para recuperar o menino. Mas não partiu como os antigos aqueus à conquista de uma nova Tróia. Para libertar a criança roubada e derrotar o inimigo travou a batalha no seu próprio solo.
Elián , símbolo da inocência e da pureza, é, aliás, a antítese da bela Helena.
É desta guerra sem choques armados que aqui se fala, uma guerra nunca antes vista em que a pequena Cuba se mobiliza para o combate contra o gigante americano.
O caso correu mundo. Não há quem hoje o desconheça.
Elián Gonzalez, um garoto de 5 anos, da cidade de Cardenas, perto do Varadero, foi encontrado pela Guarda Costeira dos EUA em águas revoltas, agarrado a uma câmara de ar. A mãe e o padrasto haviam perecido no naufrágio da embarcação em que tinham, com outras pessoas, deixado ilegalmente Cuba, rumo às costas da Flórida.
Custa a perceber como o menino sobreviveu ao naufrágio, à tempestade, ao frio, a longas horas de angústia. Mas isso aconteceu.
Segundo a letra dos Acordos de Emigração assinados pelos EUA após a chamada crise dos balseros, deveria ter sido imediatamente devolvido ao pai, que desconhecia toda a trama da fuga organizada pelo padrasto, um parasita sem ocupação definida.
Não foi o que ocorreu. As autoridades norte-americanas entregaram a criança a familiares de Elián - um tio-avô e uma prima - residentes em Miami. As violações do Direito internacional, das próprias leis dos EUA e de compromissos firmados com Cuba acumularam-se a partir de então em cascata.
A chamada Lei de Ajuste Cubana, de 1966, estabelece que cidadãos cubanos, inclusive criminosos, que pisem solo dos EUA têm direito ao direito de residência se o solicitarem. Entretanto os Acordos de Emigração de 1994, posteriores à crise dos balseros, são taxativos no tocante ao repatriamento imediato de qualquer cubano interceptado no mar pela Guarda Costeira, após saída ilegal da Ilha. Era esse o caso de Elián, com a peculiaridade de haver sido subtraído ilegitimamente ao pátrio poder.
As autoridades norte-americanas, tripudiando sobre a legislação que lhes cumpria aplicar, tornaram-se cúmplices de um sequestro.
O governo federal permaneceu passivo durante largos dias, lavando as mãos como Pilatos. Interrogado pela comunicação social, o seu porta voz respondeu com displicência que o assunto não era da esfera do executivo. Foi mais um erro maiúsculo, revelador da má fé com que estava actuando a engrenagem do sistema de poder.


Mafia de Miami em acção

A mafia de Miami assumiu desde o início o controlo da situação através da Federação Cubano Americana. Os familiares locais de Elián abriram o jogo. Primeiro solicitaram em nome do menino que lhe fosse concedido o direito de asilo, numa iniciativa sem base jurídica e eticamente inaceitável. Mas foram mais longe. Em conversa telefónica com o pai de Elián tentaram suborná-lo. Segundo Fidel revelou dias depois numa carta lida perante a gigantesca multidão concentrada em frente da sede da missão diplomática dos EUA - o Escritório de Interesses -, essa gente levou a abjecção ao ponto de oferecer dois milhões de dólares ao pai da criança em troca da renúncia ao seu direito a recuperá-la.
Ante a firme recusa ouvida, entraram no terreno da provocação frontal. No dia em que Elián completou seis anos, enfiaram-lhe a camiseta da Federação com o emblema estampado no peito. Quando o pai falava com o menino e o tranquilizava a respeito do seu regresso a Cuba, pretenderam forçá-lo a declarar: «Eu quero ser piloto dos Hermanos al Resgate!», a conhecida organização terrorista que promovia as incursões aéreas que terminaram com o derrubamento de duas avionetas piratas.
Elián apareceu aos telespectadores norte-americanos rodeado de brinquedos sofisticados. Os parentes de Miami, ao lado, sorridentes, justificavam o sequestro com um argumento repetido exaustivamente: «nós temos dinheiro, aqui ele será, por isso, mais feliz!». No início de Janeiro, o menino foi matriculado numa escola milionária cujas propinas anuais custam 40 000 dólares (mais de 8 mil contos). Uma conta bancária aberta em seu nome ultrapassou já os dois milhões de dólares.
Elián tem sido usado pela mafia de Miami como um boneco. O seu futuro, como disse Fidel, é incerto e os danos causados à sua mente infantil podem ser eventualmente irrecuperáveis.
Congressistas norte-americanos desdobram-se em declarações triunfalistas e provocatórias. O pequeno náufrago sequestrado tem sido usado como peça numa campanha repugnante contra a Revolução Cubana.
Era pungente saber que o menino perguntava pelo pagagaio que pretendia fazer subir e pedia notícias dos coleguinhas da sua escola e lhe respondiam despejando-lhe em cima presentes caríssimos.


