O PSD e a Lei dos Partidos

Por João Amaral


 

O PSD dá hoje um espectáculo de vaudeville. Em vez do que deve existir na preparação dos Congressos, isto é, debate de ideias, há encenações para televisão. Em vez de diferenças programáticas, há luta de galos. Em vez de valores democráticos, há os fins a justificarem os piores meios. Em vez de respeito pelo Partido, com diferentes ideias a submeter à escolha democrática, há o uso do Partido como alavanca pessoal.

É mais uma machadada na credibilidade da política. Qual é assim a seriedade destes personagens de farsa, quando apresentam um projecto de nova lei dos partidos?
Se há domínio onde o fascismo foi incapaz de alcançar os seus objectivos, foi na tentativa de esmagar os partidos. Se o conseguiu com os partidos que dominaram a I República, foi incapaz de paralisar o Partido Comunista Português.
Mas,o PCP, actuando na clandestinidade, nunca assumiu a condição de partido ilegal. Feridas de ilegalidade democrática eram as leis que o impediam.
A liberdade de constituição de partidos integra o tipo de direitos, constantes das Declarações Universais e Pactos Fundamentais, que são imanentes à cidadania e que dão a conformação básica à democracia.
O 25 de Abril consagrou plenamente os partidos, e a Constituição de 1976, reconhecendo-os como associações especiais, afirmou a sua relevância para a formação da vontade popular, garantiu a sua representação nos órgãos colegiais de poder político eleitos e afirmou os seus direitos de oposição, antena, resposta e réplica política.
Mas toda a conformação constitucional dos partidos assenta na liberdade: de os constituir, de ser filiado, na forma de organizar, nos objectivos programáticos (com a proibição de organizações fascistas, racistas, de natureza militar ou paramilitar ou com fins violentos).
Com o projecto nº 74/VIII, o PSD quer dar lições sobre partidos e espartilhar as actuais regras de liberdade.
Claro que um Partido tem de reger-se pelos "princípios da transparência, da organização e da gestão democráticas, e da participação de todos os seus membros" (artigo 51º nº 5 da Constituição). Mas, deve ser a Lei a impor, entre os diferentes modelos, qual é o "modelo único" de partido?
Alterar as actuais regras de liberdade só pode servir para tentar resolver por via administrativa aquilo que devem ser os partidos a resolver pelos seus meios de decisão interna.

Dou três exemplos.

O voto secreto. Não penso que essa seja uma questão difícil. Por exemplo, o PCP assumiu nos Regulamentos dos Congressos a possibilidade de voto secreto. Quanto a esta matéria, há as duas opiniões. Pode obviamente questionar-se se valerá a pena manter uma posição que causa incompreensões, na opinião pública, numa matéria em que admitimos que qualquer das soluções é democrática.
Mas, seja qual for a resposta, devem ser os partidos a dá-la, não a lei a impô-la.

Segundo exemplo: o PSD quer impor o método proporcional na eleição dos delegados à Assembleia Representativa (Congresso) e a possibilidade de listas múltiplas para a direcção (mesmo com o método maioritário). Não se discute a questão de fundo. Mas, é perfeitamente legítimo dizer que estes métodos podem concorrer para empobrecer o debate democrático e favorecer a discussão centrada nas pessoas. Como se pode invocar, em contrário, que a eleição com representação proporcional do Congresso pode permitir uma melhor expressão de diferentes opiniões. Argumentos há muitos. Mas, aqui também: não pode ser a Lei a impor as soluções.

Terceiro exemplo. A Constituição dá ao Tribunal Constitucional competência para acções de impugnação de eleições partidárias e anulação das deliberações dos órgãos dos partidos "que, nos termos da Lei, sejam recorríveis". Vai ser a Lei a dizer quais. O PSD quer que sejam as deliberações em que se alegue "grave violação das regras relativas à competência ou ao funcionamento democrático do partido". Que é isto? Uma espécie de direito de ingerência? A orientação política dos partidos vai ficar sujeita a julgamento judicial? Os julgamentos válidos são os dos militantes... e os dos eleitores!

O projecto do PSD não se fica por aqui: quer que o Tribunal Constitucional tenha a lista actualizada dos filiados (violando a reserva de intimidade); introduz dificuldade na constituição e facilita a extinção administrativa dos partidos; acaba com as associações políticas (como a ID); legitima as "fundações" que serviram para o financiamento do PS, PSD e PP; aumenta a lista dos cidadãos sem direito de filiação partidária.
Mas as três questões acima referidas são as nucleares.


«Avante!» Nº 1368 - 17.Fevereiro.2000