Eles
«Eu gostava muito de falar!...»
Não sei se, entre tantos momentos pungentes, este foi o mais
significativo da reportagem que Ana Margarida Matos fez para o
«Esta Semana» acerca do quotidiano de uma meia dúzia de velhos
que esperam, ali para Alfama. Velhos que vivem sós, ou porque
já não têm família ou porque, tendo-a, é como se não a
tivessem. Velhos que não têm com quem falar, por muito que em
anos distantes gostassem de o fazer; que se movem com
dificuldade; que mal vêem. Que esperam, nada mais, e sabem-no.
E, contudo, não são dos mais trágicos velhos de entre os muitos milhares de velhos do nosso país. Tanto quantos nos apercebemos olhando a reportagem, estes não têm nenhuma doença grave e dolorosa, habitam casas guarnecidas do essencial, pelo menos alguns recebem a visita diária de um serviço de apoio domiciliário à velhice. Dir-se-ia que são privilegiados, e em certa medida é verdade. Ainda assim, porém, o melhor que podem esperar é a sorte de morrerem sem sofrimento.
É pouco. Ainda que talvez não o pareçam, há pouco tempo ainda eram gente como nós. É pouco o que podem esperar, é pouco o que têm. Enquanto não nos tornamos em gente como eles, temos estrita obrigação de fazer com que tenham e esperem mais. Mesmo aqueles velhos, na verdade privilegiados mas de um privilégio que acontece como que num reino de horror manso.
A reportagem de Ana Margarida Matos bem podia mostrar-nos velhices muito piores, assim o tivesse querido. Bem sabemos que, por esse País fora, não faltam o mínimo apoio, a comida, as quatro paredes limpas, os objectos que são os sinais da vida percorrida. Velhos de quem o Estado não quer saber, de quem não se lembra excepto para tacitamente lamentar que ainda não tenham morrido e por isso pesem desagradavelmente nas estatísticas, dificultem a gestão da segurança social, onerem o orçamento público mesmo só com pensões de miséria e serviços de saúde inoperantes. Os velhos da reportagem pareciam disfrutar daquilo a que um optimismo burocrático pode chamar mínima qualidade de vida. Só que é duvidoso que aquilo seja vida. Mesmo mínima.
A frase de Luís Filipe
Há muitos anos já,
creio que há mais de vinte e cinco, vendo televisão, ouvi uma
frase de Luís Filipe Costa que nunca mais esqueci, que regressa
muitas vezes e voltou também enquanto acompanhava esta
reportagem: «Não é triste ser velho; é triste ser velho em
Portugal.» Sei bem que não é tanto assim, que é triste ser
velho em muitos outros países, aliás cada vez mais numerosos
porque o devir das sociedades ditas avançadas tem multiplicado o
desprezo e a desatenção pelos velhos, porque foram empurradas
para o desmoronamento tentativas de sociedades em que ser velho
deveria não ser tão triste.
E, contudo, eles, os velhos, são credores e de vários modos.
Alguns até no plano financeiro, porque lhes é regateada
a retribuição pelos dinheiros descontados durante décadas.
Noutros planos também, naturalmente. Até quando são
despachados para depósitos
a pretexto de que os mais novos «têm a sua vida»; eles, que
tinham «a sua vida» e contudo a limitaram para acolher e tratar
os mais novos que eram então crianças.
Destes e de outros aspectos não cuidou a reportagem de Ana Margarida Matos, que contudo indirectamente, no-los recordou, o que é mérito já não irrelevante. Porque a questão é que é preciso fazer com que a vida mereça ser vivida até ao fim, que deixe de ser uma estória que acaba tão mal. Porque os espectaculares progressos tecnológicos e outros que nos deixam embevecidos são bem pouca coisa se forem apenas o cenário preambular de um crepúsculo atroz. Ou, num outro registo, porque eles, os velhos, somos nós próprios. Se não já, daqui a pouco. Correia da Fonseca