O IRA tem razão

Por Manoel de Lencastre


Na Irlanda do Norte, o Acordo de Paz de Sexta-Feira Santa (10-04-1998) foi parar ao caixote do lixo. O precesso que, tão tortuosamente, se viveu ao longo dos últimos dois anos entrou em colapso. O «Sinn Fein» declarou que não está preparado para mais conversações. O IRA (Irish Republican Army ou Exército Republicano Irlandês) disse que não admite novos contactos com personalidades ou grupos para falar de desarmamento. O governo de Dublin culpa o de Londres. Os protestantes, como se esperava, lançam todas as responsabilidades pelo sucedido para os ombros dos católicos e republicanos.

Em toda esta grave questão da Irlanda do Norte, que dura há mais de 100 anos e ameaça uma desestabilização cujos contornos mal se divisam, existe um aspecto a que, realmente, se empresta o necessário esclarecimento. Fala-se muito da paz entre as partes, de reconciliação entre protestantes e católicos, do apaziguamento entre as duas Irlandas, do desarmamento das forças paramilitares existentes no Ulster. E pareceria justo supor que o desarmamento dos grupos unionistas e, no máximo, da reforma do funcionamento da Polícia (Royal Ulster Constabulary). O aspecto fundamental em tudo isto é o da presença do Exército britânico e da ocupação do Ulster pela Grã--Bretanha. Enquanto esta situação não for resolvida, não haverá paz na Irlanda do Norte.

Pôr o dedo na ferida...

OIRA foi claríssimo ao ser confrontado com a crise recente que daria (e deu!) lugar à suspensão do parlamento de Stormont e do governo presidido por David Trimble. Segundo o próprio general canadiano John de Chastelain, encarregado das negociações com as partes para o respectivo desarmamento, o IRA fez a seguinte declaração: «Consideraremos e maneira de pôr de lado as armas e os explosivos que possuímos e colocá-los fora de uso no contexto de uma implementação por inteiro do Acordo de Sexta-Feira Santa e do afastamento das verdadeiras causas do conflito.»
O que pretende o IRA dizer?
Em primeiro lugar, que as negociações para a formação do Executivo de Belfast terminaram após ilimitadas concessões feitas pelos partidos nacionalistas (Sinn Fein e SDLP) em resposta a chantagens constantes dos partidos unionistas-protestantes, o que desenraizou o Acordo e fez ignorar diversos aspectos do mesmo. Mas, em segundo lugar, o IRA, quando refere «o afastamento das verdadeiras causas do conflito» põe o dedo na ferida e aponta aquilo que o governo de Londres e os círculos protestantes ocultam e não desejam que jamais seja discutido – a saída do Exército inglês e a anulação do estatuto actual da Irlanda do Norte como parte do Reino Unido.
Logo que esta declaração foi assinada, o referido general De Chastelain indicou ao governo de Blair que acabava de resolver uma informação segura da parte do IRA que poderia conduzir, de facto, a um real desarmamento. Mas Blair e o secretário de Estado para o Ulster, Peter Mandelson, não quiseram ouvir o general e avançaram com a legislação necessária para que o processo de Belfast fosse suspenso.
Averdade é esta: não querem ouvir falar daquilo que, efectivamente, é essencial. Mas, cedo ou tarde, acabarão por reconhecer que, sem a remoção desses obstáculos, não haverá qualquer possibilidade de efectivo progresso.


Caiu a máscara colonial

Os meios reaccionários britânicos, evidentemente, compreenderam a mensagem. Por isso, disseram:
«Se deixarmos os republicanos governar o Ulster, então o IRA contemplará o respectivo desarmamento.» Isto significa que a presença colonial dá fundo verdadeiro a toda a questão. O governo de Londres sabe que está a ocupar uma parcela de um país estrangeiro, que as suas forças armadas levam a cabo uma presença que esse país estrangeiro não deseja – mas insiste em pretender que tal ocupação não existe e não deve, portanto, ser discutida.
Exibindo o mais incrível cinismo, David Trimble, chefe do principal partido protestante-unionista, disse que o Ulster Unionist Party tinha feito absolutamente o máximo possível para que o acordo de paz fosse bem sucedido e que era aos republicanos e ao Sinn Fein que devia ser imputada a responsabilidade pela grave situação a que se chegou. Mas o governo da República da Irlanda (Dublin) esclareceu tudo ao declarar que a mensagem do IRA fora transmitida a Tony Blair 12 horas antes de ter tido lugar o cancelamento do governo de Belfast e a reimposição da administração do Ulster directamente por Londres.
A máscara caiu. Toda a gente abriu os olhos para a realidade. O governo de Londres tem de adoptar uma política sincera e completamente despida da sua tradicional hipocrisia. Terá de discutir a saída do Ulster e o reembarque das forças armadas britânicas. E os protestantes que têm vivido da exploração dos católicos e da repressão dos patriotas sempre protegidos pelas forças policial e militar britânicas terão de aceitar que a Irlanda é só uma.


«Avante!» Nº 1369 - 24.Fevereiro.2000