ARGUMENTOS
A grande surpresa de Aninhas
Por Manoel de Lencastre
A visita de Marcelo Caetano a Londres, em 1973, fazia adivinhar a corrida final para o precipício da ditadura que vinha de 1926. Como sempre, os regimes autoritários portugueses voltam-se para Whitehall e para a City se pressentem que a vida lhes foge ou desejam sacrificar ainda mais o País.
A realidade era
esta: o regime do 28 de Maio e do Estado Novo sentia-se perdido a
guerra colonial em três frentes devorava-lhe os recursos e não
produzia vitórias ou a paz impossível. A luta de massas
dirigida pelo PCP, nas condições difíceis que se conhecem,
ganhava a alma do País; a repulsa pelos métodos do regime e a mobilização pela defesa dos
presos e apoio às suas famílias eram já de carácter nacional;
a crise económico-financeira estabelecia-se; a emigração
crescia; surgiam focos de desobediência no seio das Forças
Armadas. Marcelo Caetano, portanto, foi a Londres.
O que poderia fazer o governo conservador de Edward Heath? A
crise do regime de Lisboa era tão visível e profunda que nenhum
dos seus tradicionais aliados estava em condições de ajudá-lo.
Principalmente, o atoleiro das novas guerras africanas para onde
a fúria dos fascistas ultramontanos tinha empurrado o nosso
Portugal repugnava e afastava esses aliados. Era o PCP, a nível
da confrontação sociopolítica e económica internacional, a
URSS, quem demonstrava ao mundo a injustiça dessas guerras e a
corajosa luta do povo português. Foi nesta conjuntura que se
desenrolou a história que vamos descrever e dedicamos aos
leitores do «Avante!» neste momento de renovação do melhor
jornal português.
«Stop fascism in Portugal»
Os comunistas
portugueses emigrados em Londres receberam instruções do
organismo superior de que dependiam para tirarem partido da
visita de Caetano com dois objectivos: o primeiro consistia na
mobilização do máximo de recursos humanos para a organização
de uma forte manifestação antifascista dirigida à Embaixada de
Portugal: o segundo era a propaganda anti-salazarista-caetanista
junto dos mais vastos sectores da população britânica para que
se conhecesse melhor a realidade portuguesa e a luta que os
patriotas desenvolviam.
Os recursos dos comunistas portugueses eram limitados. Porém,
não lhes faltava coragem e capacidade. Na véspera da chegada de
Caetano à capital britânica, surgiram nas paredes de muitos
edifícios no coração da cidade, em muros e à saída do antigo
terminal da British Airways em Earls Court inscrições
como esta: «STOP FASCISM IN PORTUGAL». A Pide estava em
Londres. Os serviços secretos ingleses (MI5) davam-lhe toda a
colaboração. Notava-se o aperto da vigilância aos portugueses.
A organização da manifestação à Embaixada, onde Caetano se
encontrava, envolveu, também, o Partido Comunista da
Grã-Bretanha, nosso fraternal aliado. Os camaradas puseram-nos
à disposição o edifício da King Street. Utilizámos
duplicadores, máquinas de escrever, papel, cartolinas, tudo o
que fazia falta. A agitação junto dos meios sindicais e da
classe operária britânica era intensa. O glorioso jornal
diário dos comunistas, «Morning Star», incitava os
trabalhadores a juntarem-se-nos. Do nosso lado, tinhamos
comissões sindicais e de unidade em diversos locais de trabalho.
Sentíamos que engrossava o caudal de vontades entre os
portugueses. A manifestação anti-Caetano tinha-lhes ferido a
imaginação. Outras organizações portuguesas e partidárias em
Londres, como a que publicava o «Portuguese & Colonial
Bulletin», a Associação dos Portugueses em Inglaterra e o
jornal «O Português na Inglaterra» trabalhavam febrilmente.
Nesta vasta mobilização também se distinguiram outros sectores
patrióticos mas distantes do PCP, a Liga do Ensino da Língua e
da Cultura Portuguesas e o recém-fundado Partido Socialista.
Contavam com ajudas valiosas a dos trabalhistas e de
alguns sindicatos anticomunistas. Os socialistas faziam tudo para
se afastarem de nós. Recebiam ordens terminantes de um senhor
que se dizia viver na Suíça chamava-se António Barreto.
Começamos a tomar conhecimento de que Mário Soares chegaria a
Londres para tomar parte na manifestação. Não era a
manifestação propriamente dita que lhe interessava. Pretendia
aparecer na frente, ser visto. Queria ser o chefe.
