Safadezas


Quando os criativos da sociedade de consumo se lembraram de transformar objectos de uso corrente em artigos decorativos, o mercado foi inundado por um nunca mais acabar de inutilidades que passaram a fazer parte do quotidiano de ofertas que fazemos uns aos outros, quando não mesmo a nós próprios. Entre a quinquilharia doméstica, no fundo de uma gaveta ou num caixote escondido no armário, ainda deve andar uma enorme borracha cor-de-rosa que recebi há um ror de anos, ostentando em gordas letras as instruções de utilização: «para grandes erros». Confesso que nunca fui capaz de lhe dar uso, não por falta de oportunidade mas porque cedo aprendi que não há borrachas, por maiores que sejam, que apaguem os grandes erros. Não há, quer dizer, não havia. Ou melhor ainda, nos tempos que correm, com as borrachas em desuso, a safagem dos erros faz-se por outros métodos. Há quem lhes chame safadezas. Que o digam o ex-ministro Cravinho e o bi-primeiro-ministro Guterres, que na semana passada protagonizaram mais um episódio da tragicomédia política portuguesa.
Em declarações registadas em vídeo e em áudio, dadas a conhecer a milhões de portugueses, Cravinho afirmou não ter sido «capaz de vencer os lobbies e os grupos de interesse poderosíssimos» que se ergueram contra ele, derrotando-o. Disse ainda o ex-ministro não ter sido o único, incluindo na derrota «o Governo e o próprio Partido Socialista». E para que não restassem dúvidas quanto à dimensão do problema, Cravinho acrescentou que durante o seu consulado à frente das Obras Públicas evitou «que 30 a 40 milhões de contos, pelo menos, fossem todos os anos para os bolsos de quem não deviam ir». «Quando se fazem coisas destas - concluiu - é evidente que se paga».
Naturalmente, perante a gravidade tamanha das acusações, mais a mais sem indicação de alvos concretos, choveram de todos os quadrantes pedidos de explicação. Não faltou sequer uma curiosa (e ameaçadora?) declaração de Ludgero Marques, o patrão do Norte, afirmando que as palavras de Cravinho tinham sido um «suicídio político».
Boquiaberto, o país ainda mal tinha digerido as acusações do ex-ministro quando, espanto dos espantos, o próprio vem afirmar que o que os portugueses o ouviram dizer não era o que tinham ouvido, que as suas afirmações tinham sido desinseridas do contexto, etc., etc., etc.. Estupefacto, o país assistiu de seguida à prestimosa intervenção de Guterres louvando a acção do ministro descartado e manifestando-lhe toda a sua solidariedade, como se este fosse a vítima de alguma cabala concertada pela oposição, assumindo-se ao mesmo como o garante necessário e suficiente da idoneidade passada, presente e futura do Governo e dos seus ministros. Igualmente solidário, o grupo parlamentar do PS rejeitou de imediato a formação de uma comissão de inquérito para apurar responsabilidades.
A comunicação social, por via das dúvidas, repetiu as gravações com as palavras fatídicas de Cravinho, confirmando que valem o que valem em qualquer contexto. Na Assembleia da República esgrimiram-se argumentos. Os comentadores comentaram. O Governo fechou-se em copas. E depois? Depois nada, silêncio absoluto como se nada de importante se tivesse passado. Nem inquéritos, nem investigações, nem sequer polémica.
Em Portugal as notícias, algumas notícias, morrem cedo. São geralmente as que nunca o deveriam ter sido, as que perturbam os espíritos, as que interferem com os interesses estabelecidos ou se assemelham em excesso a pedradas no charco. E os aparentes actos de coragem são, regra geral, despeitos encapotados, contas por saldar, avisos à navegação.
«Erros» como o de Cravinho não se apagam com borrachas e o ex-ministro sabe-o muito bem. Mas apagam-se com o silêncio, um silêncio que se troca, que se vende. É assim que funcionam as repúblicas de bananas, onde qualquer semelhança com um Estado de Direito é pura coincidência. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1363 - 13.Janeiro.2000