ARGUMENTOS

Equador: um grande susto
para o Império

Por Miguel Urbano Rodrigues



Os acontecimentos do Equador arrancaram a máscara a mais uma das democracias de fachada da América Latina.
Inesperadamente o presidente daquele país anunciou a dolarização absoluta da economia, afirmando que era a única solução para os problemas nacionais.
A decisão agravou uma crise que vinha de longe.

As comunidades indígenas dos Andes equatorianos exigiram a renúncia do presidente. Este recusou e ameaçou-as com medidas repressivas. O Exército permaneceu quieto. Os índios, então, sublevaram-se. Dezenas de milhares avançaram sobre a capital numa marcha torrencial, ocuparam o Congresso e destituíram o presidente.
Parecia o começo de uma revolução. Mas o desfecho da crise foi diferente.
No dia 9 de Janeiro p.p. quando o presidente Jamil Mahuad tornou pública em Quito a sua decisão de dolarizar a economia, eliminando totalmente a moeda nacional, o sucre, o mundo tomou conhecimento de que naquele remoto país a democracia era uma ficção, contrariamente ao que afirmava Washington.
Que exigia do povo o presidente?
Que os equatorianos aceitassem trocar cada 25 000 sucres por um dólar. Invocando a necessidade de estabilizar a economia, congelava os depósitos. Até 4000 dólares os depósitos à ordem poderiam ser levantados transcorrido um ano; acima dessa quantia, os titulares das contas receberiam bónus do Estado convertíveis em dinheiro após sete anos, nuns casos, e dez noutros. De um dia para o outro as poupanças do povo eram confiscadas e o sucre desaparecia, substituído pelo dólar.
Não é difícil imaginar a indignação que o decreto presidencial provocou, sobretudo entre os reformados, as viúvas e os trabalhadores.
Mas foi dos camponeses quechuas da alta montanha, descendentes do Incário, que veio a reacção mais explosiva. Agrupados na Confederação das Nacionalidades Indígenas (CONAI) responderam a Mahuad com um ultimato, exigindo a sua imediata demissão. Mahuad aparecia-lhes como o símbolo da corrupção.


Riqueza e miséria

O Equador (270 000 km2, 11,4 milhões de habitantes e um PIB de 14,5 mil milhões de dólares) é um país riquíssimo em recursos naturais. Primeiro produtor mundial de banana é um grande exportador de petróleo, camarões e madeiras de qualidade. A queda dos preços desses produtos nos anos 90, a repercussão das crises asiática, russa e brasileira, e os efeitos devastadores do El Niño agravaram nos dois últimos anos as tensões num cenário político caracterizado por choques permanentes entre partidos tradicionais e movimentos sociais que se levantam contra a corrupção e opressão e a discriminação racial.
O desemprego atingia 17% da população activa no início do ano 99. O aumento das taxas de juro, dos gastos sumptuários e dos créditos mal parados provocaram no final do ano passado uma ruptura do sistema bancário que levou o Governo a intervir em 19 bancos, encerrando alguns deles.
Mahuad optou por uma rígida política monetarista, aceitando todas as exigências do FMI. A dureza do ajuste permitiu que em 99 a balança comercial apresentasse um saldo positivo de 885 milhões de dólares. Isso foi possível devido a uma queda de 50% das importações, inseparável de uma redução drástica do poder aquisitivo da população. A situação financeira, entretanto, continuou a agravar-se. O défice da balança de transações correntes foi de 3200 milhões de dólares. Os investimentos caíram, a fuga de capitais intensificou-se e o pagamento do serviço da dívida criou problemas em cadeia.
A crise equatoriana era mostruário do modelo neoliberal para o Terceiro Mundo: o povo de um país em crise era forçado a consumir cada vez menos, exportar mais, e receber menos benefícios sociais para garantir a saída de recursos financeiros destinados aos países mais ricos.


O sonho

Enganaram-se aqueles que subestimaram o levantamento das comunidades indígenas.
Mahuad não levou a sério os protestos do CONAI. Na opinião do presidente, «umas bastonadas» seriam suficientes para «meter os índios na ordem». Mas os índios que entraram em Quito, desarmados, em massas compactas, não estavam sós. E o seu líder, António Vargas, não é um indígena qualquer. Tem uma licenciatura em Harvard, nos EUA, e uma cultura política muito superior à de Mahuad.
O Exército não interveio quando o Congresso e o Supremo Tribunal, acusado de corrupção, foram ocupados. Quando o comando da marcha anunciou a constituição de uma Junta de Salvação Nacional e lançou uma proclamação de conteúdo revolucionário, soou o alarme na Casa Branca. Bradou-se que a democracia fora apunhalada e era necessário defendê-la. Logo se juntaram ao coro as vozes de governos de países como o Brasil onde o neoliberalismo ortodoxo aprofunda os abismos sociais.
Ao lado de Vargas e da sua gente entraram no Congresso dois coronéis e um punhado de capitães e tenentes.
O Comando Conjunto das Forças Armadas pediu a Mahuad que renunciasse. Ele perdeu então o pio e fugiu.
O golpe tinha uma componente militar. Os coronéis Lúcio Gutierrez e Fausto Cobo integraram a Junta ao lado de António Vargas e do juiz Carlos Solorzano. O arcebispo de Cuenca, mons. Alberto Luna, trouxe o apoio do sector progressista da Igreja. «Sabíamos que o Exército ficaria ao lado do povo», declarou Vargas dirigindo-se à multidão que festejava a queda de um governo títere e corrupto. O coronel Gutierrez confirmou.
Foi uma euforia prematura. Em poucas horas o quadro mudou.
O contra-golpe, arquitectado em Washington, desenvolveu-se de maneira fulminante. O Comando Conjunto das Forças Armadas cedeu à pressão do embaixador dos EUA, ou seja às ordens vindas de Washington.
Não houve repressão. Os generais, após negociações pouco claras com o CONAI, conseguiram o que os EUA pretendiam. A renúncia e a fuga de Mahuad produziram um efeito desmobilizador. Persuadidos de que tinham alcançado o seu objectivo principal, os índios começaram a deixar Quito, regressando às suas comunidades. A Junta foi dissolvida, Gutierrez e Cobo detidos e o
vice-presidente Gustavo Noboa assumiu, de acordo com a Constituição, a chefia do Estado. O Legislativo foi reaberto.
A Casa Branca e a maioria dos governos da América Latina manifestaram satisfação pelo «restabelecimento da democracia».
Encorajado pelo apoio recebido, o novo presidente, Gustavo Noboa, um político conservador, comprometeu-se num discurso demagógico a erradicar do país a corrupção. Fez as promessas da praxe visando sobretudo a conquistar a confiança dos índios.
A principal exigência de Washington essa, entretanto, foi atendida. Noboa vai levar adiante a dolarização. E o coronel Gutierrez permanece preso.
Conclusão: a crise persiste e tende a agravar-se .
Os sindicatos, os estudantes, os intelectuais, os pequenos comerciantes e amplos sectores do campesinato, agrupados na Frente Patriótica, já informaram que rejeitam o projecto de dolarização da economia e recorrerão a diferentes formas de luta para impedir a sua concretização.
Em Washington, no momento, respira-se de alívio. Os acontecimentos de Quito provocaram um grande susto. Mas a alegria da Casa Branca pode ser de breve duração. As causas profundas da crise não desapareceram.


«Avante!» Nº 1368 - 17.Fevereiro.2000