Povo cubano unido contra EUA

Transcorreram dias antes que em Washington se tivesse a noção de que os EUA não só estavam a perder uma batalha como criavam condições para um fenómeno paralelo, totalmente inesperado: ofereciam, pela estupidez da sua posição, ao povo de Cuba uma oportunidade única de afirmar perante o mundo a vitalidade da Revolução e a sua verdadeira imagem, sistematicamente distorcida pelos grandes media internacionais.
Quando Fidel afirmou que os EUA dispunham de 72 horas para resolver a situação, devolvendo Elián à família e à pátria, no Departamento de Estado interpretou-se a advertência coimo ultimato. Sorriram, com arrogância. Que poderia Cuba fazer que incomodasse o grande Império?
Os mecanismos da engrenagem do sistema de poder norte-americano não podiam prever nem a natureza nem a eficácia da resposta cubana.
Não houve ultimato algum. O povo fez seu o drama do pequeno náufrago. Saiu às ruas em massa para exigir o fim do sequestro e a volta do menino à sua cidade, a casa do pai, onde passava, aliás, a maior parte do tempo.
No primeiro dia, 50 mil pessoas concentraram-se em frente do edifício do Escritório de Interesses dos EUA. No segundo foram 100 mil. No terceiro mais de 300 mil participaram num desfile colossal que terminou no mesmo lugar.
O brado «Queremos Elián !», «Libertem Elián !» deu a volta à Ilha, saiu para o vasto mundo.
No dia 10 de Dezembro, uma sexta feira, houve desfiles e concentrações nas 14 Províncias da Ilha. O número de pessoas que participaram nas manifestações foi avaliado em mais de 2 200 000, um quinto da população.
Nos dias seguintes a televisão transmitiu imagens de cada um desses acontecimentos .
Até correspondentes estrangeiros conhecidos pela sua hostilidade à Revolução Cubana reconheceram que uma maré de emoção varria a Ilha de lés a lés. A adesão popular ao protesto e à exigência era tão transparente que não podia ser negada.
Desde então não se passa um dia sem iniciativas de massas convocadas para exigir o regresso de Elián .


Um exemplo de dignidade

Com alguma surpresa para os observadores estrangeiros, as manifestações assumiram um caracter multifacetado. O clamor pela volta de Elián tornou-se indissociável de uma poderosa afirmação de unidade, de afirmação de confiança na marcha e no futuro da Revolução. Pela Tribuna Livre montada em frente do edifício havanero do Escritório de Interesses dos EUA desfilaram representantes de toda a sociedade cubana, desde os pequenos pioneiros a poetas como Roberto Fernandez Retamar, historiadores como Eusébio Leal, cortadores de cana, mães de família, militares em uniforme de campanha, estudantes universitários, sindicalistas. Velhas canções revolucionárias são entoadas com emoção, alternando com poemas e letras que andam hoje na boca de um povo que carrega no sangue a música e a dança. O povo bloqueado de Martí e Fidel não perdeu nem a alegria nem a combatividade.
Uma situação que impressionou os enviados especiais dos media estrangeiros: a ausência de um forte aparelho policial. Em Washington havia preocupação com a segurança das instalações da sua missão diplomática. Apreensão sem fundamento. Não foi registrado até hoje um só incidente, um gesto agressivo contra norte-americanos. A confiança na consciência social do povo cubano é tal que os militares postados em frente do Escritório de Interesses estavam desarmados. Apresentavam-se sem os seus revólveres de serviço. Isto poucos dias após as selváticas cargas da polícia de Seattle contra os cidadãos que ali se manifestavam contra a reunião da OMC. Que contraste!
Inicialmente o governo norte-americano deu indicações de que estava disposto a devolver a criança ao pai. Posteriormente houve um recuo. A proximidade da eleição presidencial preocupa a Administração Clinton. A «libertação» do menino poderia favorecer o Partido Republicano.
O jogo é abjecto, mas real.
Sem entrar no terreno movediço das previsões, pode-se avançar uma certeza. Os EUA pela irracionalidade da sua política criaram um incidente que permitiu ao povo cubano, ao assumir colectivamente uma grande causa ética, reencontrar a chama e a capacidade de mobilização dos dias gloriosos do início da sua revolução.
O assalto à razão implícito no sequestro do menino náufrago provocou uma resposta maciça e emotiva do povo cubano; uma resposta que rejuvenesce a Revolução.
O sistema de poder norte-americano está a prestar, contra a sua vontade, um enorme serviço à Revolução Cubana.


Congresso dos EUA
cede à mafia de Miami

Elián González foi intimado, no sábado, para se apresentar perante o Congresso norte-americano, constituído maioritariamente por deputados republicanos. A audiência foi marcada para 10 de Fevereiro. O menino cubano está legalmente impedido de deixar os EUA até essa data, o que significa que a decisão tomada a semana passada pelo Serviço de Imigração e Naturalização de entregar Elián à custódia paterna foi suspensa e que o menino já não regressará amanhã a Cuba como chegou a ser anunciado.
O envolvimento do Congresso nesta questão, verdadeiramente insólito, é considerado como uma cedência à mafia cubano-americana de Miami e mais uma prova inequívoca de que a questão do pequeno Elián está ser utilizada sem quaisquer escrúpulos na batalha política entre republicanos e democratas na corrida à Casa Branca.


«Avante!» Nº 1363 - 13.Janeiro.2000