A encenação do terror



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Se havia algo aos olhos dos nazis ainda mais importante que o cinema e o teatro, isso era a ópera. Na Alemanha, ela era considerada o melhor meio de revelar as qualidades dos alemães: uma arte situada algures entre as sombrias profundidades da alma e a mais elevada das harmonias. Fundir corações e mentes era indispensável ao Poder.»
Era com estas palavras que começava o documentário que, já bem depois da meia-noite e aparentemente não incluído em qualquer série documental temática, a RTP 2 transmitiu no passado domingo. Intitulado «A Ópera e o III Reich», realizado por Gérard Caillat (1997) e produzido pela France 3, um dos canais da televisão pública francesa, o documentário debruçava-se, assim, sobre uma das mais aberrantes realidades culturais do nacional-socialismo.
Claro que já se sabia (e a televisão portuguesa transmitiu também, há algum tempo, ampla documentação audiovisual sobre esta matéria) como o cinema – arte impressiva por excelência e capaz de sintetizar em poucas imagens aquilo que, mesmo subliminarmente, necessita de milhares de palavras e conceitos para ser inculcado nas pessoas – tinha sido fundamental para a exibição do Poder nazi e, mais ainda, para a própria encenação deste, como ritual de dominação dos poderosos em relação aos mais humildes, àqueles que era suposto sentirem-se, inevitavelmente, seres inferiores face à inspiração mítica e quase «sobrenatural» do Führer e seus acólitos. E, neste âmbito, é indispensável falar-se dos filmes e documentários verdadeiramente sinistros que uma cineasta tão fulgurante e talentosa como era Leni Riefenstahl levou a cabo em louvor do nazismo e dos seus vultos mais proeminentes, em obras como O Triunfo da Vontade.
Também não era uma constatação nova comprovar como, por exemplo, a arte de Richard Wagner tinha sido aproveitada em termos culturais e de pura propaganda para exaltar a mensagem de grandeza, de heroísmo e de patriotismo do povo alemão, na exacta medida em que isso convinha à ideologia opressora e expansionista do nazi-fascismo. A este propósito, o aproveitamento por Francis Ford Coppola da famosa Cavalgada das Valquírias como elemento sonoro e musical integrante de uma célebre cena de brutal e feroz bombardeamento no filme Apocalypse Now, não foi mais do que uma amarga e irónica referência (também autocrítica em relação aos americanos e às barbaridades cometidas na Guerra do Vietname) ao próprio aproveitamento, pelos nazis, do mesmo trecho musical como banda sonora dos jornais de actualidades alemães que davam conta do bombardeamento de Paris pela Luftwaffe.
Mas o que este filme ao mesmo tempo nos revela são as formas como Goebbels, Ministro da Propaganda, criou a chamada Câmara de Cultura do Reich, subdividida em sete sub-câmaras, cada uma delas encarregada de um ramo específico das artes e da cultura e todas dirigidas por dignitários da sua confiança pessoal.
Assim se percebe como, para além do expansionismo, da guerra, e do Holocausto, das perseguições e massacre de milhões de comunistas, judeus e democratas antifascistas de todos os credos políticos e religiosos, a sociedade se torna, à superfície, num teatro da manipulação, como é encenada a própria ideia do nazismo, enquanto modelo para a sua própria actividade em todos os domínios, a começar pela organização do Estado.
E se, no campo específico da ópera é questionada, com a maior das frontalidades, como terá sido possível que tantos compositores, maestros, cantores e músicos se tenham mostrado cegos, surdos e susceptíveis de ser captados pelo Poder, para servi-lo e às suas ideias e métodos de forma tão indecorosa, também se denunciam as grosseiras falsificações que, neste campo, o poder empreende.
Exemplos? Von Klenan, musicólogo e compositor oficial do regime, atribui a paternidade do dodecafonismo a Wagner e não a Schoenberg, para assim legitimar a sua utilização; a autoria do libreto de D. Giovanni é contestada a Lorenzo Da Ponte, pelo simples facto de este ser judeu, o mesmo se passando em relação a Richard Strauss obrigado a dispensar Stephan Zweig como libretista; Hermann Levi, tradutor para o alemão das ópera «italianas» de Mozart é, pelos mesmos motivos, substituído por Schoeneman.
Feita esta limpeza a todos os níveis, não admira que o nacionalismo mais reaccionário e sinistro inflame o célebre discurso de Goebbels mostrado neste documentário e, em particular, esta passagem: «Temos um teatro alemão, um cinema alemão, uma imprensa alemã, uma literatura alemã, umas artes plásticas alemãs, uma música alemã, uma rádio alemã.»
O mesmo Goebbels que instilou na mente dos alemães a ideia de que Hitler era um verdadeiro Deus e que o destino do povo alemão era o de ser o verdadeiro senhor de todo o mundo.
Como foi isto possível? Francisco Costa


«Avante!» Nº 1363 - 13.Janeiro.2000