Tony Blair
em Lisboa


A Grã-Bretanha regressa lentamente à normalidade, após duas quase intermináveis semanas de feriados em relação com o Natal e a entrada do ano 2000. Agora, o primeiro-ministro Tony Blair e a senhora Blair voaram para Lisboa onde, segundo asseveram meios ligados ao n.º 10 de Downing Street, estão em viagem particular. Experimentam as perigosas delícias do sol
de Inverno português, visitando Sintra, talvez, saboreando o País recôndito que Byron, Beckford, Southiy, Wellesey e tantos outros também conheceram. Talvez, então, tenha o primeiro-ministro
do «New Labour» aproveitado para dar uma rápida saltada ao Algarve onde se encontra em estágio a célebre equipado Celtic...

Tony Blair, dizem-nos, está na residência do embaixador britânico. Mas a sua honrosa visita à capital do mais antigo país aliado julga-se estar ligada à passagem para Lisboa da presidência da chamada União Europeia.
O governo britânico, fiel às suas tradições, está a procurar influenciar a referida presidência e os governantes portugueses quanto a problemas que lhe interessam. Sabemos, por exemplo, que o ministro da Economia e Finanças, Joaquim Pina Moura, visitará o chanceler do Exchequer (Tesouro) no próprio dia em que este jornal surge nas bancas.
Em causa, evidentemente, a tão assustadora «Withholding Tax», um imposto inventado pela UE para atingir importantes capitais retidos nas instituições da City. Este imposto (20% sob certa modalidade de retenção de capitais), se aplicado, atingiria, duramente, o mercado que joga e vive no domínio dos títulos do Estado britânico. O dinheiro, se vítima de tão «iníqua»taxa, fugiria todo para a Suíça, dizem certos sectores económico-financeiros londrinos, e os Bancos da City perderiam 10 000 empregos.
Eis, portanto, a questão. Tony Blair terá viajado para Lisboa no sentido de interceder junto de Guterres e, acima de tudo, do inefável Gama, para conseguir salvar 10 000 casas de família – ou não terá sido o seu objectivo preservar o mercado dos ameaçados capitais? – Quanto ao ministro Pina Moura, o chanceler Gordon Brown tratar-lhe-á da saúde...
Depois, a 31 de Janeiro, em nova reunião que terá lugar em Lisboa, o futuro do imposto que os capitalistas da City temem, será decidido, talvez amortecido e feito perder o sentido que os alemães e os finlandeses tinham imaginado. A menos que o espírito do 31 de Janeiro entre na ordem do dia entre os ministros portugueses. Disso, porém, temos as nossas dúvidas. E será que os nossos governantes conhecem o que se passou nessa terrível data da nossa História?


Na louca passagem para o Ano 2000
Decadência e realidade
em Inglaterra


A passagem para o ano 2000 agitou fervorosamente o ânimo dos povos da Grã-Bretanha. Tudo, evidentemente, tinha sido preparado há muitos meses para dar largar a mil instintos que o temperamento reservado contém e, igualmente, dar a impressão ao mundo de que neste país se vive numa atmosfera de prosperidade absorvente. ORitz, por exemplo, oferecia três noites por 9500 libras (mais de 3000 contos) sem extras, preço para casal. OSavoy, no Strand, com largas vistas sobre o Tamisa, facturou 10 000 libras (3200 contos) por um pacote que incluía, para duas pessoas, jantar com 17 pratos diferentes e baile abrilhantado por uma orquestra composta por 17 músicos. Algumas das reservas já tinham sido feitas há 20 anos...

Mais: o Dorchester, em Park Lane, modestamente, oferecia instalações numa nave espacial imaginária e jantar que incluía caviar «Beluga» (o melhor), lagosta, «foie gras» e muitas coisas mais por 5000 libras (1600 contos) para duas pessoas – tudo ao som da voz de «Galáctica, a imperatriz do Universo». Em Pertshire, no esplendor do melhor que há na Escócia, o famoso hotel Gleneagles acolhia os seus clientes num rectângulo de patinagem sobre o gelo após o que eram conduzidos para os respectivos aposentos através de corredores iluminados por enormes tochas dispostas em fileiras. A factura, compreendendo 4 noites para duas pessoas começava em 7800 libras (2500 contos) e atingiria as 16 000 libras (mais de 5 mil contos) se se preferisse ficar na Royal Lochnagar Suite.
O programa incluía chás-dançantes e entrada livre no casino onde se exibiam quartetos de instrumentos de corda e uma grande orquestra que só actuou na noite famosa de 31 de Dezembro.
O jantar no «Le Manoir Aux Quat'Saisons» em Oxfordshire (preço: 500 libras por pessoa/160 contos), incluía entretenimentos diversos a cargo de palhaços e bobos, música de gaita de foles, uma «jazz-band» a atacar no «charleston» toda a noite e ceia às 2.30 da madrugada. Os pratos "mais" da preferência dos 500 convivas presentes eram a lagosta assada, escalopes de veado, «foie gras» em terrinas. No campo dos vinhos, «champagnes» sem fim, de todas as marcas, de todos os anos.


