ARGUMENTOS

«Partes de África»

Por José Saramago



As palavras do título, tal como estão aí dispostas, não são ideia minha, mas sim de Hélder Macedo, poeta e ensaísta de primeira água, que as usou para título de um seu magnífico romance que de África precisamente trata e também, como seria inevitável, de Portugal. Partes, toda a gente o sabe, significa parcelas, mas significa igualmente lugares e relatos. Delas e deles se tratará pois neste brevíssimo escrito, assim como da língua portuguesa, essa flor do Lácio, como Luís de Camões lhe chamou, e que é, depois do inglês e do espanhol, a terceira língua europeia mais falada no mundo. Só em África andam a comunicar-se em português, a par, obviamente, da caleidoscópica variedade dos idiomas e dialectos indígenas (enprego esta palavra no seu preciso sentido etimológico, isto é, aquilo que é natural de um lugar), os povos de cinco países: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Em anos passados, as minhas andanças já me haviam levado a Cabo Verde e a Moçambique, neste que acabou foi a vez de Angola e de um regresso ao segundo destes países. E já despontam no horizonte as viagens que me farão ir a Guiné-Bissau e a São Tomé e Príncipe... Quem disse que escrever é um trabalho sedentário?

A Luanda fui a convite de duas associações culturais privadas, a Maputo, integrado numa organização do Instituto Camões, acompanhando um grupo de escritores e professores universitários de algumas das muitas partes onde a língua portuguesa se fala, escreve e lê. Este Instituto Camões é o nosso Instituto Cervantes, a nossa Aliance Française, o nosso Instituto Goethe, infelizmente com menos dinheiro para gastar que os seus confrades, mas com projectos bastantes para trabalhar com persistência e eficácia, um pouco por todo o mundo, a favor da importância e da dignificação da língua portuguesa e das literaturas que nela se vêm imaginando e escrevendo. «Pontes Lusófonas», que assim se denominou a reunião que nos levou a Moçambique, é um desses projectos, ainda que, manda a verdade que se diga, manifestamente insuficiente no seu desenho actual. Uma contraditória falta de ligação às realidades sociais e culturais dos lugares onde até agora se realizou (Lisboa e Maputo) tornou as «Pontes Lusófonas» em uma espécie de roda dentada que a sua lógica própria faz girar, mas que, por não saber reconhecer as outras em que deveria engrenar, não consegue pôr a funcionar o mecanismo. Redefinidos os objectivos, disciplinados os meios, corrigidos os erros, moderados os excessos de grandiloquência, acredito que amanhã se poderá transitar com proveito por essas pontes.

Sem pausa nem descanso, primeiro contra o colonizador, depois entre naturais, Angola está em guerra há quase 40 anos. É uma guerra de que se falou e já não se fala, uma guerra ignorada pela opinião pública, uma guerra pantanosa, sem sorte, aonde os jornais e as televisões já não perdem tempo a enviar os seus enviados especiais. A cidade de Luanda, construída para 400 ou 500 mil habitantes, calcula-se que tenha hoje três milhões e meio. Ao redor do núcleo urbano, numa vasta área, estendem-se os musseques, enormes aglomerações de pequenas construções de adobe, de barracas, de tugúrios improvisados. São três milhões de sobreviventes, fugidos da guerra, homens e mulheres sem trabalho nem esperança de o terem, crianças sem futuro, uma esperança média de vida que não vai além dos 44 anos...

Não é possível, aqui, dar notícia completa de quanto vi e ouvi em Luanda. Contentar-me-ei com dois episódios que à primeira vista não pareciam destinados a tornar-se cada um deles, em complementar do outro, e, juntos, em lição recomendável. Antes da conferência que fui dar à União dos Escritores, quatro jovens, três rapazes e uma rapariga de um grupo de teatro local, interpretaram para a assistência um texto dramático de um autor angolano cujo nome infelizmente não retive e em que a palavra pátria foi dita repetidas vezes. Enquanto ia escutando pus-me a recordar a visita que tinha feito no dia anterior ao Museu das Forças Armadas Angolanas, na fortaleza quinhentista de
S. Miguel, uns decrépitos barracões atulhados de velhas armas enferrujadas, restos da guerra de independência, onde ainda se vêem, por exemplo, casacos e calças feitos de cascas de árvore, que os guerrilheiros usavam. E também fotografias. Em uma delas, um grupo de sorridentes soldados portugueses decapita um inimigo. O cadáver (prefiro pensar que aquele corpo já estaria morto), levantado pelos braços, está de bruços, um soldado levanta o machete. O resultado da operação, isto é, a cabeça cortada, aparece numa outra fotografia, ao lado. Os actores iam dizendo e repetindo com entusiasmo, com devoção, com amor, a palavra pátria e eu pensava que afinal as pátrias verdadeiramente não existem, o que existe em nós é só um desejo de pátria, uma espécie de anseio que experimentámos alguma vez e que as realidades não tardaram a conspurcar e ofender. Embora igualmente portugueses pelo nascimento, aqueles soldados e eu não pertencíamos à mesma pátria. A minha verdadeira pátria, aquela que teria sido a realização do desejo, não era a que me ensinaram na escola nem a que ao longo da vida os interessados naquela tentaram incutir-me. Quando a representação terminou, esquecido já do tema que tencionara desenvolver, falei daquelas imagens terríveis, das pátrias de uns e outros, do horror de ser isto que somos, do horror ainda pior de continuar a sê-lo.

Três dias depois, em Maputo, uma professora da Universidade de Joanesburgo contar-me-ia que uma rapariguinha angolana, de dez anos, exilada na África do Sul, tinha escrito o seguinte numa redacção escolar: «Posso morrer em inglês, posso morrer em alemão, posso morrer em italiano, posso morrer em espanhol, mas só em português poderei ressuscitar.» Tornei a pensar nas pátrias e cheguei à conclusão de que estas coisas são mais complicadas do que parecem. Mas numa certeza me mantenho firme: não é o mesmo o Portugal daqueles soldados e o meu. Isso me basta para não perder de todo a esperança.


«Avante!» Nº 1368 - 17.Fevereiro.2000