O Museu do Fado,
por Carlos do Carmo
A
Casa do canto aberto
Henrique Custódio (texto)
Visitar a Casa do Fado e da
Guitarra Portuguesa em Lisboa, no Largo Chafariz
de Dentro, é descobrir como a canção popular de uma cidade
pode substanciar um povo. Ali, os amantes do Fado redescobrem-no
na sua quase inesperada profundidade, os leigos são deslumbrados
pela sua riqueza cultural. Carlos do Carmo,
um homem do Fado que dispensa apresentações, decifrou-nos,
pessoalmente, o sortilégio deste Museu.
Com pontualidade
britânica, Carlos do Carmo encontrou-se connosco à porta do
Museu. É um conversador nato e, tratando-se do Fado, o seu
verbo, sempre fluente, ilumina-se com paixão e saber
multidisciplinar. Ainda dávamos os primeiros passos na nossa
jornada e já esclarecia: «Tudo o que eu disser são
opiniões pessoais, porque o fado é um canto aberto e vale por
todas as leituras. Esta é só a minha». Posto isto,
observou: «Este espaço, para mim, só tem um defeito: foi
aberto 30 anos depois. Não apanhou a geração de ouro ainda a
funcionar, com quem se faria uma recolha muito mais exaustiva do
que aconteceu para trás».
Que recolha? Carlos do Carmo explica, no quadro do seu próprio
envolvimento neste projecto. «Estou ligado a isto como está
muita gente do fado. Fazia-me muita pena que, sendo o fado uma
tradição oral, não existisse em Lisboa um espaço que o
cuidasse, como acontece na Argentina com o tango. E, que diabo,
quem somos nós para nos darmos ao luxo de termos uma canção de
uma cidade e não a preservarmos? Bati-me por isso e, de repente,
fiquei feliz quando comecei a sentir que se juntaram ideias e
boas vontades no sentido de que o Museu fosse para a frente».
Um juntar de ideias e boas vontades que desembocou em trabalho
concreto. Organizou-se um grupo de consultores integrando gente
do fado e da museologia - que Carlos do Carmo integra - e, no
confluir de conhecimentos e talentos, reuniu-se um vasto e
diversificado espólio que se expôs em sequência temática,
resultando numa viagem apaixonante pelo Fado, desde as suas
origens lendárias à actualidade.
Da tasca ao salão
A primeira paragem
da jornada assinala o «berço do fado» através da reprodução
de uma viela lisboeta, numa maqueta mostrando a calçada secular,
os pregões e a rua, como elemento fundador de uma canção que
nasceu livre e popular.
Dali transita-se para uma taberna feita a partir de uma gravura
de Rafael Bordalo Pinheiro, de 1873, onde figuras humanas
reproduzidas em tamanho natural impressionam pelo seu realismo.
Lá está o taberneiro entre tonéis e barricas, por trás de um
balcão onde dormita um gato. De pé, canta o «Faia» - boémio
fadista do século passado -, escutado atentamente por um
espectador sentado à mesa de copo na mão, como se impõe. Em
fundo - e accionado pelo próprio visitante - pode ouvir-se uma
guitarrada do célebre Armandinho, que Carlos do Carmo, destaca. «Ele
foi o grande impulsionador do fado, o homem que rompeu em
sonoridades e no modo de acompanhar nos anos 30, de tal sorte que
grande parte dos fados ditos clássicos, foio Armandinho que, ao
ouvir os seus criadores, os passou para música. Não falo de
música de pauta, digo música executada, porque até aí os
fados ou eram trauteados ou assobiados. Ele apanhava o rigor da
melodia e depois, daí para diante, passaram a fados de estilo.
Grande parte deles deve-se a este homem, que morreu em 1948».
O quadro seguinte reproduz um salão fidalgo, onde uma jovem
aristocrata canta um fado ao piano. «Não é por acaso que o
D. Carlos manda pedir ao José Maria dos Anjos que o vá ensinar
a tocar guitarra», afirma o nosso cicerone, acrescentando,
irónico: «A genuína aristocracia gostava do povo, ouvia-o e
bebia-o, enquanto a burguesia queria era fugir...»
A mentira do «fado-desgraça»
A questão dos
géneros do fado é-nos amiudada no painel seguinte, com Carlos
do Carmo a tomar uma posição clara: «Esta coisa que se
instituiu de que o fado canta a desgraça, a tristeza, etc., é
mentira, porque o fado tem estas três vertentes aqui
expostas: o Fado Menor, que é triste, o fado Mouraria, que é
afirmativo, e o Fado Corrido, que é alegre, foi mesmo dançável
e dançado. Portanto, depende do atirador. Por exemplo, grande
parte do meu repertório é alegre e positivista,
características que fui buscar às componentes do fado. Também
canto fados tristes, já não aguento é ouvir dizer a vida
inteira que o fado é decadente, triste e choradinho. Não é.
Está aqui o exemplo, com estes três tipos de melodia que cada
fadista constrói. Depois, é uma questão de escolha nos
repertórios».
Nem de propósito: no quadro seguinte surgem as «cegadas», com
uma preciosa documentação fotográfica desta manifestação
popular típica de Lisboa dos anos 20 e 30, onde se cantava e
dançava o fado na rua e que acabou por sucumbir à censura. «Há
bocado falava do fado corrido e dançável. Cá está. Nas
"cegadas", o balanço do fado existia e era dançado»,
sorriu-nos o nosso anfitrião, que aproveitou para mergulhar nas
raízes populares da canção de Lisboa: «O fado é
intrinsecamente uma canção do povo e todas as suas componentes
criativas, desde o traje ao que quer que seja, são eminentemente
populares».