Vem aí a gripe!

A meia-noite chegou. Em Greenwich, centro do tempo, o relógio marcou a entrada do ano 2000. Londres explodiu de entusiasmo e festa. Mas não se viu o pânico e o caos que se havia previsto. Multidões sem fim, ao longo das margens do Tamisa descendo entre Vauxhall Bridge e Tower Bridge (a célebre Tore de Londres) para assistirem ao espectáculo de fogo de artifício – coisa incrível, 30 toneladas de material de pirotecnia a serem «disparadas» de 16 barcaças. Otrânsito fora cortado nas pontes de Waterloo e Blackfriars devido a temer-se que o peso de tanta gente causasse um terrível desastre. Ao princípio da noite já estavam cerca de um milhão de pessoas no centro de Londres;Piccadilly, Leicester Square, Trafalgar Square, e na Oxford Street, em Marble Arch, Hyde Park, Knightsbridge, Kensington.
Em Greenwich, na presença da rainha Isabel II, do primeiro-ministro e de todo o creme da «melhor sociedade política», realizou-se um carnaval de sons e acrobacias. Tony Blair veio da Abadia de Westminster. A monarca, de Sandringham – mudança de vestuário, rapidamente, em Buckingham Palace, missa, logo a seguir, na catedral de Southwark, e uma visita só de minutos, a um asilo de pessoas sem abrigo. A realidade impôs-se – então numa conjuntura destas, quase irreal, também existem pessoas sem abrigo?
A epidemia de gripe ajudou a temperar os acontecimentos. Correram notícias, quando o Big Ben badalava a meia-noite, de que todos os hospitais britânicos estavam cheios, a abarrotar, com pacientes que buscavam tratamento urgente contra o desconhecido vírus. Pior, ainda: rapidamente, começou a circular uma incrível informação – em toda a Grã-Bretanha, um país que não é tão pequeno como isso, só existiam quatro (quatro!) camas vagas!!!


Fogo de artifício
e crise nos hospitais

As pessoas mal queriam acreditar nesta terrível situação. Na noite luminosa e de glória da entrada do ano 2000 era impossível pensar na decadência do sistema. Todos e todas se abraçavam às frivolidades que tinham diante dos olhos. O fogo de artifício subia nos ares. Fazia da noite espectacular um momento raro na vida de cada um. Era imperioso fugir da verdade. Mas ela existe. Não adianta esquecê-la. Só quatro camas nos hospitais...
Em todas as zonas do país as autoridades dos serviços de Saúde Nacionais trabalhavam febrilmente para arranjar mais camas na previsão, evidentemente, da epidemia de gripe mas, também, de excessos nos festejos do chamado «New Millenium». E confirmou-se que em Londres, onde existem sempre 275 camas nos sectores de cuidados intensivos nos hospitais, agora só quatro estavam disponíveis. Em certos hospitais das províncias, já estava a recorrer-se ao expediente de transferir doentes para outros estabelecimentos a 300 quilómetros de distância. Problemas em Plymouth: os médicos queriam transferir um doente para Wolverhampton a fim de poderem vagar a respectiva cama. Disse o dr. Scott Ferguson, médico dos serviços de cuidados intensivos do Derriford Hospital, de Plymouth: «Esta situação afecta crianças e adultos. Há mais de quatro semanas que nos encontramos sob terrível pressão. Já mandámos um doente para Torbay, a 40 milhas de distância. Agora queremos transferir outro, mas a única vaga que existe é em Wolverhampton, a 250 milhas (mais de 400 quilómetros).»
No dia 31 de Dezembro, a situação melhorou um pouco quando vagaram duas camas no St. Thomas Hospital e uma em Kingston, mas os médicos adiantaram que todas seriam ocupadas em questão de horas. Disse o dr. Craig Davidson, de St. Thomas: «Já vem um doente a caminho. Agora, só tenho uma cama vaga. E note-se que o nosso é um dos poucos hospitais melhor conhecidos como dispondo sempre de capacidade adicional.»
Havia dois milhões de pessoas nas ruas de Londres. Dezenas de milhares em Liverpool onde o dr. Simon Rogers, do Royal Liverpool University Hospital, declarou: «Todos os serviços do Noroeste do país estão nesta crise desde o princípio do mês. Ontem à noite só me restava uma cama vaga.»
O governo do «New Labour» em que o país tinha depositado tantas esperanças, falhou. Tony Blair, falhou. Não, não, a verdade é que não faltou às pomessas feitas ao capitalismo.