A bandeira portuguesa, a única que apareceu na grandiosa
manifestação foi-nos entregue por uma dedicada comunista que
trabalhava na TAP. O numeroso contingente de comunistas
portugueses e simpatizantes concentrou-se no «Astor College», a
escola Médica do Middlesex Hospital onde muitas trabalhadoras e
amigas leais tinha aderido ao PCP. Tudo estava preparado.
Tínhamos bandeiras, dísticos, panos com inscrições. O grande
dia aproximava-se.
Almas vitoriosas
Era um domingo. A
manifestação ia sair, finalmente. A nossa militância, a nossa
incessante actividade estava, como costuma dizer-se, «a arrastar
multidões». Só víamos gente inglesa juntar-se-nos. A nossa
causa era justa. Pensávamos no nosso velho país arruinado, na
juventude que se atascava em África e morria. Pensávamos nos
camaradas que lutavam, clandestinamente, e nos que sofriam nas
mãos dos torturados e nas prisões. Pensávamos naqueles que
faziam o «Avante!». Naqueles que tinham morrido em luta pelos
ideais do PCP e pelos melhores valores da Humanidade. Os nossos
corações batiam pela Pátria escravizada, pelo belo país a
que, orgulhosamente, pertencemos. Um país entristecido que fazia
figura de potência colonial mas não passava de espaço
colonizado pelo imperialismo.
Na zona de Tottenham Court Road, ligando com a Oxford Street, a
nossa manifestação ligar-se-ia à dos comunistas britânicos.
Estes, levavam um oceano de povo. Muitos internacionalistas que
haviam, há muito, adoptado a causa do antifascismo. Um
contingente de antigos membros das Brigadas Internacionais que
tinham combatido na Guerra Civil espanhola. Almas vitoriosas
surgiam em toda a parte onde os comunistas portugueses agitavam
pela sua Pátria.
Mas, alguns minutos antes da saída do «Astor College» uma
querida camarada, a Teresa, cujo destino desconhecemos, disse:
«Camarada! Está aqui a Aninhas que acaba de chegar de Portugal.
Também deseja acompanhar-nos.» Olhámos a Aninhas. Era uma
bonita e muito jovem portuguesa que sorria sem poder disfarçar
um certo embaraço. Usava chapéu. Um belo cordão de oiro ao
pescoço. Pulseiras. Anéis nos dedos. O sorriso de Aninhas
desarmava-nos. Perguntámos-lhe: «Então, a menina deseja, de
verdade, acompanhar-nos?». resposta: «Sim, senhor Camarada,
terei todo o prazer.» O problema estava em que nada já
tínhamos que a Aninhas levasse. A manifestação começava a
organizar-se na rua. De repente, vimos uma bela fotografia de
Álvaro Cunhal, quando ainda jovem, que nos tinha sido oferecida
e que desejaríamos poupar. Começara a chover.
Sem alternativas, dissemos: «Aninhas, estás a ver esta
fotografia? Queremos que a ergas bem alto em todo o percurso para
que toda a gente a veja.» Ela não hesitou: «Sim, senhor
Camarada. Assim farei.» E voltou a esboçar aquele bonito mas
estranho sorriso, ingénuo, desarmante
Assim aconteceu.
Enquanto nos enrouquecíamos gritando as adequadas palavras de
ordem e erguíamos a bandeira republicana portuguesa que tanto
amamos, olhávamos, a espaços, para o sítio onde supunhamos que
Aninhas, perdida na multidão, marchava. Sem desfalecimentos, os
braços sempre no ar, elevava o retrato ao máximo das suas
possibilidades. A chuva, presistente, inutilizaria a foto. Mas
pensámos que, no fim de contas, a Aninhas levava consigo um
indubitável símbolo da nossa luta.
Logo que tudo terminou com o êxito que se tornou conhecido,
regressámos ao «Astor College». Apesar de encharcados,
tínhamos de organizar a recolha e a arrumação dos materiais
utilizados durante a manifestação naquela tarde histórica. Foi
quando a Aninhas, acercando-se, perguntou: «Quem é aquele
senhor tão bonito cujo retrato me confiou?»
Já tinha abandonado o chapéu, aliás encharcadíssimo, em
qualquer parte. Surgia, agora, passadas algumas horas, apenas,
uma rapariga diferente. Obviamente, a experiência vivida tinha-a
profundamente impressionado, talvez transformado.
Esclarecêmo-la: «É Álvaro Cunhal, Aninhas, o
Secretário-Geral do Partido Comunista Português.» A fulminante
surpresa de Aninhas estampou-se-lhe na cara. Primeiro, sorriu.
Depois, pôs-se muito séria e foi sentar-se num cadeirão que
estava perto, a pensar, a pensar, a pensar
Já não era a
mesma que chegara de Portugal nessa manhã. Acabara de conhecer
aquilo que nunca pudera compreender a realidade
portuguesa.