Seis quadros
de uma exposição
Seguem-se seis
quadros temáticos, «neles se apresentando o fado como fenómeno
transversal e multidisciplinar da nossa cultura», no dizer do
próprio Museu. Lá está, sucessivamente, «o fado no teatro
de revista», «o fado na rádio», «a discografia
do fado», «o fado no cinema», «o fado na
televisão» e uma «oficina de construção de
guitarras». Esta última apresenta a reprodução em tamanho
natural do guitarreiro debruçado sobre a sua bancada e entre
ferramentas várias do ofício, tudo doado e construído por um
destes artífices ainda no activo, o mestre Gilberto Grácio.
Volta a impressionar pelo realismo.
Quanto aos cinco quadros anteriores, todos são apresentados com
os mais diversos materiais de época e com suporte audiovisual
nos casos da rádio, cinema e televisão, sempre fazendo mostra
de autênticas relíquias. Hermínia Silva («na minha
perspectiva, a grande figura, única, ímpar, do fado de revista,
um autêntico "bicho de palco"») foi uma das
personalidades destacadas por Carlos do Carmo neste painel, a par
de Alfredo Marceneiro e Joaquim Campos, este último «um
homem de grande talento e simplicidade, funcionário da CP, autor
da música do fado Vitória, esse fabuloso fado "Povo que
Lavas no Rio", e outras melodias muito fortes». E ainda
Berta Cardoso, «a única fadista que eu conheci que tinha um
hábito diário de leitura e se a ouvirmos, reparamos que há uma
dicção por onde passa uma certa forma de preparação. Não era
por acaso que as coisas eram ditas assim... É uma figura que o
fado tem ainda de saber tratar melhor. Acho que merece ser
repesquisada».
O Fado de Coimbra também marca a sua presença, numa
homenagem que assinala os seus traços distintivos do fado de
Lisboa, a começar na afinação dos instrumentos e na sua
própria construção.
Um Museu em movimento
O corredor que se
segue conduz-nos a uma galeria das vozes do fado, onde
podemos apreciar fotografias de inúmeros fadistas em momentos
marcantes das respectivas carreiras, articulada com secções
reservadas ao fado na imprensa (com recortes e originais
únicos), aos letristas do fado e à internacionalização
do fado, roteiro que fecha da melhor maneira: o visitante é
convidado a entrar na recriação de uma casa típica de fado,
com capacidade para 36 pessoas sentadas, com um palco ao fundo
«habitado» por um par de fadistas à desgarrada e a projecção
de filmes originais com interpretações ao vivo de grandes
figuras do fado.
Mas o museu não se fica pela exibição estática, pelo «espaço
morto», no dizer de Carlos do Carmo, e ele próprio nos
conduz às iniciativas que ali regularmente decorrem, como a
actual exposição itinerante sobre a guitarra portuguesa, onde
desfilam os nomes de várias gerações de geniais construtores,
e que veio substituir uma outra sobre o xaile. Este espaço de
exposição articula-se com outros, igualmente vivos e
dinâmicos, como o auditório para 90 pessoas, «onde se tem
passado tudo o que se possa imaginar, desde homenagens a grandes
fadistas, convívios, palestras, debates, até à câmara
ardente, como aconteceu no funeral da minha mãe, que para aqui
trouxe no caixão e daqui partiu». Outra zona fundamental do
museu é a loja que ali funciona permanentemente, comerciando,
num atendimento personalizado, tudo o que se relacione com o
fado: discografia, bibliografia, adereços, instrumentos
musicais, etc., numa oferta que dá resposta a todas as
solicitações, nem que seja para atestar a inexistência de um
produto no mercado. Carlos do Carmo destaca também a
importância da base de dados construída no museu e exemplifica:
«Um dia um estudante quer fazer uma tese sobre o fado, chega
aqui, carrega numa tecla e obtém de imediato toda a
informação».
E o Museu não pára: para já, está prevista a instalação de
uma escola de guitarra na cave e uma cafetaria no 1º andar, para
conforto de todos os seus utentes.
Manuel da Fonseca e Martinho d'Assunção
Carlos do Carmo relatou-nos histórias deliciosas. Como a que se segue.
«Quando veio o 25 de Abril, o grande violista Martinho d'Assunção tocava no Faia, a casa de fados que eu tinha com a minha mãe. Era um admirador assumido do Partido Socialista e quando o apresentei ao Manuel da Fonseca, numa das suas visitas à casa, o Martinho, sem que ninguém lhe perguntasse nada, estica a lapela e mostra o emblema do PS, revira-a e apresenta um autocolante e, não satisfeito, rapa da carteira para exibir mais um símbolo do PS. Resposta imediata do Manel: «Homem, caramba! Tão socialista, tão socialista, você é quase comunista!». Na altura foi uma gargalhada geral, mas o que tem graça nisto tudo é que o Martinho, mais tarde, tornou-se mesmo comunista, além de um grande amigo do Manel!
E foi no Chafariz de Dentro...
A Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa - popularmente conhecida por Museu do Fado - está instalada no Edifício do Recinto da Praia, uma antiga estação elevatória de águas do século XIX devidamente recuperada para o efeito.
O Museu localiza-se no Largo Chafariz de Dentro, no Bairro de Alfama, e foi inaugurado a 25 de Setembro de 1998. A recuperação e reabilitação do edifício onde se instalou o Museu foram promovidas pelo Pelouro da Reabilitação Urbana da Câmara de Lisboa através da empresa municipal EBHAL - Equipamentos dos Bairros Históricos de Lisboa, num projecto arquitectónico dos Arqºs José Santa-Rita e João Santa-Rita.
A Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa funciona das 10h00 às 18h00 e encerra à terça-feira. As reservas e mais informações sobre visitas poderão ser solicitadas pelo telefone 21 882 34 70 ou através do fax 21 882 34 78.