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Todos contra o capitalismo!


Estamos a 6 de Janeiro. O Sindicato dos trabalhadores da indústria têxtil e do vestuário (GMB) deu um grito de alarme. Fez saber a toda a Grã-Bretanha que os famosos armazéns também presentes em Portugal onde vendem monos, Marks &Spencer, estavam a retirar encomendas de fábricas britânicas e, transferindo-as para outros sítios no globo, já tinham provocado o despedimento de 6000 operários. Gritou o secretário do sindicato: «Valha-nos o Arcebispo de Canterbury!» Mas, duvidando de que George Carey (a arcebispo) pudesse fazer alguma coisa num terreno pertencente aos accionistas dos Marks &Spencer, pôs-se à frente de uma manifestação de trabalhadores às portas da entidade patronal, em Moorgate, na City. Um desesperado esforço.

Os «Marks &Spacks», como o povo britânico os identifica melhor, têm atravessado uma crise. Os lucros respectivos andam em queda, anualmente. Mesmo assim, à média de 500 milhões de libras por exercício não podem considerar-se maus. Os accionistas, entretanto, exigem mais valor relativamente ao capital empregue, o que significa mais eficiência e menos pessoal. As encomendas foram para Israel (o país preferido dos M&S), para o Sri Lanka, para a China e para a Indonésia. À míngua ficaram fábricas do País de Gales, na Escócia e no Norte de Inglatera. Os M&S, dizem: «Sorry, a nossa cadeia de fornecedores revelou-se incompetitiva. Tivemos de agir.»
O secretário do sindicato, entretanto, declarou aos trabalhadores durante a manifestação em Moorgate: «Sabem uma coisa? Fazer uma gabardina, um fato, uma camisa na Indonésia ou no Sri Lanka custa só 5% dos preços de produção na Grã-Bretanha. Como os capitalistas não têm pátria, levam o dinheiro para esses países onde constroem fabriquetas e recomeçam o trabalho que suspenderam no nosso país.»
Os trabalhadores acolheram em silêncio estas funestas palavras. Mas uma operária que viera de Manchester reagiu dizendo: «Então a nossa luta não é só com os Maks &Spaks – é contra o capitalismo em geral!»
«Yeeeeeeeees!», respondeu um coro ensurdecedor.

Aspectos da vida britânica

A Grã-Bretanha é um dos países mais modernos e avançados em todo o mundo apesar das gritantes injustiças e desigualdades que marcam a sua sociedade.
Estas, naturalmente, resultam das contradições de classe bem conhecidas e perfeitamente aparentes em todas as cenas da vida normal.
Tais contradições, como se sabe também, agravaram-se com o desenvolvimento do capitalismo que, ao longo dos séculos, tem presidido às principais tragédias que o país conheceu. Pelo contrário, as lutas dos povos inglês, irlandês, escocês e galês, aceleraram avanços que jamais teriam tido lugar sem elas.
Quando a II Grande Guerra Mundial se definiu no horizonte da História e os povos verificaram o destino que os aguardava, o imperialismo, em dificuldades por ele próprio criadas, apelou às classes populares pela defesa do país. Elas, patrioticamente, responderam, mas exigindo que a praga do desemprego fosse para todo o sempre eliminada. Os capitalistas concordaram. Mas as massas, depois da grande vitória e profundamente impressionadas pelo que estava a passar-se na URSS, decidiram que só um governo trabalhista e uma política verdadeiramente nacional poderiam garantir aquela histórica e fundamental exigência.
Ora os governos «Labour» traíram, invariavelmente, os compromissos tomados para com o povo britânico e, hoje, a situação é ainda pior do que a verificada em 1939. Hoje, o conceito de emprego começa a desaparecer. O capitalismo meteu na cabeça do mundo a ideia de que sendo «livres» todos os cidadãos, também cada um deve ser patrão de si próprio e trabalhar apenas em regime de subcontrato e à tarefa. O capitalismo, assim, foge às suas responsabilidades. Mas encontrar-se-á com o seu destino histórico...


«Avante!» Nº 1363 - 13.Janeiro.2000