Uma outra ideia para Portugal


Numa das últimas etapas da corrida à liderança do seu partido, o actual presidente do PSD procedeu ao lançamento de um livro de sua autoria, arrojadamente intitulado «Uma ideia para Portugal». Trata-se de uma colectânea de discursos nos quais, presume-se pelo alarido feito, está contida a «ideia» que há-de levar Portugal à glória.
Por seu lado, o ministro da Economia e das Finanças, em entrevista ao «Expresso/Revista», mostrou e demonstrou que o Governo do PS também tem «uma ideia para Portugal», cuja tem como objectivo conduzir Portugal a igual destino. E parece claro que entre a «ideia» do primeiro e a que o segundo explicitou não há diferenças substanciais. Pelo contrário: pode mesmo dizer-se que estamos perante uma «ideia» única, uma espécie de ideia para um dueto e que, possuindo o mesmo tronco e os mesmos membros, se apresenta encimada por duas cabeças, assim difundindo, como convém para iludir os incautos, uma visibilidade plural.
Aliás, não é necessária grande memória para recordar o que foi a «ideia» posta em prática pelos governos do PSD e a continuidade que a essa «ideia» foi dada pelos governos do PS. E a quem não queira puxar pela memória aconselha-se a leitura da entrevista acima referida, na qual essa continuidade é não só exibida como valorizada.

Reconhecendo que «os governos do professor Cavaco Silva tiveram e cumpriram um papel na vida nacional» - o de «gerar estabilidade política» e de, a partir daí, pôr na ordem as «situações económicas muito difíceis para Portugal» criadas pela Revolução de Abril – o ministro de António Guterres destapa uma parte do véu por detrás do qual se esconde a sua «ideia para Portugal» em serviço combinado com o PSD. E explica-se assim: «a esquerda ou um partido de esquerda como é o PS tem obrigação de lutar e de usar o poder ao serviço de uma certa ideia para Portugal», coisa que passa inevitavelmente, segundo diz, por «soluções políticas» que só podem ter «credibilidade» se forem «feitas com interlocutores credíveis» - neste caso «os agentes reais do progresso e do desenvolvimento económico» que são, ensina o ministro, os grandes grupos económicos.
A «ideia» do Governo do PS identifica-se, assim, no essencial, com a dos passados governos do PSD. E parece evidente até que, aquilo a que o ministro de António Guterres, em linguagem carregada de modernidade, chama «uma relação adulta de credibilidade com os agentes criadores de riqueza», isto é, com os grandes grupos económicos, constitui uma «ideia» bastante mais «avançada» do que a do PSD...

Aos que, no próprio PS, criticam e receiam que tal «avanço» para a submissão total do poder político ao poder do grande capital conduza à «perda de identidade», responde o ministro – saltando de dentro de um romance de Eça de Queiroz – que essa crítica e esses receios resultam de «uma visão ultrapassada de qual é o papel da esquerda na vida política nacional e internacional». E, com o «descarado heroísmo de afirmar» de que falava Eça, explica que o dito «avanço» só foi possível porque o PS deu gigantescos passos em frente «na aprendizagem da cultura política da esquerda». Acusando os hereges de «falta de segurança nas próprias convicções» proclama, finalmente, que «a nossa identidade» é «absolutamente clara no que respeita ao domínio do pensamento da esquerda, ao domínio da solidariedade e da justiça social». Quem há aí que duvide do conteúdo de esquerda de tal pensamento, de tal solidariedade, de tal justiça social? Então não é evidente que, com uma «esquerda» como esta, não é preciso haver direita?; e que o facto de o ministro, em toda a longa, longa entrevista, não ter utilizado uma só vez a palavra «trabalhadores» é elucidativo sobre a sua «justiça social»?; e que a «solidariedade» guterrista é claramente inspirada na caritativa máxima que diz que «é preciso que os ricos sejam cada vez mais ricos para poderem dar maiores esmolas aos pobres»?

É esta, então, a «ideia do PS para Portugal»: uma «ideia» que, apesar de posicionada na mesma linha de partida da do PSD, seguindo os mesmos caminhos e tendo como objectivo a mesma meta de chegada, se diz situada espectacularmente... à esquerda – assim pretendendo preencher todo o espaço político que vai da direita até à esquerda e impor-se, de facto, como ideia única.
Acontece que, para além dessa ideia comum aos dois - «moderna» diz o ministro, certamente sabendo que ela existe desde que existe a exploração do homem pelo homem... - há outra ideia para Portugal, uma ideia que, precisamente porque se situa nos antípodas da do ministro, transporta o sonho de uma sociedade nova e moderna de facto porque livre de todas as formas de exploração e opressão. E há quem lute por essa ideia: sabendo que essa luta é extremamente difícil, mas mesmo assim lutando; sabendo que essa luta se faz de muitas pequenas, médias e grandes batalhas no dia a dia e, por isso mesmo, travando essas batalhas; sabendo, enfim, que, como afirmou Carlos Carvalhas em Beja, «são cada vez mais os portugueses que entendem e que querem que se reforce este Partido, Partido Comunista Português, que não vira as costas às dificuldades, que está e estará sempre com os trabalhadores e com as populações, que apresenta propostas alternativas tendo como um dos traços mais salientes da sua intervenção o de dar resposta aos problemas do povo e do País».


«Avante!» Nº 1369 - 24.Fevereiro.2000