ARGUMENTOS

Teatro em português

Por Maria Helena Serôdio



Não é difícil reconhecer no teatro o «laboratório da língua» de que falava Vitez, mesmo admitindo que o teatro não se esgota na palavra e que várias podem ser as modalidades de representação que a omitem em cena, sem sequer ter que optar pelo teatro do mimo ou pela mais recente forma do teatro-dança. Lembro-me, por exemplo, do belo espectáculo da Cornucópia sobre texto de Kroetz (Música para si) que "descrevia" a rotina de uma trabalhadora ao serão, de regresso a casa sozinha, depois de mais um dia de fadiga. Mas, apesar destas ressalvas, a palavra é ainda importante no teatro: na história que se conta, no diálogo que se encena, na interpelação que se pode dirigir ao público, na «conversa», enfim, que suporta a nossa relação social e artística.

Vem isto a propósito de uma questão que, a meu ver, continua a ter a sua pertinência: a de defender e estimular um repertório português de teatro. É verdade que há muitos anos, ouvi um actor de créditos bem firmados - o Mário Jacques - lembrar que houve tempos em que era vital para os actores portugueses poderem conhecer e interpretar os grandes textos do repertório mundial - clássicos e contemporâneos - para poderem fugir à mediania de um repertório limitado e menor que grassava entre nós. Mas eram tempos que obedeciam a constrangimentos de censura e que, entre nós, não era fácil nem atractivo escrever peças, até porque muitas das que fossem escritas, não poderiam ser encenadas. Vejam-se, entre outros, o caso de Felizmente há luar, de Stau Monteiro, ou o d’ A Pécora, de Natália Correia, que só conheceram o palco bem depois do 25 de Abril.

Ultimamente, porém, ao fazer o balanço anual das peças portuguesas publicadas e encenadas, torna-se claro que tem havido um acréscimo muito significativo de títulos novos nos últimos anos, e que há editoras que têm vindo a dar à estampa textos de teatro de autores vivos. Por outro lado, há cada vez mais companhias que incluem no seu repertório peças portuguesas recentes e há outras que mantêm em permanência dramaturgos e dramaturgistas, criando uma espécie de oficina de escrita e experimentação cénica. Há no Porto uma estrutura vocacionada para trabalhar sobre dramaturgias contemporâneas, e começa também a haver encomendas interessantes para refazer textos que não dramáticos para a cena, como foi a reescrita de crónicas de Lobo Antunes, do romance A Paixão, de Almeida Faria (que o próprio autor refez), ou das Viagens na minha terra, de Garrett, feita pelo Carlos Porto. E há ainda a iniciativa exemplar da SPA e do Novo Grupo de patrocinarem um prémio que já permitiu a publicação e a encenação (notável, de João Lourenço) de uma peça de grande valor: Às vezes neva em Abril, de João Santos Lopes, sobre a violência racista em gangs da periferia.

Mas outras temáticas igualmente importantes têm vindo a ser trabalhadas por autores portugueses, como as que mais directamente interpelam o nosso quotidiano. É o caso de Mário de Carvalho que dramatizou a desagregação de valores e do convívio familiar em A rapariga de Varsóvia, ou falou, num estilo de comédia brilhante, de um perigoso tigre (leia-se: um estado fascista) que ronda um bloco de apartamentos (Se perguntarem por mim, não estou). Jorge Silva Melo escreveu sobre alguns dos condicionalismos trágicos da vida dos jovens, como é a droga (O fim, ou tende misericórdia de nós), Luísa Costa Gomes reportou-se ao quotidiano de mulheres em Nunca nada de ninguém, e Isabel Medina criou para a Escola de Mulheres uma comédia engraçadíssima sobre (des)amores de mulheres em Os novos confessionários. Mais recentemente, Maria Velho da Costa publicou uma peça excelente, Madame, e vários são os mais jovens escritores que têm visto (com relativa celeridade) as suas peças publicadas, encenadas e até premiadas.

Não é ainda, se calhar, o momento de se dizer que há já um consistente repertório de teatro contemporâneo português, mas a verdade é que já são muitos os textos que vale a pena ler e encenar. Mas há ainda um longo caminho a percorrer: como é possível um Teatro Nacional fazer tão pouco nesta matéria? Onde estão os espaços e os apoios continuados à leitura de novas peças? Como organizar de forma produtiva a discussão entre escritores? E como dinamizar o encontro de escritores com públicos variados? Onde estão colecções de pequenos dossiers sobre os dramaturgos contemporâneos? Onde está a divulgação sistemática de textos em edições traduzidas? Que política de difusão se faz junto de companhias estrangeiras ou de departamentos universitários de outros países?

Mas estas e outras insuficiências não podem, porém, negar o óbvio: é que já não é possível persistir no preconceito de que os portugueses não têm «tête dramatique», nem falar de novas escritas de portugueses sem aí incluir um capítulo de textos para teatro.


«Avante!» Nº 1368 - 17.Fevereiro.2000