A letra na sopa
Sem nostalgia - e mesmo com ela, porque
estamos fartos de renegar a saudade como sentimento ilegítimo -,
apenas assinalando factos, concluímos que as coisas já não
são o que eram. E não fazendo destas letras um balanço, mesmo
que o ano 2000 nos seus primeiros passos a isso nos convide, não
deixamos de, por outro lado, dar conta de que o que pudéssemos
haver imaginado para final de século não corresponde nem às
previsões, quanto mais aos sonhos.
Poderia alguém, por exemplo, décadas atrás - quando a rapidez
e a facilidade de comunicação se anunciava já fortemente como
futuro credível - que as palavras iriam perder a importância
que tinham e que as próprias letras deixariam, a breve trecho,
de formar sons e construir significados?
Vamos por partes.
Há coisa de meio
século, as crianças de uma geração - toda não, é claro, mas
apenas aquelas que tinham escapado ao trabalho infantil, à bucha
de pão e pontapé no rabo como arquitrave da sua instrução e
cultura - aprendiam cedo as letras. Mesmo na mais pequena
burguesia, com a mãe em casa e pelo menos sopa quente à
refeição, desde logo as letras lhes eram enfiadas
insidiosamente na boca. Literalmente. Havia mesmo aquela sopa de
massa, com letrinhas, e a mais enfastiada das criaturas lá ia
engolindo o seu próprio nome, depois de juntar letras à beira
do prato. As letras tinham, logo para começar, significado. E
sabor.
Essa facilidade no manuseamento das letras, essa curiosidade em
juntá-las e organizá-las em palavras, daria os seus frutos.
Mesmo na mais negra opressão, com a palavra impressa vigiada e a
voz esmagada, a palavra, feita de letras e com sabor a
sentimentos e inteligência, acabava por saltar barreiras,
imprimir-se, distribuir-se ou estampar-se em muros, gravar-se
tão profundamente neles que a sua resistência ainda hoje pode
ser testemunhada contra todas as reescritas.
Foi assim que, lembremo-lo sem nostalgias mas com a saudade que
fica das coisas verdadeiras e valorosas, se deu voz a uma luta
prolongada.
Pegava-se num balde carregadinho de nitrato de prata, escolhia-se
um bom muro por onde as gentes passassem a caminho do trabalho,
arranjava-se um grupo de amigos - ele havia tantos -, montava-se
a segurança e, de luvas para não queimar as mãos, escrevia-se
laboriosamente com aquele soluto invisível, molhando o pincel,
fazendo o gosto ao dedo, dando largas à alma. Era como um grito
silencioso, ao retardador, com as palavras a aparecerem ao sol do
dia seguinte, cada vez mais negras e resistentes: «Morte ao
fascismo!»; «Fora a Pide!»; «Abaixo a guerra colonial!»;
«Viva o 1º de Maio!».
As mesmas letras, já não tenras como na sopa da infância, mas
fortes e afiadas, à medida dos sonhos, das lutas, das
esperanças.
As letras tiveram os seus muros, os seus papeis. Sobretudo o seu
papel na grande revolução de Abril. E aí, feitas de vitórias
e de transformações profundas, e de novo agudas e certeiras, as
letras entraram na batalha, com inteligência e vontade: «A
reacção não passará!»; «Viva a Reforma Agrária!»; «Viva
as Nacionalizações!»; «25 de Abril Sempre!». E nas refregas
prolongadas em defesa das conquistas de Abril, as letras
escreviam os nomes dos seus inimigos, apontavam-nos com a
franqueza dos revolucionários. E, mesmo quando eles eram já
objecto de louvores dos novos poderes, não deixavam de os
denunciar. Escrevia-se «Spínola é um facho», enquanto ele
recebia um bastão de marechal. É que as letras também tinham
coração.
Havia uma profusão de letras. Das que se aplaudiam, das que se
repudiavam, das que faziam sorrir, das que, até, metiam nojo.
Mas elas falavam por sobre o silêncio.
O silêncio acabou por ganhar peso. Instalados em muitas câmaras
municipais, os novos-ricos de Abril, ajudantes de restauradores
de monopólios e de latifúndios, aliados de novo ao
imperialismo, aprendizes do poder, aspiraram a exercê-lo como
era dantes, e deu-lhes uma grande vontade limpadora. Em numerosos
municípios do País tem sido um fartar de lavação de paredes,
a extirpar vestígios de vozes de ontem e de hoje.
Poderia pensar-se que se tratava apenas de mania das limpezas,
como alguns pretendem fazer crer. Mas, olhando os muros por aí
fora, não só em Portugal mas por essa Europa, vemos que uma
«nova» escrita aparece e que ninguém lhe toca. Estranhamente,
a mão que a «escreve» parece ser a mesma, em exercício
caligráfico de um viajante demente. Escreve sempre a mesma
coisa. Mas não diz nada.
Aqui há meses, um ministro italiano, recordando os tempos em que
escrevera nas paredes, inquietava-se com estes grafitti
cheios de letras e sem palavras. Esquecera-se apenas de que a
política a que empresta a sua voz de convertido contribuíra
para este silêncio das letras, que nem sequer fazem o «bang!»
das bandas desenhadas. Ensurdecedoras, estas letras não gritam
nem sussurram. Por isso as deixam ficar. São letras que voltam
à sopa. Querem provar que não temos voz. Leandro
Martins